quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Jonas: conversão e missão - encontros com o povo – 4

CNBB*

Aprofundamento 4: Tu és um Deus de misericórdia e ternura (Jn 4,2c)

O livro de Jonas trata, antes de tudo, da universalidade da misericórdia divina. Deus foi clemente com os marinheiros, impedindo que o barco afundasse; perdoou os ninivitas; teve compaixão de Jonas afligido pela irritação; enfim, a benevolência divina se estendeu até aos animais.

Arrepender-se e contar com a misericórdia de Deus não é um tema estranho, mas bastante desenvolvido pelo pensamento bíblico. Contudo, Jonas se recusa a pedir aos ninivitas que se arrependam. Jonas está limitado por sua “verdade”, segundo a qual Deus é amor e ternura para Israel e fúria e castigo para as nações. Jonas se irrita porque deseja ver Nínive destruída. Mas o clímax desse livro é exatamente mostrar que o Deus de Israel é compassivo até mesmo para com os piores inimigos do povo da aliança, os ninivitas. O Senhor é graça e misericórdia para com as nações e agirá com severidade também para com Israel. Por isso que na liturgia judaica, o livro de Jonas é lido no Dia do Perdão (Dia da Expiação, cf. Lv 16,1-34) quando todos os judeus fazem penitência e jejuam durante vinte e quatro horas pedindo perdão pelos pecados.

O último capítulo do livro de Jonas deixa claro, com fina ironia, que por duas vezes Deus salvou os pagãos através do nosso protagonista. No início do livro, uma terrível ameaça de morte pesava sobre os pagãos no barco. Agora o mesmo acontece aos ninivitas: os pagãos clamam a Deus, convertem-se e são salvos.
Isso irrita Jonas profundamente. Ele não quer ser missionário porque não deseja a salvação dos “maus”, mas a destruição deles. A verdadeira razão da fuga de Jonas não era o medo dos desafios ou de que os ninivitas lhe fossem hostis. O motivo da fuga foi o medo de se tornar um instrumento da misericórdia de Deus em favor dos ninivitas (Jn 4,2). Jonas sabia que, se o Senhor o enviava para Nínive, era porque tinha a intenção de salvá-la, pois se quisesse destruí-la o teria feito sem avisar.

Para Jonas, seria melhor morrer que lidar com o amor de Deus para com Nínive e fica profundamente irritado porque os ninivitas foram salvos. A misericórdia do Senhor sobre os ímpios vai contra tudo que Jonas acreditava e no qual baseava a própria vida. Jonas não vê sentido em continuar vivendo, seu mundo caiu, pois Deus faz tudo ao contrário do que ele pensa. Para Jonas, a atitude do Senhor em relação à Nínive e à mamoneira é motivo de grande decepção. À primeira Deus deveria ter destruído, à segunda deveria ter salvo. Deus, porém, recusou-se a seguir os esquemas de Jonas.

O final do livro é surpreendente. Jonas, afinal, é quem está agindo fora da lógica de Deus: sente misericórdia por um vegetal efêmero e deseja a morte de uma multidão de seres humanos.

Este é o sinal de Jonas mencionado por Jesus: a proclamação do Reino de Deus às nações e a ressurreição de Jesus [1] significam que Deus não segue os planos da humanidade, mas os seres humanos é que devem aderir ao seu projeto de redenção, o que implica a necessidade de conversão não somente dos ouvintes, mas também do missionário. Alguns judeus ao se dirigirem a Jesus estavam na mesma atitude de Jonas e por isso lhes foi dado o sinal de Jonas. Hoje, o mesmo sinal é dado aos cristãos.

Chegamos ao final do livro, cuja trama converge para uma pergunta da parte de Deus: “E não teria eu misericórdia de Nínive, a grande cidade?” (Jn 4,11). Esta pergunta do Senhor deixa o livro com o final aberto. Trata-se de um convite à meditação sobre que concepções os leitores de todos os tempos tem de Deus.

Notas:
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[1] Cf. CHOW, Simon. The Sign of Jonah Reconsidered, Stockholm: Almqvist & Wiksell, 1995.

*CNBB - Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética. Mês da Bíblia 2010 - Texto para o povo. Elaborado por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj.

sábado, 25 de setembro de 2010

Evangelização: o desafio da Igreja atual

Rita Gomes,nj*
Os desafios para a Igreja, quanto à evangelização, são indissociáveis das noções de missão e diálogo. Na atualidade, talvez seja esse o ponto mesmo de partida para se pensar e fazer a evangelização ad intra e ad extra.

A confissão de fé cristã não se separa da experiência vivida nas primeiras comunidades cristãs que confessaram Jesus messias. A explicitação doutrinária, trinitária e cristológica, foi a forma de tornar compreensível a mensagem cristã aos membros da Igreja provenientes da cultura grega, ao mesmo tempo em que servia para marcar as diferenças em relação ao judaísmo, do qual provinha, e aos gnósticos aos quais combatiam.

Essa explicitação da fé em língua grega foi verdadeiramente evangelização, transmissão da experiência de Deus e descobrimento ou assentamento da identidade cristã. Não foi, de modo algum, imposição e absolutização de algo particular. Acusação tão em voga em nosso tempo, movidas por certa corrente da teologia do diálogo inter-religioso.

Em nosso mundo, complexo e ambíguo, somos interpelados a expressar, e porque não dizer, a narrar nossa experiência de Deus. Experiência trinitária revelada na vida muito humana de Jesus de Nazaré, movida pelo Espírito Santo.

Que linguagem adotar para que essa experiência seja transmitida de modo fiel? Como dar condições aos membros da Igreja e aos de “fora” de ter esse contato experiencial com o Deus de Jesus Cristo? Enfim, como deixar Deus se autocomunicar?

Nas primeiras comunidades o modo mais corriqueiro de evangelizar era o testemunho. Hoje, com a onda neopentecostal, esse termo perdeu boa parte de sua força significante. Compreende-se basicamente como a exposição, diante de uma assembleia de fieis, da narrativa de uma mudança de vida, meteórica e aparentemente radical, levada a cabo pelo “poder” de Jesus Cristo.

De acordo com a Escritura neotestamentaria o testemunho constituía o anúncio do Cristo. Esse anúncio por sua vez, configurava-se pelo fazer memória da vida de Jesus, suas palavras e atos. O impacto dessa vida particular naqueles que o anunciavam tornava-se o critério de autenticidade do mesmo anúncio.

A vida transformada daquele que anunciava Jesus Cristo e o Reino de Deus inaugurado em sua pessoa[1], era o principal testemunho da ação salvadora de Deus, uma vez que em Jesus Cristo o próprio Deus fala a humanidade. Jesus de Nazaré é a Palavra salvadora de Deus para toda a humanidade e por isso é revelador do Deus verdadeiro.

Em nossas comunidades eclesiais precisamos resgatar a dinâmica de interrogar-nos: em quê cremos? A cada nova geração de cristãos, essa pergunta aparece como uma exigência identitária.

Diante dessa questão somos interpelados a fazermos novamente o caminho com Jesus e deixar que Ele mesmo nos revele o Pai e desconstrua nossas falsas imagens de Deus. Isso só é possível pelo seguimento do Cristo em um processo contínuo de escuta dessa Palavra na vida eclesial.

A maior dificuldade para a catequese dos cristãos atualmente é o engano da evidência. Acreditamos firmemente que sabemos em que “cremos”, o que “confessamos”. Nossa confissão de fé é repetida sem cessar em nossas celebrações rituais. Muitas vezes de modo supersticioso, mas não parece haver uma verdadeira consciência do que é afirmado em cada palavra. A simples repetição automática não deixa espaço para o significado, para o conteúdo. Não constatamos nos fiéis a existência da experiência que está tão bem expressa no nosso credo.

Evangelizar os batizados exige primeiro a atitude humilde de assumir que não temos plena clareza de conhecer a quem seguimos e por isso, não sabemos quem somos. Houve um obnubilamento da consciência cristã em conseqüência de uma catequese nocional, conceptual que desencarnou a experiência vital dos fieis com Jesus. Temos que assumir nosso lugar de discípulos, ou seja, ir atrás do Mestre. Redescobrir Jesus em nosso dia-a-dia, juntamente com outros cristãos.

Só depois poderemos pensar a evangelização ad extra. E esta nunca será um proselitismo. Dialogar significa antes de mais nada, dar-se a conhecer, revelar-se na humildade, desnudar-se. Como o fez o Pai em Jesus. É também deixar espaço ao outro para fazer o mesmo. O serviço da caridade, o amor incondicional ao ser humano foi expresso de um modo único por Jesus na cruz ao doar sua vida e foi apreendido de modo também único pela Igreja ao perceber e explicitar na Encarnação o assumir a humanidade integralmente, por parte de Deus.

Evangelizar os não cristãos é encarnar esse amor incondicional a cada ser humano necessitado, explorado, desumanizado. Isto é dar testemunho do Pai, pelo Filho, no Espírito.


*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1] O Evangelho de Marcos atesta que Jesus inaugura o Reino em sua pessoa, por isso, foi chamado autobasileia.

domingo, 19 de setembro de 2010

Jonas: conversão e missão - encontros com o povo – 3

CNBB*

Aprofundamento 3: Anuncia-lhes a mensagem que eu te disser (Jn 3,2)

No terceiro capítulo do livro de Jonas, nosso protagonista recebe novamente a ordem de ir a Nínive. Dessa vez não há fuga, a missão é realizada com sucesso. Contudo, propositalmente, o autor sagrado não nos informa sobre as palavras que Deus mandou Jonas comunicar aos ninivitas.

Levanta-te, vai a Nínive, a grande cidade, e anuncia-lhe a mensagem que eu te disser (Jn 3,2).

Mas Jonas não teve aquela disponibilidade necessária a todo missionário. Atravessou, em apenas um dia, uma cidade que deveria ser percorrida em três dias (cf. Jn 3,3-4). O que foi anunciado aos ninivitas não parece ter sido o que Deus verdadeiramente desejava comunicar. Jonas anunciou um castigo tremendo (Jn 3,4), mas em nenhuma passagem desse livro bíblico se tem Deus mencionando castigo. A mensagem que o Senhor quis comunicar está explícita em Jn 1,2 e diz apenas que Deus conhece a iniqüidade dos ninivitas. Então, Jonas deduziu que para tão grande pecado deveria haver um tremendo castigo.

A frase “e Deus arrependeu-se do mal que ameaçara fazer-lhes” (Jn 3,10b) pode ser um acréscimo redacional posterior para harmonizar o conteúdo da proclamação de Jonas com o perdão de Deus. Contudo, o autor deixa bem claro que o perdão concedido aos ninivitas é por pura gratuidade e não como conseqüência da penitência. Deus perdoa a grande cidade iníqua porque ama a criação que saiu de suas mãos, não apenas os seres humanos, pois até os animais são citados como alvos da misericórdia divina (Jn 4,11).

Por isso, o pecado de Jonas é grave. “O profeta é o porta-voz de Deus. Não tem o direito de acrescentar ou de suprimir seja o que for da Palavra”[1]. Jonas necessita de conversão mais que os ninivitas.

Que contraste! Todos parecem fazer a vontade de Deus, exceto Jonas. Quando estavam no barco, os marinheiros pagãos eram mais piedosos, enquanto Jonas, tido por justo, era o único que estava desobedecendo ao Senhor. Até mesmo o mar, o peixe, a planta, o verme, o vento oriental, todos são obedientes a Deus. Jonas, ao contrário, mesmo quando parece obedecer ainda não o está fazendo.

Jonas diz aos ninivitas que adora o Senhor, mas isso é uma contradição, visto que a adoração verdadeira consiste em colocar-se a serviço de Deus e dar-lhe a própria vida. Aliás, nesse livro bíblico, são os pagãos, e não Jonas, que desempenham o papel de verdadeiros adoradores [2].

Apesar de ser um missionário rebelde, nosso protagonista alcança incontestável sucesso na missão: a cidade inteira faz penitência (Jn 3,5). E quão maravilhoso não teria sido, se em vez de pregar o castigo, o missionário tivesse percorrido a cidade calmamente anunciando o perdão?

Após a pregação de Jonas, o rei dos ninivitas publicou um decreto de penitência e ele mesmo deu o exemplo. O jejum e os demais ritos penitenciais são, na Escritura, sinais de sincero arrependimento e expressão de uma mudança radical de conduta (Jn 3,8). As palavras do rei (Jn 3, 7b-8) , tido por pagão e iníquo, são muito mais teológicas que a pregação de Jonas [3]. Aliás, o pecado dos ninivitas não é a idolatria, ou o ateísmo como diríamos hoje, ou seja, não são inimigos de Deus. O pecado de Nínive é a iniqüidade, a injustiça ou a violência. Estas são três formas de traduzir o mesmo termo hebraico. Esse é o pecado que chegou até Deus (Jn 1,2) e que o rei denuncia (Jn 3,8). Era isso que Jonas deveria ter dito aos ninivitas: denunciar o pecado, chamar à conversão (mudança de vida) e proclamar o perdão divino. Mas nosso protagonista estava demasiadamente cheio de suas doutrinas religiosas, sobre um Deus severo e castigador, para entender o perdão gratuito. Jonas colocou-se no lugar do Senhor: se ele fosse Deus transformaria os ninivitas em cinzas. Era isso que ele esperava que Deus fizesse e foi isso que ele anunciou em Nínive.

Notas:
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[1] MORA, Vincent. Jonas, São Paulo: Paulinas, 1983, p. 22.
[2] Ibidem, p. 15.
[3] Ibidem, p. 23.

*CNBB - Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética. Mês da Bíblia 2010 - Texto para o povo. Elaborado por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj.

sábado, 18 de setembro de 2010

A Cruz na Fonte Q: o critério avaliativo do seguimento

Rita Gomes, nj*

Nossa pesquisa parte de uma hipótese fundada sobre outra hipótese. Mas isto não significa divagação ou invenção. No campo da pesquisa bíblica no qual o acesso aos materiais é muitas vezes difícil e estes são escassos, então trabalhar sobre hipóteses torna-se uma exigência. A vantagem é que estas podem ser descartadas se não demonstram consistência na argumentação ou confirmadas pela comunidade científica, mesmo que permaneçam na condição de hipótese. Chega-se ao consenso, pelo critério da plausibilidade e confiabilidade, até que se alcance outro tipo de conclusão. É esse precisamente o caso do documento “Logienquelle”, “Quelle” ou simplesmente “Q”, uma hipótese tão bem aceita a ponto de ter sido construído um enorme edifício sobre seu alicerce.

Nossa intenção é chegar a uma compreensão maior do lugar ocupado pela “cruz” de Cristo no documento Q. Partimos da constatação a que chegou Konings (2009, p. 17) num estudo sobre a relação de Paulo com os Evangelhos. O autor detectou a ligação profunda entre Marcos e Paulo e abriu espaço para se pensar a relação destes com Q. Daí sugere uma tradição única “petropaulina” e a tradição de Quelle, sendo a cruz de Cristo, enquanto elemento soteriológico, a principal distinção entre as duas tradições. Nossa tese é que a única incidência da cruz em Q é muito significativa, apesar da ausência do relato da paixão.

Procuraremos nos aproximar da questão através da comparação entre Marcos e Q para perceber, por contraste, como cada tradição nos apresenta a cruz e tentar apreender as razões disto. O versículo escolhido para o estudo é determinado pelo documento Q, no qual a cruz é citada uma única vez. Em Marcos a cruz é central e há várias citações. Mateus e Lucas, nos anúncios da paixão, seguem claramente sua fonte primária. Por isso em nossa pesquisa, o versículo escolhido em Marcos encontra-se no primeiro anúncio da paixão e será comparado com Q 14,27. Uma vez que não é nosso objetivo aqui fazer uma comparação sinótica dos anúncios da paixão, a escolha do versículo marcano é justificada por ser a primeira referência à cruz no Evangelho e por marcar uma mudança capital na direção da narrativa.

1 A cruz em Q: qual o seu papel?

Para avaliar em Q a presença da cruz e, portanto, seu alcance faz-se necessário analisar a única incidência desta no documento. Esperávamos que se encontrasse na parte conhecida habitualmente como “discurso missionário”, o que frequentemente não acontece. Voltaremos a este ponto. Antes veremos uma apresentação geral de Q para situar melhor a questão.

Uma das maiores dificuldades para o estudo de uma pequena parte de Q em relação ao seu conjunto reside no fato desse documento ter sido reconstituído a partir de dois testemunhos, no caso os evangelhos de Mateus e Lucas, e por isso retrabalhado. Daí pode-se inferir a quanto material de Q não temos acesso e quantas dificuldades o seu estudo levanta.

Quando se analisa qualquer perícope nos evangelhos, parte-se de sua localização ou contextualização numa unidade menor ou seções e depois em sua relação com o texto completo. Esse processo possibilita revelar a importância do texto estudado em seu conjunto e avaliar a mensagem e o peso que o autor dá aquilo que é transmitido. Em Q isto não é tão simples e seguro.

Há várias propostas de agrupamento dos materiais reconstituídos. Sua estrutura apresenta notáveis diferenças. A estrutura proposta por Kloppenborg (GUIJARRO OPORTO, 2006, p. 42) situa nosso dito na seção intitulada “Entrar pela porta estreita” que corresponde aos textos de Q 13,24—14,35 (e não à seção “discipulado e missão”), seguida pela seção nomeada “O reino de Deus está dentro de vós” que versa sobre as condições e características do reino. Já Montes Peral, seguindo Hofmann, ao trabalhar o discipulado em Q, situa o dito sobre “carregar a cruz” juntamente com outros textos que tratam do seguimento. Aliás, elenca estas passagens como centrais Q 9,57-60; Q 14,26-27; Q 17,33 (MONTES PERAL, 2006, p. 230).

1.1 O texto em Lc e Mt

Nosso texto dentro do Evangelho de Mateus situa-se no “discurso apostólico ou missionário”. Em Lucas encontra-se dentro da seção da “grande viagem para Jerusalém”. Nesta seção lucana há vários materiais que tratam de temas diversos tais como a missão, o discipulado, as exigências e características do reino.

Isto lança a pergunta: por que na estrutura de Q, os grandes estudiosos o colocaram numa seção à parte da seção “discipulado e missão”? Esperamos ao final das considerações ensaiar uma resposta. Agora vejamos os textos e procuremos perceber se há diferenças e, em caso positivo, tentar indicar qual seria o mais fiel à sua fonte.

Lucas 14,27

Mateus 10,38

o[stij ouv basta,zei to.n stauro.n e`autou/ kai. e;rcetai ovpi,sw mou( ouv du,natai ei=nai, mou maqhth,jÅ
kai. o]j ouv lamba,nei to.n stauro.n auvtou/ kai. avkolouqei/ ovpi,sw mou( ouvk e;stin mou a;xiojÅ

Cada um dos evangelista usa três verbos. Apenas um coincide nos dois textos e em formas diferentes, o verbo eivmi. Em Mt está no indicativo presente ativo, na 3ª pessoa do singular (e;stin) e em Lc no infinitivo presente ativo (ei=nai). A indicação verbal “tomar a cruz” apresenta uma diferença significativa. Mt usa o verbo lamba,nw no indicativo presente ativo na 3ª pessoa do singular; e este tem dupla acepção, tanto pode representar o aspecto de violência como de acolhida. Lc opta pelo verbo basta,zw também no indicativo presente ativo na 3ª pessoa do singular. Este também tem dupla acepção. Significa carregar: alguém ou algo, um fardo ou filho no seio. Daí que esse mesmo termo é usado em Lc 11,27. avkolouqe,w e e;rcomai são usados por Mt e Lc respectivamente. Embora sejam termos distintos, não representam nenhuma mudança ou matização do sentido. Significam seguir, ir a pós, ir pelo caminho, etc.

A diferença mais significativa está mesmo no uso dos termos lamba,nw e basta,zw. O primeiro usado por Mt aponta para uma clara ressignificação da cruz. Esta era o sinal de um império violento e humilhante, o sinal do terror contra aqueles que o ameaçavam ou desafiavam seus interesses. Passou a ser o símbolo que refreia a violência. A cruz passa a ser o sinal do Reino de Deus que ironicamente indica os limites do império romano. Não responder positivamente a tal chamado é não ser um discípulo “não merecedor (a.;xioj) de mim”. O segundo, preferido por Lc insinua uma ligação mais forte, mais intensa entre aquele que carrega e a cruz que é carregada. A cruz passa a ser um elemento constitutivo daquele que segue. Ainda uma coisa é digna de nota nestes textos, sua formulação negativa.

2 A cruz em Mc: morte salvadora e condição de seguimento

No Evangelho de Marcos a morte de cruz é ponto central. Toda a narrativa se encaminha para a cruz. Ela é seu ápice. A morte de cruz é propriamente a revelação de seu messianismo característico e sua morte é redentora. Não é possível pensar a mensagem de Marcos à margem de uma teologia crucis. A catequese do discipulado é feita ao longo de toda narrativa. É preciso caminhar com Jesus e aderir ao seu caminho que não é de vitória fácil e nos moldes do pensamento humano.

A primeira menção à cruz em Marcos se dá logo após a confissão messiânica de Pedro em Cesaréia de Filipe. O primeiro anúncio da paixão segue imediatamente a confissão de fé petrina. O ensinamento de Jesus sobre a condição de seu seguimento situa-se nesse lugar. É exatamente neste contexto que se localiza o dito sobre a cruz (Mc 8,34b). Este aparece em forma de um quiasmo.

A Ei; tij qe,lei ovpi,sw mou avkolouqei/n

B avparnhsa,sqw e`auto.n

B' kai. avra,tw to.n stauro.n auvtou/

A' kai. avkolouqei,tw moi

A Se alguém quer me seguir,

B renuncie a si mesmo

B' tome a sua cruz

A' e siga-me.


Assim B’ é o reflexo de B. “Tomar a cruz” está intimamente relacionado com “renunciar a si mesmo”. Em Marcos a morte de cruz de Jesus, enquanto salvadora, não apresenta nenhuma dificuldade, tanto que Lucas e Mateus retomam claramente, e praticamente sem alterações, os anúncios e o relato da paixão.

3 À guisa de conclusão

Em Marcos a cruz aparece como condição para o discipulado, está presente no chamado. É condição de possibilidade do seguimento de Jesus Cristo “Se alguém quer me seguir renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Em Q a fórmula negativa marca a compreensão da cruz, ela serve de critério para verificar a autenticidade do discípulo, é critério de discernimento do discipulado “Quem não toma a sua cruz e não me segue não é digno de mim”.

Parece lógico pensar que na Quelle a cruz pode aparecer como um elemento constitutivo da experiência cristã porque “carregar a cruz” indica nos relatos evangélicos uma exigência do seguimento. O fato de que os documentos cristãos já são elaborações pós-pascais não pode ser negligenciado, pois retratam a experiência de explicitação teológica do dado escandaloso da morte de cruz. É a ressurreição, em última instância, que guia a reflexão de todo o acontecido com Cristo e o documento Q, por ser um escrito cristão, não está fora desta lógica.

Poderíamos pensar a ausência do relato da paixão na Quelle e, portanto da morte de Jesus como elemento soteriológico, a partir de duas considerações. Primeira, a cruz fora negada e por isso não fazia parte do anúncio. Assim sendo teríamos como conseqüência uma negação da confissão messiânica de Jesus, pois a cruz apareceria como negação da messianidade, como o fracasso da pretensão messiânica de Jesus. Ele seria apenas mais um profeta e sua morte um acidente de percurso.

Segunda, a aceitação do messias crucificado lido à luz da Ressurreição não tinha degenerado numa exaltação do Cristo glorioso, tão ansiado na difícil situação das comunidades perseguidas. Esta leitura, ao contrário, revelaria uma etapa anterior à experiência de perseguição violenta que atingiu a comunidade primitiva e que teve como conseqüência uma exacerbação do Messias Glorioso esperado na parusia. Esta teve como conseqüência a necessidade de acentuar a identidade entre o Ressuscitado e o Crucificado. Isto é o que encontramos em Paulo e Marcos.

Estamos propensos a pensar a ausência da morte salvadora de Jesus na Quelle a partir da segunda possibilidade. Enquanto documento mais antigo, Q refletiria um anúncio no qual não se fazia necessário acentuar a morte de cruz. Por isso, a única incidência da cruz em Q aponta para o reconhecimento ou não da autenticidade dos seguidores de Jesus, confessando o Cristo, mas ela permanece, mesmo que implicitamente, como elemento constitutivo da experiência cristã.


* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.

Referências Bibliográficas

GUIJARRO OPORTO, Santiago. Ditos primitivos de Jesus: uma introdução ao “Proto-evangelho de ditos Q”. São Paulo: Loyola, 2006.

KONINGS, Johan. Paulo, Jesus e os Evangelhos. Theologica (Braga), II série, vol. 14, fasc. 1, p. 13-27, 2009.
MONTES PERAL, Luis Ángel. Tras las huellas de Jesús: seguimiento y discipulado en Jesús, los Evangelios y el “Evangelio de dichos Q”. Madrid: BAC, 2006.

SCHIAVO, Luigi. A fonte dos ditos de Jesus (Q): interpretações e hipóteses, Fragmentos de Cultura. Goiânia, v. 13, n. 5 set/out, 2003.

domingo, 12 de setembro de 2010

Jonas: conversão e missão - encontros com o povo - 2

CNBB*

Aprofundamento 2: A salvação pertence a Deus (Jn 2,9)

A maioria dos estudiosos concorda que o capítulo dois do livro de Jonas consiste de um salmo agregado posteriormente ao texto primitivo. O argumento principal dos estudiosos é que se trata de uma ação de graças pelo livramento de um perigo de morte (Jn 2,3). O salmo rompe o desenrolar da narrativa sendo que 2,11 é a continuação do que está em 2,1, mostrando que o relato seria coerente sem o salmo .

A primeira parte da oração (2,1-4) trata de angústias e esperanças. Por causa da aflição, o salmista clama a Deus, do lugar mais profundo (o abismo), que significa o mar, o sepulcro ou a angústia (cf. Sl 88,7). Ele sente que se afoga, é como um náufrago, pois está longe da presença de Deus, mas tem a esperança de que após a superação da tribulação, finalmente, louvará a Deus no Templo de Jerusalém (cf. Sl 42 e 43). Isso mostra que a oração de Jonas é composta a partir de vários salmos antigos.

A segunda parte trata da libertação de um perigo de morte (2,5-7). O salmista sente que as águas o rodeiam, ameaçando a vida dele (cf Sl 69,1), mas imediatamente afirma que foi salvo quando estava afundando no desespero. Sua oração testemunha que Deus atende o clamor dos aflitos.

A última parte do salmo (2,8-10) é sobre a adoração ao Deus verdadeiro em contraposição à idolatria. Agora o salmista exorta a todos que se mantenham perto de Deus. O autor apresenta um contraste entre os que buscam a idolatria e os verdadeiros adoradores. O salmista termina confiando que um dia irá ao Templo para oferecer os sacrifícios prometidos (sacrifícios de louvor, cf. Os 14,2b). A gratidão é um compromisso com Deus: quem ama quer comprometer-se com a pessoa amada.

O salmista conclui com um reconhecimento de que a salvação vem do Senhor (cf. Sl 3,8; Sl 68,19-20). E nós podemos concluir, a partir de Jesus Cristo, que a salvação de Deus pode se estender a todas as pessoas, sem exceção; basta que lhes chegue a boa-notícia do perdão de Deus e que elas, por sua vez, respondam positivamente a tão grandiosa graça.

*CNBB - Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética. Mês da Bíblia 2010 - Texto para o povo. Elaborado por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A omissão à luz do sacrifício pelo pecado (Lv 4,1-5,2)

Rita Gomes,nj*


Introdução

A motivação primeira para uma reflexão sobre a omissão enquanto pecado vem de uma preocupação contínua com a vida comunitária e o papel representado por cada membro no seio de uma comunidade concreta. Segundo o ensinamento dos Evangelhos se um irmão pecar contra ti deves admoestá-lo; se mesmo assim não se resolve a questão deves buscar testemunhas (Mt 18,15-16). A consciência de que fazemos parte de um corpo nos obriga a fazer algo diante de situações de pecado; obriga-nos a não nos omitirmos.

O Pe. Caetano Minette de Tillesse[1] afirmava com toda confiança, para não dizer segurança, que “diante de Deus seríamos julgados não pelo que fizemos de errado, mas pelo bem que deixamos de fazer”. Não sabemos em que “autoridade teológica” ele se apoiava para tal afirmação, por isso, prefiro crer que vinha da experiência de vida e de fé acumulada ao longo de seus oitenta anos, quase todos dedicados ao estudo da Escritura, nela buscando a luz para guiar sua vida e missão em Deus e com Deus.

À luz desta afirmação e experiência de fé, tomadas a princípio como verdadeiras, buscamos uma aproximação entre o “Confiteor” e o “hatta΄t” do livro do Levítico, para tentarmos perceber o que tal idéia tem a nos dizer hoje. Como pode ressoar na vida dos fiéis modernos. O que tem a comunicar aos religiosos comprometidos duplamente, com a comunidade de fé, a Igreja e com a pequena comunidade a qual pertence.

1 A Igreja e a consciência do pecado
É no mínimo instigador perceber que os pecados são mencionados quase sempre em contextos litúrgicos. Precisamos distinguir “o pecado” e “pecados”. O primeiro refere-se à condição humana refletida em sua globalidade e como tal teve todo um desenvolvimento doutrinal que não será abordado aqui, pois não é esse o objetivo deste escrito. O segundo, objeto próprio deste estudo, refere-se às situações concretas de nosso dia-a-dia, às nossas ações livres. Tem haver com nossas escolhas e deliberações e aí repousa o cerne da questão. A Igreja aí surpreende.

Constantemente, mesmo entre membros comprometidos acusa-se a Igreja de acentuar demasiadamente o pecado, gerando assim cristãos excessivamente escrupulosos. Lembramos que um pouco disso se deu na Idade Média com relação ao desenvolvimento da doutrina do “Pecado Original” e a discussão sobre a justificação provinda da Reforma e não aos pecados nomeados “mortais” ou “veniais”. Esses sim tratados na teologia moral. Mesmo estes são tematizados enquanto reiteram um afastamento da vontade salvífica de Deus por parte do ser humano. Devemos constatar estarrecidos que não é bem como pensávamos.

2 A recitação do Confiteor
Minha tese é que a omissão se constitui como falta grave e talvez a mais grave, sendo terreno propício a outros erros. Mas ela aparece somente na confissão sacramental da penitência e mesmo assim em último lugar, como podemos observar:

"Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos e irmãs, que eu pequei tantas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões: por minha culpa, minha tão grande culpa. E peço a Virgem Maria, aos anjos e santos, e a vós, irmãos e irmãs que rogueis por mim a Deus. Amém"

Esse é o texto atual, mas essa oração de confissão conheceu uma história distinta até 1962. O Missal Romano trazia uma fórmula um pouco diversificada, mais longa e o termo “omissões” não aparece. A omissão é acrescida à oração e colocada como par dos “atos” na revisão do Rito Romano posteriormente.[2]

Demasiadas vezes recitamos essa confissão sem levar bastante a sério o que pronunciamos. Quando o fazemos, reconhecemos que “deixamos de fazer um bem porque assim o decidimos”. Considerando que “pecar” é, segundo o testemunho bíblico, errar o alvo e “omitir” é decidir não agir em favor de outrem para o bem[3], creio ser razoável julgar mais sério o segundo caso.

Mas, não é assim tão simples. Tal reflexão poderia parecer estranha ao pensamento hodierno. Não é ela também carregada de peso? Não acentua muito o aspecto do pecado em detrimento da Boa Nova trazida pelo Cristo? Refletir sobre a omissão enquanto pecado, buscando afirmar uma severidade não testemunhada claramente na História da Teologia não é, no fundo, seguir na contra mão do pensamento teológico moderno? Esperamos ter as respostas a essas questões ao final do nosso percurso. Analisemos agora o sacrifício pelo pecado segundo o testemunho bíblico presente no Livro do Levítico.

3 Levítico e os sacrifícios pelo pecado (hatta΄t)
Do mesmo modo que o Confiteor, a omissão não aparece de modo claro e inequívoco. Aliás, o termo como tal não aparece no testemunho escriturístico do sacrifício levítico. Os sacrifícios no livro do Levítico são amplos e entre eles importa ressaltar o hattat e o asham. Por quê? Porque para os israelitas, os sacrifícios tinham que ser acompanhados pela intenção (kavanah) de voltar ao bom caminho. Isso supõe uma consciência moral do pecado enquanto erro do alvo. Nisso reside o problema da interpretação dos textos bíblicos.

A distinção entre hattat (sacrifício pelo pecado) e asham (sacrifício pelo delito) teve interpretações diversas. O primeiro parece ser mais amplo e abrange desde as faltas involuntárias contra algum preceito da Lei até o caso específico da omissão de um testemunho (Lv).

Partindo desse pressuposto Willi-Plein[4] estuda os sacrifícios num horizonte que ela denomina “perturbação da ordem” estabelecida na criação. Ela chega à conclusão que o hattat não tem nenhum aspecto moral. A moralidade, segundo ela, aparece no asham, tanto que é neste segundo que se segue a ordem de um ressarcimento.

Já René de Vaux[5] conclui que os dois são muito próximos e o sentido dado a eles é diverso desde a Patrística, chegando a conclusões diametralmente opostas entre os autores.

Fílon pensava que o hattat expiava as faltas involuntárias contra o próximo, o asham as faltas involuntárias contra Deus e toas as faltas voluntárias. Segundo Josefo, a distinção seria entre os pecados cometidos sem testemunhas e os pecados cometidos diante de testemunhas. Origenes tirava a diferença da gravidade do pecado: o hattat para as faltas que mereciam a morte, o asham para as faltas que não a mereciam. Santo Agostinho define o peccatum como um de pecado de comissão, o delictum como um pecado de omissão, ou bem o primeiro como uma falta voluntária, o segundo como uma falta involuntária.

Há ainda autores que defendem a distinção entre hattat e asham como sendo da ordem da relação entre as faltas cometidas contra a divindade e contra o próximo. Seja como for não há um consenso em relação ao acento tipicamente moral destes sacrifícios.

À guisa de conclusão
Não encontramos nada, na história da teologia, que comprove uma acentuação dada à omissão enquanto pecado. Apesar das divergências a respeito da interpretação do texto bíblico, a idéia de fundo da Escritura e da confissão expressa no Confiteor é: mesmo o que deixamos de fazer tem conseqüências e somos responsáveis por elas. Se há responsabilidade, há uma moralidade implícita que não pode ser ignorada.

Não é nossa intenção acrescentar pesos a cargas já pesadas, mas a responsabilidade pelas conseqüências do que deixamos de fazer é um dado inalienável para quem tem consciência da essência da vida cristã, uma vida em prol do próximo, como foi a vida de Jesus, uma pró-existência. Nesse sentido e só nesse podemos afirmar com o Pe. Caetano o peso da omissão. É dentro do contexto de uma vida totalmente entregue em benefício de outrem que a omissão pode aparecer de forma tão danosa e preocupante.

Não esqueçamos que Jesus ao aplicar a chamada “regra de ouro” faz uma inversão na mesma. Não mais é expressa na negativa e sim positivamente: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles;” (Mt 7,12). Não se trata de cumprir simplesmente a Lei, mas viver segundo o espírito da Lei; não visa primeiramente coibir e sim promover a vida plena, a vida em comunhão de justiça com Deus e os irmãos.

Notas:
* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1] Pe. Gaetan Minette de Tillesse, sacerdote belga, exegeta renomado e radicado no Brasil há mais de trinta anos e fundador do Instituto Religioso Nova Jerusalém.
[2] Vincenzo RAFFA, Mistagogia della Messa: dalla storia e dalla teologia alla pastorale pratica. Roma: Colizioni liturgiche, 2003, p. 227-236.
[3] Segundo o dicionário Houaiss: ato ou efeito de omitir (-se); ato ou efeito de não mencionar (algo ou alguém), de deixar de dizer, escrever ou fazer (algo); Rubrica: termo jurídico: ato ou efeito de não fazer o que moral ou juridicamente se deveria fazer, e de que resulta, ou pode resultar, prejuízo para terceiros ou para a sociedade.
[4] Ina WILLI-PLEIN. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2001, p. 91-104.
[5] René de VAUX. Les Sacrifices de L'Ancien Testament. Paris: J. Gabalda e Cie, 1964 (Les Cahiers de la Revue Biblique), p. 82-100.
[6] Id. p. 88-89.

domingo, 5 de setembro de 2010

Jonas: conversão e missão - encontros com o povo - 1

CNBB*

Aprofundamento 1: Levanta-te, vai à grande cidade e proclama... (Jn 1,2)

Com a expressão “o Senhor dirigiu a palavra a...” o texto bíblico nos remete aos antigos profetas. Mas a profecia não é previsão do futuro e sim Palavra de Deus ao ser humano por intermédio de um porta-voz, o profeta. Entretanto, a atitude de Jonas é oposta às dos antigos profetas. Estes, estavam sempre diante da face de Deus (1Rs 18,15; Jr 15,19), numa atitude típica de obediência. Jonas, contudo, vai para longe da presença do Senhor. Em Is 66,19, Társis é uma das comunidades que nunca ouviu falar do Deus de Israel; portanto, naquela época se acreditava que a presença de Deus não estaria naquele lugar. E é para lá que Jonas pretende ir fugindo de Deus e de sua missão profética.

Estar “longe da face do Senhor” significa uma atitude de rebeldia. Essa expressão só ocorre mais duas vezes na Bíblia e se refere a Caim (Gn 4,13.16). Então, o autor sagrado quer nos mostrar a semelhança entre Jonas e Caim. Ambos facilmente se irritam contra Deus (Gn 4,5; Jn 4,4) e o Senhor lhes pergunta o motivo da irritação (Gn 4,6; Jn 4,9).

A raiva de ambos contra Deus é porque o Senhor não age conforme eles gostariam que agisse. Caim tem ciúmes da relação de Deus com Abel e isso o move a desejar a morte do irmão. Depois foge da face do Senhor porque sua rebelião o tornou um assassino. Jonas foge da face divina porque tem ciúmes do Senhor com os habitantes de Nínive. Para entender essa postura de Jonas é necessário conhecer a época na qual viveu o autor do livro, que determina a trama da narrativa.

Quando o livro de Jonas estava sendo escrito, a cidade de Nínive já havia sido destruída há quase três séculos (foi arrasada pelos babilônicos em 612 aC). Mas essa grande capital da Assíria entrou para a história do povo da Bíblia como símbolo do pecado e da violência. Representava o paganismo, igualada apenas às lendárias cidades de Sodoma e Gomorra (Gn 13,13; 18,20-21). Mas Deus não queria condenar a grande cidade, apesar dos muitos pecados que existiam nela. O Senhor queria salvar Nínive e por isso enviou Jonas. O autor bíblico está tão interessado em enfatizar a importância dos ninivitas para Deus que o nome da cidade aparece no início (Jn 1,1), no meio (3,1) e no fim da narrativa (4,11).

Nínive é descrita em menos de um versículo. Suas principais características são: ser uma grande cidade e ter vivido uma iniqüidade que chegou até Deus. Três dias seriam necessários para atravessá-la (Jn 3,3), enquanto a antiga Jerusalém era percorrida em menos de uma hora; mas a expressão “três dias” ou “terceiro dia” tem um significado teológico: é um jeito de expressar o tempo da salvação ou da ação de Deus em favor do justo (cf. Os 6,2). Na realidade, Nínive, no livro de Jonas, é uma cidade simbólica. É a cidade da injustiça (1,1), é o símbolo do mundo pagão.

O autor de Jonas escolheu a cidade de Nínive para simbolizar um mundo sem Deus porque a capital do antigo império assírio entrou para a história como implacavelmente cruel, com suas “guerras de conquistas, espoliações, deportação de populações, trabalhos forçados, imposição de tributos exorbitantes, inúmeros saques, terras devastadas” [1].

Apesar de tantos anos terem se passado, Nínive continuava sendo o símbolo da “injustiça, da crueldade, do sangue derramado, em suma, o símbolo do mal” (Idem).

Na mentalidade de um judeu daquela época não podia haver gente pior que os ninivitas, mas autor bíblico afirma que foi para com eles que o Senhor demonstrou muita misericórdia apesar de conhecer seus graves pecados.

Nota
____________
[1] MORA, Vincent. Jonas, São Paulo: Paulinas, 1983, p.29.

*CNBB - Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética. Mês da Bíblia 2010 - Texto para o povo. Elaborado por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Jonas: conversão e missão - encontros com o povo

CNBB*
No final do século V AC, ou início do século IV aC, os judeus estavam incomodados porque, apesar de todas as profecias contrárias, uma nação após outra investia contra Israel. Os judeus se perguntavam porque o Senhor ainda não tinha julgado e castigado os ímpios. Naquela época, no retorno do exílio da Babilônia (por volta de 530 aC), os descendentes de Abraão se fecharam num gueto e tomaram uma postura extremamente nacionalista e de repúdio a todos os que não pertenciam à descendência de Israel.
O livro de Jonas quis mostrar às pessoas daquela época que uma atitude extremamente nacionalista significava uma negligência, por parte dos descendentes de Abraão, de sua vocação mais sublime que é ser uma bênção para as nações, luz do mundo e sal da terra.
Se Deus quis abençoar todos os povos através de Abraão, isso é sinal de que não quer destruí-los, mas achegá-los a si. O Senhor ainda não julgou as nações porque falta alguém que anuncie a misericórdia de Deus para com os ímpios. Falta a proclamação do perdão divino.
O livro de Jonas tem como tema a misericórdia e o perdão de Deus para todos, não apenas para os bons ou religiosos. O Senhor é compassivo para com judeus e gentios e, não só para com os seres humanos, mas também em relação aos demais seres da criação. No livro de Jonas é afirmado que a misericórdia de Deus foi estendida até mesmo sobre o pior império que já existiu, representado nesse livro bíblico pela grande cidade de Nínive. O autor bíblico quer convencer os leitores de que o fato de uma pessoa não pertencer ao povo de Israel não a torna um mau sujeito. Atualizando Jonas, pode-se dizer que se uma pessoa não pertence à nossa religião/Igreja isso não significa que seja inimiga de Deus ou pecadora. Da mesma forma que afirma a misericórdia de Deus para todas as pessoas, o livro de Jonas critica a quem se acomoda ou se recusa a anunciar o perdão e o amor divinos para aquelas ovelhas que ainda não estão no aprisco do Senhor.
Desde o início, os estudiosos desconfiaram que o personagem Jonas não é histórico no sentido exato, por causa de alguns paradoxos presentes na narrativa:
- nenhuma criatura marinha é capaz de engolir um homem inteiro e mantê-lo vivo no estômago por três dias;
- não consta no livro o nome do rei assírio que decretou a penitência e não há nenhum registro disso nos antigos documentos da Assíria encontrados pela moderna arqueologia;
- em muitas lendas das civilizações antigas há menção a alguém que é tragado por um grande peixe e depois se safa de forma extraordinária;
- o livro de Jonas nem uma vez menciona os termos Israel, profecia e profeta.
- o termo hebraico kikayon quer dizer “efêmero” e, geralmente, é traduzido por mamoneira, mas nenhuma planta desse tipo cresce numa noite e seca em uma hora.
O livro de Jonas não é uma narrativa com exatidão histórica. Mas os acontecimentos históricos estão por baixo do personagem que foi criado para transmitir uma mensagem. Não existiu de fato um Jonas, mas vários Jonas, ou seja, todas as pessoas daquela época que estavam negligenciando a missão de falar da misericórdia de Deus para todas as nações. A ficção foi criada para denunciar, com maior ênfase, a realidade histórica da época do autor e de seus primeiros leitores. Jonas é uma novela humorística, do mesmo gênero literário como aquelas que passam na TV, mas é através do humor e da ficção que o autor denuncia o nosso comodismo.
É importante ler o texto dentro do seu contexto para não corremos o risco de ficarmos com a leitura do livro de Jonas ao pé-da-letra, impedindo-nos de perceber a grande verdade que é dita por trás do humor.

*CNBB - Comissão Episcopal para a Animação Bíblico-Catequética. Mês da Bíblia 2010 - Texto para o povo. Elaborado por Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj.