sábado, 15 de outubro de 2022

O livro de Ester e o risco da anacronia* bíblica

 


O início do livro de Ester nos leva a pensar o quão prejudicial é, para quem vive no século XXI, fazer uma leitura superficial ou fundamentalista da Bíblia e trazer para o tempo atual, tão diferente daquele do Antigo Testamento, vivências e preconceitos que são próprios daquela sociedade.

Informa o texto que o rei Assuero ofereceu um banquete para todos os príncipes e seus servidores, bem como para os nobres e prefeitos de províncias, durante 180 dias. E, como era bondoso, ou para causar essa impressão no povo, ofereceu também um banquete de 7 dias para a plebe. A intenção era somente uma, no dizer de hoje, ostentar as riquezas de seu reino.

Pois bem, no texto bíblico, a rainha Vasti também quis ter o mesmo privilégio e organizou um banquete somente para mulheres, mas como a vida da mulher sempre foi difícil, principalmente nos tempos antigos, o rei a chamou para exibir sua beleza diante de todos, como se fosse um troféu. É importante mencionar que a narrativa informa que essa ordem se deu no sétimo dia de banquete, quando "o rei estava mais alegre por causa do vinho" (Est 1,9). A recusa da mulher provocou a ira do rei, que convocou os sábios para orientá-lo sobre como proceder em relação a ela.

O sábio Manucá, por sua vez, respondeu, dizendo: “‘A rainha Vasti ofendeu não só ao rei, mas a todos os príncipes e povos que vivem em todas as províncias do rei Assuero. Pois a sua atitude chegará a todas as mulheres, fazendo que elas desrespeitem seus maridos’, justificando-se assim: o rei Assuero mandou que a rainha Vasti se apresentasse a ele e ela recusou-se’” (Est 1,16b-17). Manucá concluiu que todas as esposas dos príncipes persas e medos fariam da mesma forma que Vasti e ainda instruiu o rei a promulgar um decreto para que Vasti nunca mais se aproximasse dele e que ele pudesse escolher outra mulher “melhor do que ela” (1,19). O final da então “ex-rainha” não sabemos ao certo, pois não há essa informação no livro bíblico, mas é possível deduzir pela leitura que não foi nem um pouco agradável.

O texto segue dizendo que a proposta agradou o rei, que enviou cartas a todas as províncias “recordando que os maridos são os príncipes e chefes em suas casas e que devem manter submissas as suas mulheres” (1,22). Depois disto, há o longo e rigoroso processo do rei para escolha da nova rainha.

A leitura desse trecho inicial chama muito mais a atenção do que o fato de Ester, uma mulher hebreia, ter sido escolhida rainha e ter libertado o seu povo em um momento de grande perseguição.

O que vemos no início do texto é um claro exemplo de uma sociedade que se apoia somente em homens, na qual as mulheres não têm voz, não podem desfrutar de algo natural para eles. O rei deu um banquete de 180 dias para os ricos e 7 dias para os pobres e a rainha não pôde reunir algumas mulheres para também celebrar, pois este a chamou somente para ostentar para todos a beleza que ele havia conquistado. Ele queria apenas exibi-la como um objeto de posse e ela foi punida por somente dizer “não” a essa atitude.

Nos tempos atuais, encontramos pessoas que sentem como que uma necessidade de ostentar e postar, compartilhar e viralizar na internet todas as suas riquezas, seja para que outras pessoas se curvem a elas, seja almejando um respeito maior, ou ainda apenas para se sentirem superiores.

No texto sagrado, vemos a figura do rei nessa posição. Vendo que era uma desonra muito grande, ele procura um sábio que o instrui a promulgar uma lei que aumenta ainda mais a superioridade de todos os homens sobre todas as mulheres por supor que todas as outras fariam o mesmo aos seus maridos.

Com a nossa mentalidade do século XXI, diríamos que se todas as mulheres do reino fizessem o mesmo que Vasti, estariam no seu direito, pois homens e mulheres foram criados por Deus para se complementar e se ajudar, não para a superioridade de um sobre o outro. Porém, essa não é a visão do Antigo Testamento. E esse é um grande erro que se comete ao tentar utilizar o texto sagrado para explicar e justificar nossos preconceitos. Sabemos que, ao longo dos livros, vemos leis e decretos que subjugam a imagem da mulher e que foi uma grande novidade para o povo o modo como Jesus se tratou as mulheres e com elas se relacionou. Ele se aproximou de várias, tornando-as suas amigas e discípulas; conforme a tradição, sua mãe, Maria, foi uma das que esteve presente na gêneses da igreja primitiva junto com os apóstolos.

Hoje, as mulheres não são e não devem aceitar serem tratadas como artigos de exibição, objetos e caprichos para agradar os homens. Mas essa conquista não veio apenas com o passar dos tempos, ela surgiu por meio de muito suor e luta ao longo de muitos anos.

O rei sentiu-se ofendido apenas pelo fato de a rainha não ter concordado em se exibir na frente de todos para mostrar a soberania dele e, diz o texto sagrado, que foi aconselhado a encontrar uma mulher melhor, como se a mulher fosse apenas um objeto. Ele não objetificou apenas a rainha, mas a muitas outras mulheres que "foram preparadas" para estar em sua presença, inclusive Ester, a quem ele concedeu o título de rainha. Esta mesma, em determinada passagem, informou a seu tio Mardoqueu que fazia 30 dias que não era chamada à presença do rei, visto que havia uma lei que determinava a morte imediata de quem se aproximasse dele sem ter sido chamado, a menos que ele estendesse o seu cetro de ouro “salvando” essa pessoa. Ou seja, seu interesse era tão somente mostrar, ostentar a sua força. Depois de uma longa seleção entre moças virgens e formosas, como diz o texto, a campeã, Ester, nem podia desfrutar de seu privilégio aproximando-se do rei sem temer a morte.

Ao longo da história, sabemos que esse medo foi disseminado para que todas as mulheres temessem seus maridos, pais e até irmãos. Por mais que não saibamos ao certo como se deu toda a construção da narrativa do livro de Ester, podemos tomar Vasti e as outras mulheres não mencionadas como exemplo de toda a opressão imposta sobre as mulheres ao longo dos séculos.

Ester surge nesse contexto, para além daquela que vai salvar o povo judeu da morte, ela também é uma das que ousam desafiar a soberania masculina na história do Antigo Testamento, com sua inteligência e perspicácia, pois conseguiu que o rei não somente mudasse seus planos em prol de seu povo, como também mudasse, de alguma forma, a maneira como ele olhava para as mulheres, pois Vasti sofreu duras penas por ter recusado uma ordem sua, mas Ester ouviu do mesmo rei: “ainda que pedisses a metade do reino, ela te seria concedida” (Est 5,3).

Que nesse século XXI, saibamos olhar o texto sagrado com o olhar de quem tira dele o essencial para nossas vidas, sabendo que cada texto pertence ao seu tempo, para que não caiamos no “pecado do anacronismo”, que castiga tantas pessoas ainda hoje. 

 

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* Anacronismo: erro de cronologia que consiste em situar, em uma época, personalidades, acontecimentos, ideias e sentimentos ou estilos próprios de outra. Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/anacronismo/ Acesso em 15/10/2022.

 

Por Rosilene Souza, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e membro do grupo Mulheres da Palavra - formado por leigas do Instituto Religioso Nova Jerusalém.