sábado, 18 de setembro de 2010

A Cruz na Fonte Q: o critério avaliativo do seguimento

Rita Gomes, nj*

Nossa pesquisa parte de uma hipótese fundada sobre outra hipótese. Mas isto não significa divagação ou invenção. No campo da pesquisa bíblica no qual o acesso aos materiais é muitas vezes difícil e estes são escassos, então trabalhar sobre hipóteses torna-se uma exigência. A vantagem é que estas podem ser descartadas se não demonstram consistência na argumentação ou confirmadas pela comunidade científica, mesmo que permaneçam na condição de hipótese. Chega-se ao consenso, pelo critério da plausibilidade e confiabilidade, até que se alcance outro tipo de conclusão. É esse precisamente o caso do documento “Logienquelle”, “Quelle” ou simplesmente “Q”, uma hipótese tão bem aceita a ponto de ter sido construído um enorme edifício sobre seu alicerce.

Nossa intenção é chegar a uma compreensão maior do lugar ocupado pela “cruz” de Cristo no documento Q. Partimos da constatação a que chegou Konings (2009, p. 17) num estudo sobre a relação de Paulo com os Evangelhos. O autor detectou a ligação profunda entre Marcos e Paulo e abriu espaço para se pensar a relação destes com Q. Daí sugere uma tradição única “petropaulina” e a tradição de Quelle, sendo a cruz de Cristo, enquanto elemento soteriológico, a principal distinção entre as duas tradições. Nossa tese é que a única incidência da cruz em Q é muito significativa, apesar da ausência do relato da paixão.

Procuraremos nos aproximar da questão através da comparação entre Marcos e Q para perceber, por contraste, como cada tradição nos apresenta a cruz e tentar apreender as razões disto. O versículo escolhido para o estudo é determinado pelo documento Q, no qual a cruz é citada uma única vez. Em Marcos a cruz é central e há várias citações. Mateus e Lucas, nos anúncios da paixão, seguem claramente sua fonte primária. Por isso em nossa pesquisa, o versículo escolhido em Marcos encontra-se no primeiro anúncio da paixão e será comparado com Q 14,27. Uma vez que não é nosso objetivo aqui fazer uma comparação sinótica dos anúncios da paixão, a escolha do versículo marcano é justificada por ser a primeira referência à cruz no Evangelho e por marcar uma mudança capital na direção da narrativa.

1 A cruz em Q: qual o seu papel?

Para avaliar em Q a presença da cruz e, portanto, seu alcance faz-se necessário analisar a única incidência desta no documento. Esperávamos que se encontrasse na parte conhecida habitualmente como “discurso missionário”, o que frequentemente não acontece. Voltaremos a este ponto. Antes veremos uma apresentação geral de Q para situar melhor a questão.

Uma das maiores dificuldades para o estudo de uma pequena parte de Q em relação ao seu conjunto reside no fato desse documento ter sido reconstituído a partir de dois testemunhos, no caso os evangelhos de Mateus e Lucas, e por isso retrabalhado. Daí pode-se inferir a quanto material de Q não temos acesso e quantas dificuldades o seu estudo levanta.

Quando se analisa qualquer perícope nos evangelhos, parte-se de sua localização ou contextualização numa unidade menor ou seções e depois em sua relação com o texto completo. Esse processo possibilita revelar a importância do texto estudado em seu conjunto e avaliar a mensagem e o peso que o autor dá aquilo que é transmitido. Em Q isto não é tão simples e seguro.

Há várias propostas de agrupamento dos materiais reconstituídos. Sua estrutura apresenta notáveis diferenças. A estrutura proposta por Kloppenborg (GUIJARRO OPORTO, 2006, p. 42) situa nosso dito na seção intitulada “Entrar pela porta estreita” que corresponde aos textos de Q 13,24—14,35 (e não à seção “discipulado e missão”), seguida pela seção nomeada “O reino de Deus está dentro de vós” que versa sobre as condições e características do reino. Já Montes Peral, seguindo Hofmann, ao trabalhar o discipulado em Q, situa o dito sobre “carregar a cruz” juntamente com outros textos que tratam do seguimento. Aliás, elenca estas passagens como centrais Q 9,57-60; Q 14,26-27; Q 17,33 (MONTES PERAL, 2006, p. 230).

1.1 O texto em Lc e Mt

Nosso texto dentro do Evangelho de Mateus situa-se no “discurso apostólico ou missionário”. Em Lucas encontra-se dentro da seção da “grande viagem para Jerusalém”. Nesta seção lucana há vários materiais que tratam de temas diversos tais como a missão, o discipulado, as exigências e características do reino.

Isto lança a pergunta: por que na estrutura de Q, os grandes estudiosos o colocaram numa seção à parte da seção “discipulado e missão”? Esperamos ao final das considerações ensaiar uma resposta. Agora vejamos os textos e procuremos perceber se há diferenças e, em caso positivo, tentar indicar qual seria o mais fiel à sua fonte.

Lucas 14,27

Mateus 10,38

o[stij ouv basta,zei to.n stauro.n e`autou/ kai. e;rcetai ovpi,sw mou( ouv du,natai ei=nai, mou maqhth,jÅ
kai. o]j ouv lamba,nei to.n stauro.n auvtou/ kai. avkolouqei/ ovpi,sw mou( ouvk e;stin mou a;xiojÅ

Cada um dos evangelista usa três verbos. Apenas um coincide nos dois textos e em formas diferentes, o verbo eivmi. Em Mt está no indicativo presente ativo, na 3ª pessoa do singular (e;stin) e em Lc no infinitivo presente ativo (ei=nai). A indicação verbal “tomar a cruz” apresenta uma diferença significativa. Mt usa o verbo lamba,nw no indicativo presente ativo na 3ª pessoa do singular; e este tem dupla acepção, tanto pode representar o aspecto de violência como de acolhida. Lc opta pelo verbo basta,zw também no indicativo presente ativo na 3ª pessoa do singular. Este também tem dupla acepção. Significa carregar: alguém ou algo, um fardo ou filho no seio. Daí que esse mesmo termo é usado em Lc 11,27. avkolouqe,w e e;rcomai são usados por Mt e Lc respectivamente. Embora sejam termos distintos, não representam nenhuma mudança ou matização do sentido. Significam seguir, ir a pós, ir pelo caminho, etc.

A diferença mais significativa está mesmo no uso dos termos lamba,nw e basta,zw. O primeiro usado por Mt aponta para uma clara ressignificação da cruz. Esta era o sinal de um império violento e humilhante, o sinal do terror contra aqueles que o ameaçavam ou desafiavam seus interesses. Passou a ser o símbolo que refreia a violência. A cruz passa a ser o sinal do Reino de Deus que ironicamente indica os limites do império romano. Não responder positivamente a tal chamado é não ser um discípulo “não merecedor (a.;xioj) de mim”. O segundo, preferido por Lc insinua uma ligação mais forte, mais intensa entre aquele que carrega e a cruz que é carregada. A cruz passa a ser um elemento constitutivo daquele que segue. Ainda uma coisa é digna de nota nestes textos, sua formulação negativa.

2 A cruz em Mc: morte salvadora e condição de seguimento

No Evangelho de Marcos a morte de cruz é ponto central. Toda a narrativa se encaminha para a cruz. Ela é seu ápice. A morte de cruz é propriamente a revelação de seu messianismo característico e sua morte é redentora. Não é possível pensar a mensagem de Marcos à margem de uma teologia crucis. A catequese do discipulado é feita ao longo de toda narrativa. É preciso caminhar com Jesus e aderir ao seu caminho que não é de vitória fácil e nos moldes do pensamento humano.

A primeira menção à cruz em Marcos se dá logo após a confissão messiânica de Pedro em Cesaréia de Filipe. O primeiro anúncio da paixão segue imediatamente a confissão de fé petrina. O ensinamento de Jesus sobre a condição de seu seguimento situa-se nesse lugar. É exatamente neste contexto que se localiza o dito sobre a cruz (Mc 8,34b). Este aparece em forma de um quiasmo.

A Ei; tij qe,lei ovpi,sw mou avkolouqei/n

B avparnhsa,sqw e`auto.n

B' kai. avra,tw to.n stauro.n auvtou/

A' kai. avkolouqei,tw moi

A Se alguém quer me seguir,

B renuncie a si mesmo

B' tome a sua cruz

A' e siga-me.


Assim B’ é o reflexo de B. “Tomar a cruz” está intimamente relacionado com “renunciar a si mesmo”. Em Marcos a morte de cruz de Jesus, enquanto salvadora, não apresenta nenhuma dificuldade, tanto que Lucas e Mateus retomam claramente, e praticamente sem alterações, os anúncios e o relato da paixão.

3 À guisa de conclusão

Em Marcos a cruz aparece como condição para o discipulado, está presente no chamado. É condição de possibilidade do seguimento de Jesus Cristo “Se alguém quer me seguir renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me”. Em Q a fórmula negativa marca a compreensão da cruz, ela serve de critério para verificar a autenticidade do discípulo, é critério de discernimento do discipulado “Quem não toma a sua cruz e não me segue não é digno de mim”.

Parece lógico pensar que na Quelle a cruz pode aparecer como um elemento constitutivo da experiência cristã porque “carregar a cruz” indica nos relatos evangélicos uma exigência do seguimento. O fato de que os documentos cristãos já são elaborações pós-pascais não pode ser negligenciado, pois retratam a experiência de explicitação teológica do dado escandaloso da morte de cruz. É a ressurreição, em última instância, que guia a reflexão de todo o acontecido com Cristo e o documento Q, por ser um escrito cristão, não está fora desta lógica.

Poderíamos pensar a ausência do relato da paixão na Quelle e, portanto da morte de Jesus como elemento soteriológico, a partir de duas considerações. Primeira, a cruz fora negada e por isso não fazia parte do anúncio. Assim sendo teríamos como conseqüência uma negação da confissão messiânica de Jesus, pois a cruz apareceria como negação da messianidade, como o fracasso da pretensão messiânica de Jesus. Ele seria apenas mais um profeta e sua morte um acidente de percurso.

Segunda, a aceitação do messias crucificado lido à luz da Ressurreição não tinha degenerado numa exaltação do Cristo glorioso, tão ansiado na difícil situação das comunidades perseguidas. Esta leitura, ao contrário, revelaria uma etapa anterior à experiência de perseguição violenta que atingiu a comunidade primitiva e que teve como conseqüência uma exacerbação do Messias Glorioso esperado na parusia. Esta teve como conseqüência a necessidade de acentuar a identidade entre o Ressuscitado e o Crucificado. Isto é o que encontramos em Paulo e Marcos.

Estamos propensos a pensar a ausência da morte salvadora de Jesus na Quelle a partir da segunda possibilidade. Enquanto documento mais antigo, Q refletiria um anúncio no qual não se fazia necessário acentuar a morte de cruz. Por isso, a única incidência da cruz em Q aponta para o reconhecimento ou não da autenticidade dos seguidores de Jesus, confessando o Cristo, mas ela permanece, mesmo que implicitamente, como elemento constitutivo da experiência cristã.


* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.

Referências Bibliográficas

GUIJARRO OPORTO, Santiago. Ditos primitivos de Jesus: uma introdução ao “Proto-evangelho de ditos Q”. São Paulo: Loyola, 2006.

KONINGS, Johan. Paulo, Jesus e os Evangelhos. Theologica (Braga), II série, vol. 14, fasc. 1, p. 13-27, 2009.
MONTES PERAL, Luis Ángel. Tras las huellas de Jesús: seguimiento y discipulado en Jesús, los Evangelios y el “Evangelio de dichos Q”. Madrid: BAC, 2006.

SCHIAVO, Luigi. A fonte dos ditos de Jesus (Q): interpretações e hipóteses, Fragmentos de Cultura. Goiânia, v. 13, n. 5 set/out, 2003.

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