segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Bíblia e Contemplação

O sentido etimológico da palavra contemplação é o ato de fixar o olhar em algo, em alguém, ou em si mesmo, com encantamento. Também pode ser o olhar atento ou embevecido. O ato de contemplar faz parte da cultura humana desde a antiguidade. Na Grécia, os grandes filósofos buscavam na contemplação da natureza a razão ou compreensão a respeito de tudo. Dessa atitude surgiram os grandes questionamentos sobre a existência dos seres e o sentido da vida. E as três perguntas essenciais ao ser humano: de onde viemos, quem somos e para onde iremos? Essas questões são, ainda hoje, pertinentes. As ciências humanas especificamente a filosofia, buscam encontrar respostas para essas questões. Contudo, para o cristão, por mais que a filosofia encontre respostas, ela não oferece sentido primeiro para a vida, porque este somente é possível dentro de um relacionamento amoroso com Deus. O cristão procura na sua fé o sentido de sua existência. Portanto, é precisamente na Sagrada Escritura que ele irá encontrar as respostas para guiar sua caminhada existencial.

É, pois, numa atitude de contemplação, não no sentido apenas de “olhar mais atentamente”, mas, no “mergulhar” nessa Palavra, que é Reveladora de Deus. (Sl 119,16), que o cristão, diferente do filósofo, vai olhar mais atentamente para a Escritura buscando perceber nela a Voz de Deus que lhe interpela. Contemplar segundo a experiência cristã significa saborear as coisas divinas, deixar-se conduzir por Deus (Sl 119,16; Sl 27,4;Sl 62,3; Sl 63,2).

As origens da contemplação na Igreja
A espiritualidade cristã encontra na contemplação uma forma de intimidade profunda e amorosa com o Deus vivo, mediante a fé. Essa experiência de Deus está presente na Igreja desde os seus primórdios. Os primeiros cristãos buscaram encontrar na Sagrada Escritura, através de uma leitura orante da Palavra, o alimento de sua fé, esperança e caridade. Essa forma de oração tornou-se conhecida como Lectio Divina. Essa expressão vem de Orígenes, o qual dizia que devemos ser como Rebeca: todos os dias voltar à fonte, que é a Escritura. E o que não conseguirmos por esforço próprio, devemos pedir em oração 
pois é absolutamente necessário rezar para poder compreender as coisas divinas
A Lectio divina é uma forma de oração que nos dispõe para o dom da contemplação. Não é o único modo de oração, mas, uma forma bastante eficaz e muito difundida na Igreja. A Lectio divina se tornou a espinha dorsal da vida religiosa. Desde o monaquismo do deserto a Palavra de Deus que era ouvida, lida, meditada e rezada, inspirou o surgimento e a organização das regras de Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento. A sistematização da Lectio Divina em quatro degraus aconteceu no séc. XII. É atribuída a Guigo, um monge cartuxo, que escreveu a obra A escada dos monges, livro que apresenta quatro degraus espirituais: a leitura, meditação, a oração e a contemplação. São poucos os degraus, mas para o monge, atinge uma altura imensa, inacreditável, uma vez que liga céu e terra. A contemplação é, pois, a elevação da mente sobre si mesma que, suspensa em Deus, saboreia as alegrias da doçura eterna. Os mosteiros, naquela época, eram considerados centros de aprendizado e de espiritualidade para leigos e religiosos. Por meio deles, a comunidade mantinha contato com esse modo de oração que alimentava e fortalecia sua fé.

Os quatro passos da leitura orante
Lectio (leitura) – é a leitura feita com a disposição de escutar com fé a Palavra de Deus, é a leitura espiritual, é deixar-se conduzir pelo Espírito Santo. É predominante uma atitude de escuta.
Meditatio (meditação) - Após ouvir a palavra divina, temos o desejo intenso de uma maior aproximação, desejo de acolher essa palavra de amor em nossa vida, refletindo como melhor respondê-la.
Oratio (oração) – é o colóquio de amor entre Deus e o orante, é o falar com Deus. A palavra tendo penetrado no coração, dilata-o, toca-o de tal forma que o atrai para o Amor ardente de Deus.
Contemplatio (contemplação) - esse é o momento em que o orante sente-se inteiramente de Deus. Como o apóstolo Paulo disse já não sou eu quem vivo mais "é Cristo que vive em mim". Deixar Deus ser Deus em nós, agir em nós, porque por Ele "nos movermos e existirmos".
 
Através da leitura orante buscamos experimentar o que a própria Escritura nos diz
a Palavra está muito perto de ti na tua boca e no teu coração, para que a ponha em prática (Dt 30,4).
Ela está na boca pela leitura; no coração pela meditação e pela oração; na prática pela contemplação.
O objetivo da Lectio divina é o mesmo contido na Escritura
comunicar a sabedoria que leva à salvação pela fé em Jesus Cristo (2Tm 3,5).
A leitura orante é um modo de orar com a Bíblia de forma tão simples e fácil que nos conduz à contemplação, não se entende como foi esquecida por tanto tempo na Igreja. Como tinha sido praticada pelas ordens monásticas, os cristãos em geral não têm conhecimento dela. Esse esquecimento se deve ao fato de que houve um período da história da Igreja em que a leitura da Bíblia não era estimulada. Foi o período da história chamado pela Igreja de Contrarreforma ou Reforma Católica. A Lectio divina veio a ser estimulada a partir do Concílio Vaticano II, o qual trouxe ares de renovação a todos os setores da Igreja. Na oração de abertura do Concílio percebemos o desejo de reacender o fogo do amor divino em todos os fieis. A recomendação da Dei Verbum de que a Escritura deveria ser lida com espírito orante nos mostra seu retorno às fontes da oração cristã, a Lectio divina (DV.25): 
Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração a fim de que se estabeleça o colóquio entre Deus e o homem, pois ‘a Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos.
Com a redescoberta ou retorno à leitura orante da Bíblia temos também a volta da prática da contemplação. A experiência contemplativa parece ser um privilégio reservado apenas a uma elite cristã, os monges. No entanto, há muitos leigos que praticam esse modo de orar com a Palavra,  inclusive, há grupos em várias igrejas que promovem a Lectio divina. A contemplação é a meta final da Lectio divina, é um descanso em Deus, um olhar amoroso é cume ou síntese da oração. Para Santo Agostinho, através da leitura da Bíblia, Deus nos devolve o olhar da contemplação e nos ajuda a decifrar o mundo e a transformá-lo para que seja novamente Revelação de Deus, teofania. O cristão contemplativo não só medita a palavra, mas a realiza, não só a ouve, mas a coloca em prática. Não separa o dizer e o fazer. Como primeiro degrau é a leitura com a disposição de escutar, o silêncio torna-se indispensável para se conseguir progredir nos degraus da contemplação.

O silêncio como atitude fundamental da vida contemplativa
 Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o Único Iahweh! Portanto amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! (Dt.6,4ss).
O texto acima é conhecido como credo de Israel, ou Shemá, aquilo que resume a fé e a atitude do fiel diante de Deus: a escuta da Palavra do Deus Único de Israel. O verbo Shemá em hebraico significa: ouvir, prestar atenção, dar ouvidos, entender, examinar, discernir. O Deus de Israel convida o seu povo e cada um de nós hoje a ter uma atitude silenciosa diante de sua presença santa. Estar em silêncio significa fazer calar em nós todas as vozes e ruídos interiores que podem nos impedir de ouvir a voz do Senhor e de conhecer sua vontade, atrapalhando nossa relação com Ele. A atitude de silêncio é entrega total de si mesmo, renúncia, abandono nas mãos do Pai, confiança plena em um Deus que nos acolhe em seus braços, como uma mãe que acalenta o filho e o ama. Silenciar diante de Deus significa deixar-se conduzir por seu amor inefável sabendo que, na sua presença, só resta ao ser humano calar-se diante do Mistério Divino, como fez Jó (42,5s).

A contemplação cristã
Contemplar a Deus é experimentá-lo na realidade de nossa vida. É experimentar a presença do Deus de Jesus, Misericordioso e Libertador, sabendo que estamos em suas mãos. Essa experiência nos é apresentada por Jesus nos Evangelhos. É pela leitura, meditação, oração que nos aproximamos e nos tornamos íntimos da Palavra de Deus, do Pai de Jesus e nos tornamos filhos no Filho. A contemplação cristã tem sua singularidade, ela é diferente da forma de contemplação humana ou religiosa, pois se refere a Cristo e a seu seguimento. Ser um cristão contemplativo significa seguir a Cristo e participar de sua contemplação ao Pai. Outro fator característico da contemplação cristã é que ela não é fruto do esforço humano através de exercícios de concentração como nas religiões orientais, mas, da ação do Espírito Santo orando em nós (Rm 8,26s).

A contemplação cristã não é etérea, incorpórea, ela é encarnada e comprometida, alimenta-se da vida, da ação e da fraternidade vivida em comunidade. A experiência do Deus de Jesus nos leva a destruir os falsos deuses, os ídolos que habitam em nós, é uma experiência purificadora, como foi para o povo de Israel em sua caminhada com Deus. Significa um caminho irreversível de morte do homem velho, egoísta, idólatra, para um renascer do homem novo que vive pelo Espírito. Quando a Palavra divina se encarna em nós, de tal forma que nos identificamos com ela pela contemplação, quando nos alimentamos com o livro que é doce na boca (Ez 3,3), ela chega até as entranhas. Tendo como Maria a palavra nas entranhas, escutando com os ouvidos e recebendo com o coração (Ez 3,10).

Contemplação e engajamento
O cristão mesmo quando reza sozinho, no lugar mais isolado, ele nunca está só. Quando ele ora, ora como Igreja, faz parte de um todo. Quanto mais cristão, mais contemplativo e quanto mais contemplativo mais comprometido e solidário com seus irmãos. Thomas Merton afirma:
A contemplação está fora de questão para os que não tentam cultivar a compaixão pelos outros
O evangelista João também nos fala das consequências da união com Deus: 
Nisto conhecemos o Amor: ele deu sua vida por nós. E nos também devemos dar a nossa vida pelos irmãos.(IJo 3,16)
Não pode haver diferença entre o Deus experimentado, amado em si mesmo e por si mesmo e o Deus que experimentamos na pessoa do irmão necessitado da nossa presença fraterna. Jesus que subia ao monte para orar e estar a sós com o Pai, contemplá-lo é o mesmo que se entrega ao serviço do Reino de Deus intensamente. (Mc 1,35ss). Na Ascensão, após Jesus ser elevado, os seus discípulos olhavam atentamente para o céu, quando surgiram dois homens vestidos de branco e perguntam: 
 Homens da Galiléia por que estais aí a olhar a para o céu? (At 1,11). 
Assim, todo cristão, após ter experimentado o Cristo Ressuscitado não pode ficar paralisado pela experiência, mas deve ir até os povoados e aldeias anunciando com a vida a salvação que já está em nosso meio.

Conclusão
Nos dias de hoje, temos necessidade de um tempo de silêncio dedicado a oração, de encontro com o Senhor, quando mergulharemos na sua Palavra e nos alimentaremos de sua presença. Esse tempo nos revigorará, nos preparando para todas as adversidades que nos esperam. Como cristãos, todos os dias precisamos responder com nosso testemunho as interrogações daqueles que clamam por Deus, que necessitam encontrá-lo através de nós. É nessa contemplação, nesse mergulhar em Deus e retornar a superfície de nossa existência, que traremos conosco o olhar amoroso de Deus por seus filhos.

Bibliografia

GALILEA, Segundo. O Caminho da espiritualidade: visão atual da renovação cristã. São Paulo: Paulinas, 1985.

GALILEA, Segundo. Contemplação e engajamento. São Paulo: Paulinas, 1976.

Hall, Thelma. Lectio Divina. São Paulo: Loyola, 2001.

A leitura orante da Bíblia. Coleção: Tua Palavra é vida. São Paulo: Loyola, 1990.

PASCUAL, Rafael. Contemplação. In: Dicionário Teológico da vida consagrada. São Paulo: Paulus. 1994. p. 296-299.

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA.In: Compêndio do Vaticano II: Decretos, Declarações. Petrópolis: Vozes, 1996.

TERRA. João. Lectio Divina. Revista de Cultura Bíblica, n. 55, São Paulo: Loyola, 1990. p.96-102.
 

Ir. Luciene Lima Gonçalves, membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, é doutoranda em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020).  É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007). E-mail: lucienelima324@gmail.com