quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A descendência feminina no livro do Gênesis

 

Recentemente a leitura e a reflexão do livro do Gênesis me fizeram procurar a voz das mulheres na narrativa. Aos poucos fui percebendo que há uma predominância masculina não somente nesse livro, mas em toda a Bíblia. Acredito que isso não seja novidade para nenhuma mulher bem informada. Porém, pela primeira vez consegui encontrar uma voz feminina no primeiro livro do Pentateuco. Apesar de toda a tradição bíblica nos fazer recordar a escolha de Deus por homens para a sua descendência no Antigo Testamento (o que nos lembra a escolha pelos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó), foi importante perceber que há uma voz feminina, alguém com quem Deus fala diretamente, que o escuta, responde e também o obedece no Gênesis. E claramente não estou me referindo à Eva, a mãe dos viventes, aquela com quem Deus conversou e exortou depois do pecado original, não! Estou me referindo à Agar, a escrava de Abrão, depois chamado Abraão.

Acho interessante destacar a condição social dessa mulher. Ela era escrava e estava às ordens dos seus donos. Após engravidar de seu senhor por ideia da esposa dele, que era infértil segundo o texto bíblico, as duas acabaram se desentendendo e, como nas relações sociais permanece a lei do mais forte, Agar foi expulsa de casa grávida. Expulsa sem direito a nada, apesar de Abrão ser detentor de riquezas na época e Sarai ter afirmado que por meio da escrava daria um filho a seu marido, dando a entender que trataria o menino como se fosse seu. Acredito que para a época do texto bíblico e para as relações de escravidão ao longo da história da humanidade, o estranho seria se Agar tivesse saído com algum prêmio ou privilégio por seu "serviço" prestado. Agar era escrava.

Se for possível falar em privilégio para Agar, pensemos no que aconteceu depois. Diz o texto bíblico que o anjo do Senhor a encontrou junto à fonte do deserto. Ora, sabemos que no livro do Gênesis quando alguém encontra o anjo do Senhor encontra o próprio Deus. Pois bem, vemos na continuação do capítulo 16 que o anjo do Senhor fala diretamente com Agar. Inicialmente perguntou para onde iria, ao que ela respondeu com sinceridade: "estou fugindo de Sarai, minha senhora." (v. 8). Após mandá-la voltar para casa, lemos: "E o anjo do Senhor acrescentou: multiplicarei a tua descendência de tal forma que ninguém a poderá contar..." O anjo fala mais que isso, ele faz revelações sobre seu filho. Mas fiquemos com esse trecho, que talvez seja o mais forte de todo o capítulo. Deus afirma que vai multiplicar a descendência de Agar, a mesma promessa que faz para Abrão em vários momentos do livro bíblico.

Fiquei pensando se houve alguma outra mulher a quem Deus fez essa promessa no Pentateuco. A descendência é um privilégio masculino ao longo de toda a Bíblia. Por isso vemos que o mais importante é mencionar o homem. A mulher fica em segundo plano e um mesmo homem pode ter filhos com várias mulheres, basta observarmos os homens do primeiro livro bíblico para constatarmos essa afirmação. Abraão casa com Sara, mas concebe também com a escrava egípcia, depois casa com Cetura (Gn 25,1), com quem teve outros filhos; Esaú, filho de Isaac e Rebeca, também casa com duas mulheres, Ada e Oolibama (Gn 36,1-2); já Jacó, seu irmão, casa-se com duas irmãs, Lia e Raquel, e ainda concebe com as escravas das duas, Zelfa e Bala (Gn 29,30). Como sabemos não foi o próprio Jacó quem escolheu o casamento dessa maneira, pois foi enganado pelo sogro e depois suas mulheres que propuseram as escravas para a concepção dos filhos, mas é interessante observar que somente o homem poderia ter esse triste destino de ser enganado e poder se unir a mais de uma mulher ao mesmo tempo. À mulher esperava-se que obedecesse ao pai quando jovem e depois de casada, ao marido, e também era preceito que fossem capazes de gerar filhos para a descendência masculina, caso não engravidassem eram condenadas a viver a vergonha pública. Por isso elas procuravam encontrar subterfúgios para dar essa descendência aos seus esposos.

Mas continuando a reflexão, podemos afirmar que encontramos no capítulo 16 pela primeira vez no texto bíblico, ainda que de forma tímida, a menção a respeito de uma descendência feminina.

Após essa leitura, por um tempo tentei imaginar o motivo de ter sido justamente uma escrava a "escolhida" para essa promessa de Deus. Os mais tradicionais dirão que foi em referência a Abraão, afinal o filho da escrava era também filho dele e Deus já havia mencionado o assunto com esse senhor em outros capítulos. Porém, algo me diz que havia mais que isso. Se foi mesmo por Abraão, então por que o próprio anjo não mencionou o personagem na conversa com Agar? Pensar sobre essa cena me fez pensar que talvez a própria condição dessa mulher tenha sido propícia para essa mensagem do anjo de Deus. Agar, por ser uma escrava em fuga, não tinha quem respondesse legalmente por sua vida. Ela, diferente de Sara, era uma mulher que não vivia atrás de um semblante masculino por justamente não haver nenhum homem que a amparasse; ela teria que se amparar sozinha. Talvez o infortúnio de Agar tenha justamente facilitado a cena que lemos no capítulo 16. Por não ter um homem que a representasse, é o próprio Deus quem fala com ela.

Após essa reflexão, fiquei pensando se não poderia ter sido também de uma escriba feminina a voz que falou nesse trecho. Talvez uma mulher como que disfarçada de homem a escrever dando voz a outras mulheres apagadas ao longo da história. Talvez seja muita fantasia da minha cabeça. O mais importante é ficar com a mensagem principal do texto bíblico: até mesmo uma escrava pode ser escolhida por Deus, mesmo em tempos tão distantes. Talvez isso, já no primeiro livro bíblico, demonstre o que foi percebido mais claramente somente a partir da vida de Jesus e dos ensinamentos dos apóstolos: Deus não faz acepção de pessoas. (Dt 10,17; At 10,34; Rm 2,11; Ef 6,9). 


Por Rosilene Souza, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e membro do grupo Mulheres da Palavra - formado por leigas do Instituto Religioso Nova Jerusalém.