quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O endemoniado geraseno (Mc 5,1-20)


Marcos foi o primeiro evangelho a ser escrito e conforme a tradição acredita-se que tenha surgido em Roma. Os estudos modernos o situam por volta do ano 65d.C.

É um evangelho querigmático, ou seja, traz o primeiro anúncio da boa-nova que produziu grande impacto na vida das pessoas no primeiro século de nossa era. Em Marcos vemos Jesus manifestando seu poder nos exorcismos, na palavra anunciada com autoridade, no anúncio da chegada do Reino de Deus. Jesus se denomina o Filho do Homem e o Servo Sofredor que deve dar sua vida pela salvação da humanidade, uma interpretação dos Cânticos do Servo no livro de Isaías, especialmente o capítulo 53.
É consenso entre os estudiosos que o Evangelho conforme Marcos está dividido em duas partes:

1ª parte Mc 1,1- 8,26 – “Quem é esse Jesus?” Trata sobre a identidade do taumaturgo que realiza milagres, que proclama a palavra como quem tem autoridade (1,28), que expulsa demônios e que é uma figura enigmática para seus ouvintes.

2ª parte: Mc 8,27-16,20 “O messias ‘diferente’”. Após a realização dos grandes feitos, de Jesus, fica claro para os leitores que ele é o messias. No entanto Jesus afirma não ser aquele tipo de messias esperado pelo o povo, pelos fariseus, escribas e pela sua família e até mesmo pelos seus discípulos.

O trecho que vamos refletir, sobre o endemoniado geraseno (Mc 5,1-20), está localizado na primeira parte, sobre a identidade de Jesus. Não há dúvidas de que esse é um dos mais desconcertantes e escandalosos de todos os relatos de milagres e exorcismos presentes nos evangelhos. O que dizer de um demônio que tenta passar a perna em Jesus e acaba sendo ele o enganado?

Nesse relato temos a estrutura clássica de um exorcismo:
1. encontro entre Jesus e o possesso,
2. Resistência do demônio,
3. ordem de sair dada por Jesus,
4. saída do demônio,
5. reação dos que testemunharam o exorcismo.

Trata-se de um exorcismo realizado em terras pagãs. Como todo exorcismo significa a vitória de Jesus sobre Satanás. Temos esse mesmo relato com algumas modificações também em Lc 8,26-39 e em Mt 8,28-34.

Em Marcos temos uma obra dramática sobre um homem possuído por um espírito impuro numa região pagã, do outro lado do Mar da Galileia. Alguns elementos no texto nos revelam que o território era pagão:
→Ele habitava nos sepulcros (v.2.3.5), lugar considerado impuro e impróprio para se morar pelos judeus.
→ Identifica o Deus de Israel como Deus altíssimo, a forma habitual utilizada pelos pagãos.
→O nome do espírito impuro é legião, termo militar que indica um destacamento de aproximadamente 6.000 soldados romanos.
→Temos ainda a presença dos porcos, que aos judeus era proibida a criação e a ingestão desse animal por ser considerado impuro segundo as normas da tradição judaica (Lv 11,7; Dt 14,8).
→ do outro lado do Mar, na região conhecida como Decápole, que era uma confederação de dez cidades numa região não judia, habitada por povos sírio e gregos na margem do Mar da Galileia.

Todos esses elementos nos revelam que esse é um caso especial de exorcismo em favor de um pagão que se transformou em modelo da atividade libertadora de Jesus em terras pagãs.

Além dessa passagem temos no evangelho de Marcos outros episódios que revelam essa abertura da salvação aos pagãos: a cura da filha da mulher siro-fenícia (7,24-30) e a cura do surdo-gago (7,31-37). Pode ser uma releitura marcana de algumas passagens do Antigo Testamento nas quais aparece uma visão universalista da salvação como em Is 65,3-5; Sl 107,10-15, que se aplicam bem à passagem sobre o endemoniado geraseno.

A atividade de Jesus como exorcista é um sinal da chegada do Reino de Deus (Mt 12,28). Ele tem poder para libertar um homem atormentado que vivia as margens da sociedade devolvendo-lhe a saúde física e psíquica. Nessa passagem constatamos que o poder de Jesus, atravessa as fronteiras pagãs e é manifestado em todo aquele que crê na boa-nova.

Vai para tua casa e para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o Senhor na sua misericórdia.
Aquele homem após ser libertado do espírito impuro que o possuía, está agora sentado (posição do discípulo), vestido e em pleno uso da sua razão. Ele pede a Jesus para estar com ele, estar com Jesus era o que caracterizava o discípulo (Mc 3,14), pois o reconhece como seu salvador. No entanto ainda não era o momento de admitir entre os seus discípulos um pagão e nem andar com um recém curado como prova de seu poder.

A reação dos habitantes daquele lugar após a manifestação do poder de Jesus sobre os demônios é a mesma dos judeus. Ficam assombrados e pedem que ele vá embora. Eles não reconheceram a libertação operada pelo Senhor e até o temem por esse ato. Embora eles tivessem sido libertados do domínio dos demônios, pois era uma legião que estava aprisionando aquele homem.

A morte da manada de porcos significava que toda aquela região estava livre do poder de Satanás. Jesus saiu vitorioso sobre a legião, mas não foi aceito pelos homens. Por isso, pede ao homem que fique entre os seus e anuncie todas as maravilhas operadas por Deus em seu favor. Ele se tornará de agora em diante testemunha e mensageiro, na terra pagã, da vitória sobre os demônios e que o Deus de Israel é um Deus misericordioso para com todos e que as promessas feitas aos antepassados de Israel serão agora cumpridas (Is 56,6; 66,18). A salvação não é exclusivamente para Israel, é primeiramente para o povo da aliança (Mt 10,5), mas deve ser estendida a todos (At 10).

Aqui parece haver uma oposição na postura de Jesus que sempre após as curas ordenava silenciar o acontecido. Ali em plena Decápole não havia risco de uma compreensão equivocada acerca do seu messianismo. Ir com Jesus poderia significar adotar os costumes judaicos. Ir para sua casa e anunciar o que o Senhor realizou era permanecer na sua cultura com seus costumes, mas, testemunhando a libertação oferecida por Jesus para aqueles que desejavam um novo modo de viver.



Ir. Luciene Lima Gonçalves é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020). É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Filosofia (ITEP) e Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007)