quinta-feira, 14 de outubro de 2021

A unção dos enfermos na Carta de Tiago

 

O texto de Tg 5,14-16 é precedido por um convite à oração (Tg 5,13), seja como reação ao sofrimento, seja como louvor pela alegria. É nesse contexto sobre a necessidade de orar em todos os momentos que se apresenta a unção dos doentes na Carta de Tiago.

"Mande chamar os anciãos (πρεσβύτερος, presbyteros) da Igreja para que orem sobre ele, ungindo-o com óleo (ἔλαιον, élaion) em nome do Senhor. A oração da fé salvará (σώζω, sózo) o doente, e o Senhor o erguerá (ἐγείρω, egueiro); e se tiver cometido pecados, estes lhe serão perdoados. Confessai, pois, uns aos outros, vossos pecados e orai uns pelos outros, para que sejais curados (ἰάομαι, iáomai)" (5,14-16).

Neste ponto é preciso conhecer um pouco a terminologia usada por Tiago:

ἐγείρω egueiro = dá a ideia de estar no controle das próprias faculdades. Significa despertar do sono, acordar, despertar da morte, fazer levantar, chamar de volta da morte para a vida, fazer levantar de um assento ou cama, trazer para diante do público para falar, insurgir-se contra o poder político, construir, erigir. No Novo Testamento, muitas vezes é traduzido por ressuscitar.

ἔλαιον, élaion = óleo de oliva (azeite) em seu sentido material serve como combustível usado em lâmpadas, de remédio para os doentes, veículo do perfume para ungir a cabeça e o corpo em tempos de festa. Aqui é necessário fazer uma distinção. Não se trata do crisma (khrîsma χρῖσμα), termo grego usado pela LXX (tradução do Antigo Testamento para o grego). Na LXX, o crisma era o óleo utilizado em cerimônias com finalidade de consagrar alguém como rei, sacerdote ou para ungir objetos que teriam uso litúrgico. Por exemplo:

“Toma o vaso de azeite (χρῖσμα), derrama-o sobre sua cabeça e dize: Assim diz o SENHOR: Ungi-te rei sobre Israel” (2 Rs 9,3).

ἰάομαι iáomai = curar, sarar, tornar perfeito, livrar de erros e pecados, levar alguém a salvação.

πρεσβύτερος, presbyteros = pessoa de idade avançada, ancião, líder de povos, sênior, antepassado, idoso membro do sinédrio, ancião que gerenciava os negócios públicos e administrava a justiça. Entre os cristãos designavam os anciãos que presidiam as assembleias (ou igrejas).

σώζω, sózo = salvar, manter são e salvo, resgatar de um perigo ou da destruição, poupar alguém de sofrer (de perecer), curar, restaurar a saúde, livrar das penalidades de um julgamento.

Pelo vocabulário, não fica claro os motivos pelos quais uma pessoa era ungida com óleo nos inícios da Igreja. Tudo indica que era apenas para que a pessoa tivesse um conforto e para que a comunidade se sentisse responsável pelos que estavam sofrendo com alguma enfermidade. A comunidade, ao se sentir responsável, enviava seus líderes até o enfermo para que os ungissem com óleo e orasse por ele. Fica claro que essa unção não tinha como objetivo curar o enfermo, mas lhe dá conforto e o encaminhar a Deus, para que o Senhor fizesse o melhor por ele.

Como os anciãos líderes (presbíteros) da comunidade eram leigos e o óleo não era o crisma, ainda não se trata do sacramento como foi instituído posteriormente, mas fundamenta biblicamente a prática da Igreja de se responsabilizar pelas pessoas enfermas. Trata-se apenas de um fundamento bíblico para o que veio a ser o sacramento da unção dos enfermos.

O texto de Tg 5,14-16 insuflou os debates entre a Reforma e a Contrarreforma. A XIV Assembleia do Concilio de Trento definiu a extrema-unção como sacramento instituído por Cristo e tornado público através de Tiago. Também ficou definido por Trento que os presbíteros da Igreja, que Tiago aconselha chamar, não são simplesmente membros idosos, mas sacerdotes ordenados pelo bispo. Entretanto, não se tem nenhuma prova de que o sacramento da unção dos enfermos tenha sido usado tão cedo. Da mesma forma, quando Tiago escreveu não existiam ainda os ritos de ordenação de presbíteros, diáconos ou de bispos.

É necessário esperar pelo século III para encontrarmos referências explícitas à prática da unção dos enfermos de forma mais elaborada. Em finais do século IV e no século V já encontramos fórmulas explícitas de bênção do óleo para uso na unção dos enfermos. Neste período ainda não são conhecidos nenhum ritual da unção dos doentes, mas apenas as orações de bênção do óleo pelo bispo. O óleo é que era considerado sacramento e não a sua aplicação pelo  “ministro” sobre o doente.

Somente nos finais do século VIII e inícios do século IX aparecem os rituais da unção dos enfermos. Os primeiros rituais apresentam uma só fórmula para a unção das partes do corpo onde se encontram os 5 sentidos e/ou da parte do corpo “onde a dor era mais intensa”. O mais interessante na evolução da teologia da unção dos doentes ao longo da história é que nos tempos mais antigos o sacramento aparece como “remédio” contra a doença; na Idade Média, começa-se a suplicar para além da cura corporal, o perdão dos pecados cometidos com as várias partes do corpo que são ungidas cada uma com uma fórmula própria; finalmente, as fórmulas de unção são praticamente apenas fórmulas de absolvição dos pecados.

A visita aos enfermos e a oração pelos amigos doentes eram encorajadas no Antigo Testamento (Sl 35,13-14). O óleo de oliveira era usado como remédio na Antiguidade. O livro de Levítico (14,10-32) ordena a unção com óleo no ritual de purificação da lepra. Isaías (1,6) menciona feridas que são amolecidas ou aliviadas com o óleo. Jeremias (8,22) pressupõe o poder curativo do bálsamo de Galaad.

Ungir com óleo em nome do senhor é a primeira atitude que se espera que os presbíteros façam. A prática descrita em Tg 5,14-15 pode ter sido vista como uma continuação do que Jesus havia ordenado: “Curai os enfermos que ali houver” (Lc 10,9). “Eles expulsaram muitos demônios e curavam numerosos enfermos, ungindo-os com óleo” (Mc 6,13). Na expressão “em nome do Senhor”, no texto de Tiago está implícito que se trata de realizar uma ordem de Jesus dada aos discípulos em contexto de envio para a missão. Os presbíteros eram simplesmente membros mais idosos da comunidade, e a oração e a unção eram simplesmente a atividade destes, nada disso tinha a ver com “clero”.

A orientação para confessar os pecados uns aos outros apenas mostra como na cultura daquela época, a cura de um doente tinha muitas vezes um acento especial porque o pecado era visto como raiz e causa da enfermidade. Nos evangelhos, Jesus se apresenta como médico (Mt 9,12; Lc 4,23), e para aqueles que ele curava, ser “salvo” implicava, tanto em ser curado da enfermidade quanto em receber o perdão dos pecados.

O doente era visto em sua totalidade e não de modo compartimentado, por isso, a igreja tem a ver com a doença como reação da fé prática e combate ao fatalismo. Cristo crucificado e ressuscitado é o fundamento dessa fé prática. O Senhor que sentiu nossas dores e venceu a morte está presente na vida daqueles que estão enfermos e a liderança da Igreja presentifica isso na visita e na oração pelos doentes.

A importância do uso do óleo tem a ver com o conforto que proporciona ao enfermo e tem a ver com a unidade do ser humano: físico, psicológico e espiritual. Na Antiguidade o óleo era usado como remédio para a cura, na dimensão física do ser humano. O óleo também era o veículo do perfume, o qual era usado somente em momentos de grande alegria. Ao ungir o doente com óleo acrescentado com essências perfumadas, os anciãos líderes despertavam naquela pessoa a memória de momentos alegres e isto lhe trazia consolo, "desorbitava" o doente de suas dores e o remetia para a totalidade da vida feita de alegrias e sofrimentos em um vai e vem, conforme a orientação de Tg 5,13. O doente também se lembrava que o óleo significava eleição divina e se concentrava na presença de Deus e não mais nas suas dores.

Ao ungir o doente com óleo, as primeiras comunidades providenciavam que o enfermo tivesse o remédio para o corpo, conforto psicológico e experiência espiritual.

Na orientação de Tiago a respeito da unção dos doentes, o acento está na oração e não na cura do doente. A salvação integral é o que há de mais decisivo nesse texto bíblico. A salvação, seja do pecado ou da enfermidade, vem da oração.


REFERÊNCIAS:

BOROBIO, D. (org.). A celebração na Igreja. Liturgia e sacramentologia fundamental. v. 1. São Paulo: Loyola, 1990.

BUYST, I. – SILVA, J. O Mistério celebrado: memória e compromisso. São Paulo: Paulinas, 2004.

CORDEIRO, J. L. (org.). Antologia litúrgica. Textos litúrgicos, patrísticos e canônicos do primeiro milênio. Fátima: Secretariado Nacional de Liturgia, 2003.

SESBOÜÉ, B. (org.). Os sinais da salvação. Séculos XII – XX. v. 3. São Paulo: Loyola, 2005. 

 

 

Ir Aíla Luzia Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas) e Palavra Viva e Eficaz (Paulus).