sexta-feira, 31 de julho de 2020

Dai-lhes vós mesmos de comer!

18º Domingo Comum  - Ano A



O texto de Mt 14,13-21 mostra que Jesus, mesmo quando estava extenuado pelas inúmeras tarefas, nunca deixou de sentir compaixão pelas pessoas. Seu exemplo se torna uma exigência para nós: devemos amar e nos sensibilizar com aqueles que têm fome de alimento material e fome de amor, justiça e paz.

O texto sobre a "primeira multiplicação dos pães" tem início quando Jesus deixa a multidão para ficar à sós. Ele acabara de ouvir sobre a morte de João Batista. Seu desejo de solidão implicava numa necessidade de oração e de reflexão. Mas a multidão não o deixava sozinho e a solução foi retirar-se, com os discípulos, do perímetro das cidades para lugares mais afastados. As multidões, porém, os encontraram. Cheio de compaixão, Jesus curou os enfermos. Então as horas avançaram e os discípulos ficaram preocupados. Pediram a Jesus que despedisse a multidão para que procurassem alimentos nos lugares mais próximos.

Não sejamos ingênuos, a maioria daquelas pessoas não se deslocaria para aquele lugar tão desabitado sem levar algum alimento. É muito provável que a maioria tivesse levado alguma provisão. Principalmente os alimentos básicos daquela região, peixe e pão.

Os discípulos se surpreendem quando Jesus disse: “dai-lhes vós mesmos de comer”. Parecia uma ordem impossível de ser cumprida e, por isso, fizeram uma objeção. Mas, alguém colocou sua provisão à disposição de Jesus o qual ordenou a todos que se sentassem como era costume nas reuniões de família, separados em grupos de homens, de mulheres, de velhos e de crianças. Dessa forma, os que eram mais fracos tinham prioridade para receber o alimento.

Em seguida, Jesus pegou o pão e o peixe, olhou para o céu e deu graças. Obviamente, o autor do evangelho queria que os leitores fizessem conexões com a Eucaristia. Ao mencionar a postura corporal de Jesus e seus gestos, Mateus sugere que Jesus pronunciou a oração judaica da bênção para o pão: “Bendito sejas tu, Senhor Deus, rei do universo, que nos dá o pão tirado da terra”. Bênção que remete principalmente à ceia pascal. Jesus fez com que seus discípulos distribuíssem o alimento. Todos ficaram saciados e sobram ainda doze cestos. O número doze tinha muitas referências simbólicas e, principalmente, representava as doze tribos de Israel.

Podemos citar aqui três interpretações diferentes desse trecho evangelho, conforme a maioria dos estudiosos da Bíblia.

A primeira é a interpretação literal. Quer dizer que devemos vê-lo como uma simples multiplicação de pães e peixes, algo mágico. E muitas pessoas consideram Jesus como um mágico que realiza milagres para entreter o público, mostrando como é poderoso.

O segundo é a interpretação figurativa. Muitas pessoas veem nesse milagre um símbolo da Eucaristia. A razão disto é a presença dos elementos que podem ser encontrados na liturgia eucarística: pegar o pão, dar graças, partir o pão e entregar aos discípulos. Neste modo de interpretar, não se trata de uma refeição em que as pessoas famintas ficam saciadas, mas de uma refeição em que se alimentam do pão espiritual, a Eucaristia.

Há uma terceira opinião que une as duas primeiras. Imaginemos a seguinte cena. Lá está a multidão. É fim de tarde e eles estão com fome. Faz parte daquela cultura levar provisões para onde quer que fossem. Além disso, a multidão sabia para onde Jesus estava indo (que era lugar desabitado), tanto que chegou lá antes dele. Mesmo assim nem todos devem ter levado alimento consigo.

Quando a noite se aproximou, as pessoas sentiram fome. E ninguém queria partilhar o próprio alimento porque em regiões desérticas a sobrevivência está em primeiro lugar, e partilhar água e alimento é muito arriscado. Aquelas pessoas ficaram com medo de partilhar porque, se o fizessem, nada restaria para si mesmas. Mas Jesus tomou a iniciativa com um convite. Então todos começaram a abrir suas provisões, compartilhar o que tinham e, antes que percebessem, havia comida mais do que suficiente para todos.

Se foi isso que aconteceu, então, não foi só um milagre da multiplicação de pães e peixes, mas foi um milagre da transformação de pessoas egoístas em pessoas generosas. Foi o milagre do nascimento do amor nos corações temerosos. Nesse caso esse acontecimento também é um sinal da Eucaristia que transforma as pessoas em um só corpo, o Corpo místico de Cristo, que é a Igreja.

Em todo caso a alimentação da multidão nunca deve ser tomada como prova do poder de Jesus. A ênfase do texto é na compaixão que Jesus teve pelas pessoas, na providência amorosa de Deus para com suas criaturas, na dimensão da partilha que foi realizada e na ordem de Jesus para que seus discípulos dessem alimento aos famintos.

Por que os discípulos não pensaram em compartilhar sua provisão com a multidão? Será que eles não se importavam com o bem-estar das pessoas? Sim, eles se importavam e desejavam o melhor para a multidão. Mas, provavelmente, eles estavam simplesmente sendo realistas e práticos. Vamos ser sinceros: cinco pães e dois peixes não é nada diante de uma multidão faminta. No entanto, eles deveriam ter dado o exemplo do desapego, eles deveriam ter tomado uma atitude mais concreta porque se eram realista deveriam saber que aquela multidão não encontraria alimento suficiente nos arredores. Os discípulos transferiram o problema para Jesus. Era melhor ficar distante dos famintos. Mas Jesus devolveu o problema para eles.

Semelhante aos discípulos, desejamos o bem às pessoas, mas nem sempre temos intenção de realizar ações positivas para ajudar a amenizar a situação. E, novamente como os discípulos, o que nos impede de agir é, frequentemente, uma avaliação realista de que o pouco que podemos fazer não fará realmente nenhuma diferença. Deus é capaz e está disposto a saciar todos os tipos de fome. Mas Deus está esperando homens e mulheres que acreditam nele o suficiente para abrir mão de seus “cinco pães e dois peixes”, com os quais Deus tornará possível o milagre da multiplicação.

É aqui que vem em nosso auxílio o texto de Is 55,1-3. Em seu contexto original, essa passagem foi escrita para encorajar pessoas muito desanimadas. O bloco inteiro dos capítulos 40-55 de Isaías registra as profecias do final do exílio babilônico, quando os judeus tiveram permissão para regressar a uma terra devastada, o antigo reino de Judá.

O Profeta Isaías estava se dirigindo a pessoas cujos ancestrais tiveram uma forte experiência com Deus. No entanto, aquelas pessoas se afastaram de Deus, apesar dessas experiências. Mas Deus as convidou a terem intimidade com ele através do simbolismo de um banquete no qual se pode usufruir da melhor comida sem ter que pagar nada por ela, somente por pura gratuidade daquele Pai amoroso que deseja saciar nossa fome de amor, que deseja preencher nosso vazio existencial.

No tempo do autor, a elite de Jerusalém vivia no exílio na Babilônia, até que Ciro, o rei persa, conquistou o império babilônico e devolveu os judeus à sua terra natal, a Judeia. Mas alguns dos exilados já consideravam a Babilônia como sua pátria e não queriam se arriscar a abandonar tudo que haviam conquistado para voltar à terra dos antepassados. Ao mesmo tempo, outros duvidavam da possibilidade do retorno. Então um mal-estar geral se instalou sobre os judeus naquela ocasião. Para animar a ambos,  o capítulo cinquenta e cinco, promete alívio material e espiritual.

O texto fala sobre água em abundância, cereais, leite, vinho e pão. Menciona uma renovação da aliança que Deus havia feito com o rei Davi e com os ancestrais do povo. Enfim, há um convite de Deus aos exilados para participarem de um banquete onde nada é pago e os alimentos são as melhores iguarias daquela época e cultura.

Esse simbolismo do banquete tornava-se, nos ouvidos povo, um lembrete reconfortante sobre os bons e velhos tempos quando seus antepassados viviam na terra prometida. Essas palavras davam esperança e serviam para impedir que o povo perdesse a fé em Deus. O tempo do exílio havia sido considerado pelos exilados como um tempo de penitência porque acreditavam que estavam pagando pelo pecado de idolatria praticada quando estavam na terra prometida. O convite de Deus para um banquete era tranquilizador. Era uma maneira sutil de dizer que eles não precisavam pagar nada, que Deus estava agindo com misericórdia para com eles, apesar de não serem merecedores. O convite soa magnânimo, Deus como um anfitrião entusiasmado, orgulhoso de suas iguarias finas, recebendo convidados muito amados e há muito aguardados.

Como o convite de Deus foi compreendido pelos exilados? Para os judeus, o céu na terra  era a cidade de Jerusalém. A reconstrução da cidade daria ao povo um renovado sentido de identidade nacional como povo consagrado ao Senhor. Em Jerusalém estava o lugar para ouvir a palavra de Deus, proclamar e renovar a aliança, o Templo, o lugar da habitação divina. A cidade e seus monumentos tornavam tangível o convite à intimidade com Deus. As pessoas só precisavam responder ao chamado de retorno à terra natal. A reconstrução da cidade iria proporcionar a renovação nacional.

Esse convite à união com Deus permanece sempre atual e é feito para todas as pessoas. A intimidade com Deus preenche uma profunda necessidade comum a todos os seres humanos. Pois, fomos feitos para Deus. Sem ele, estamos incompletos. Com ele nos realizamos verdadeiramente.

É por isso que o texto de Rm 8,35.37-39 nos assegura que nada pode nos separar do amor de Cristo. Podemos pessoalmente rejeitar esse amor, mas Cristo continua a nos amar.  Muitas pessoas passam grande parte de suas vidas rejeitando esse amor até que reconhecem sua fome espiritual e começam a aceitá-lo, pelo menos de forma um pouco mais consciente.

Os primeiros capítulos da Carta de Paulo aos Romanos versam sobre o que é necessário para estar em aliança com Deus. Os primeiros destinatários da carta estavam divididos sobre essa questão. Alguns, embora reconhecessem a importância de Jesus, insistiam que, para serem salvos, era necessário observar a Lei de Moisés. Paulo, por outro lado, insistia que os gentios convertidos ao cristianismo não tinham obrigação nenhuma de praticar a Lei de Moisés, embora os judeus convertidos pudessem fazê-lo se quisessem. E Paulo provou isso com muitos argumentos teológicos complexos e profundos.

Então chegamos a Rm 8,35.37-39 que parece abordar uma questão implícita: “Se Deus nos ama tanto a ponto de nos salvar pela graça imerecida, por que tudo ainda é tão difícil para nós? Por que sofremos?” Essa passagem da Carta aos Romanos é um resumo da resposta de Paulo.

Há uma conexão entre os sofrimentos de Cristo e os sofrimentos dos primeiros cristãos, especificamente os sofrimentos do próprio apóstolo. Se as provações pelas quais Paulo passou não conseguiram diminuir sua fé nem seu compromisso com a evangelização do mundo, o que poderia então separá-lo de Deus? E, por extensão, o que poderia separar os cristãos de seu Salvador?

Para responder essas questões, Paulo abordou a totalidade das experiências humanas e tudo que era temido pelas pessoas naquele tempo: vida e morte, anjos, seres celestiais e demônios; o futuro incerto e os cataclismas provocados pela natureza e pelas guerras.

Paulo estava convencido de que nada no universo poderia nos separar do amor de Deus, dado a nós por meio de seu Filho. Paulo inferiu que nosso lugar na criação estava acima de todos os poderes que, de alguma forma, nos afetam dentro da criação e da história. Em outras palavras, nosso lugar com Deus é íntimo e eterno, pois nossa jornada neste mundo é temporária, um dia estaremos com Jesus para sempre.

O que divide os fracos dos fortes é o compromisso. A teimosia do verdadeiro seguidor de Cristo tem muito mais poder de perseverança do que a busca de vantagens pessoais momentâneas. Para o apóstolo, a fé era o compromisso decisivo, pois assegurava a intimidade com Deus para além da morte. Se o objetivo é a vida eterna, todo o resto fica empalidecido em comparação com ela. Os sofrimentos da vida, as necessidades e até a ameaça de morte não podem parar o verdadeiro seguidor do Cristo.

As limitações da vida e a morte, eventos presentes e futuros, poderes da terra e do mundo espiritual, e até mesmo o próprio universo, nada disso poderia impedir o amor de Deus pela humanidade. O lugar de todos que confiam em Deus é estar em sua presença eterna. A fé nos convence desse fato.

Paulo estava certo: a fé é o compromisso último, é o compromisso por excelência. É uma orientação para além desta vida. Enquanto se permanece nesse compromisso, é fácil confiar no amor de Deus pelo por si e por todos. Amor infalível é amor inabalável.

Quando amamos, oferecemos tudo o que somos. O amor verdadeiro aceita o que é imperfeito. Assumimos grandes riscos quando amamos. Exemplo disso é o amor de pai e de mãe por seus filhos, quando o ser humano realmente vive a paternidade e a maternidade. Quando as pessoas são realmente pai e mãe, não desistem nunca de seus filhos.

O amor humano é forte, mas outras forças podem esfriar o amor e ele pode se apagar. Não é assim com Cristo, seu amor permanece perfeito e dura para sempre, não importa como nosso coração esteja. Às vezes, não amamos a Deus o suficiente, mas o amor de Deus por nós nunca diminui.

Ir Aíla Luzia Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas) e Palavra Viva e Eficaz (Paulus).

segunda-feira, 27 de julho de 2020

AS LUZES QUE A EXPERIÊNCIA DO POVO DE DEUS OFERECE AOS NOSSOS DIAS



A bíblia é o meio privilegiado pelo qual temos acesso às antigas tradições do povo de Israel. A arqueologia, as ciências da linguagem e a etiologia, entre outras ciências, também fornecem uma base para os estudos sobre Israel e Oriente Médio antigos. É por intermédio dos textos bíblicos e do aprofundamento desses estudos, que conhecemos os diversos problemas enfrentados pelo denominado “grupo de Moisés” no período que se estabeleceram em Canaã e posteriormente quando se tornaram uma monarquia.

O contexto histórico do povo de Israel, é coberto de incertezas politicas e, em muitos casos, religiosas. De escravos do Egito, para seminômades que vagavam no deserto em busca da terra prometida, uniram-se a eles diversos povos que acreditaram na promessa do Deus libertador. Madianitas (Ex 18,1-5), cananeus (Js 6,17), moabitas (Rt 1,1418) e outros povos foram se agregando aos poucos a Israel, formando um único povo da aliança.

Muitas foram as dificuldades encontradas até chegarem à terra de Canaã, fome, sede, problemas sociais, culturais, entre outros, que as tribos tiveram que enfrentar até se estabilizarem. Mas uma coisa há de se destacar, é que sempre tiveram líderes escolhidos por Deus. Até que, sendo prescionado, Samuel indicou um rei para conduzir as tribos nos moldes da cultura dos povos vizinhos.

A miscigenação dos povos, que aconteceu na época do êxodo e nomadismo, trouxe a dificuldade de adorar a um só Deus. Passar a crer em uma só divindade foi difícil para aqueles que acreditavam em outros deuses, deusas e, até mesmo, imolavam seres humanos em sacrifícios.

Outra dificuldade a ser destacada, e que perdurou por muito tempo, foi a rivalidades das tribos do Sul com as tribos do Norte, até o período do governo centralizado, a monarquia, quando Saul foi ungido, depois Davi e por último Salomão, como reis de todas as tribos dos hebreus.

O povo de Israel enfrentou adversidades que eram próprias daquele tempo e cultura, mas que, em muitos traços, lembram infortúnios que passamos no atual cenário ocidental.

Em comparação com nossa época, vivemos em um tempo de constantes mudanças, dificuldades e descrenças. Os governantes acabam agravando e propagando esses problemas no sentido econômico, a exemplo dos reis de Israel, que se preocupavam mais com as guerras, invasões de terras e ambições que com o povo. Da mesma forma que os reis de Israel colaboraram co a idolatria, os governantes atuais colaboram com o crescimento da secularização e o progressivo avanço da perda dos valores que antes eram compreendidos como sendo religiosos e que hoje estão perdendo aos poucos sua sacralidade. Unido à secularização encontramos o materialismo, segundo o qual o que interessa é o ter cada vez mais. A opulência do poder, interessa demasiadamente mais que valores que condizem com uma vida melhor.

Como a sociedade israelita, em especial o Brasil é um povo miscigenado, um povo de muitas misturas e com origem em diversas nacionalidades, que enfrenta dificuldades até parecidas com as daquela época. A busca para sair dessa situação é urgente, e é na bíblia que encontramos o caminho, para vencer todas essas adversidades.

O reino de Israel, mesmo tendo permissão divina, estava carregado de desentendimentos internos, posturas abusivas de governantes, disputa por poder, vinganças e golpes políticos. Isso não difere muito do cenário atual, e mesmo que tenham sido criadas muitas leis que resguardam a justiça e a verdade, perduram ainda muitas injustiças que já eram notadas no passado, no antigo Israel. Tudo isso acontece em decorrência do abandono dos valores e ensinamentos religiosos.

Enquanto Jesus reafirma os mandamentos “Não matarás”, “Não roubarás”, e “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”, vemos isso ser transformado em filosofias ou até mesmo em teorias que abandonam o real sentido do que é ensinado pela religião.

O “grupo de Moisés” tem muito a nos ensinar, inicialmente, a superação da indiferença e da descrença no Deus libertador, que ama e cuida de toda a comunidade. É através desta perspectiva que muitos daqueles agregados ao povo de Israel, enxergaram em Deus um herói, libertador e salvador, que sempre cumpre suas promessas. A proximidade dos povos bárbaros com o Deus de Israel é verídica, não é uma coisa abstrata e arbitraria, mas vivaz, que afetou e tocou a todos.

Por fim, as características encontradas para a vivência dos valores religiosos exigidos da monarquia de Israel, são válidas para a atualidade, desde o reconhecimento de um único Deus como salvador e libertador até a resposta concreta que se deve dar a Ele. A fidelidade que os hebreus tiveram para com o Deus de Israel, mesmo em meio a diversas tentações, deve ser também a mesma hoje, sobretudo quando se percebe que o materialismo, capitalismo e muitas outras teorias ou ideologias de poder, não trazem valores constitutivos que preenchem o vazio humano.


Ronário Mota Rodrigues é seminarista da Diocese de Itapipoca, graduado em filosofia pela Faculdade Católica de Fortaleza onde atualmente cursa o bacharelado em Teologia. Atividade para a matéria de Introdução à Sagrada Escritura, Profa Aíla Pinheiro, nj.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

A atuação das Mulheres na história do Povo de Deus




Deus criou o homem à sua imagem,
À imagem de Deus ele o criou,
Homem e mulher ele os criou.”

(Gn 1,27)


Podemos nos perguntar como é possível esquecer das mulheres na Bíblia, se elas estão presentes de uma forma tão forte e atuante. Claro que, para isso, precisamos de um olhar mais atento e perspicaz. Devemos lembrar que a Palavra de Deus é humana e divina. Ela foi inspirada pelo Espírito Santo e escrita por seres humanos, é fruto de seu tempo com todas as consequências decorrentes disso. A Bíblia surgiu em meio a uma cultura patriarcal e machista, nela a mulher tinha uma delimitação bem precisa de sua área de atuação. No entanto quando passeamos pela história da salvação vamos observando o quanto as mulheres foram além dessas fronteiras culturais, com toda a simplicidade e discrição. Usando diversas vezes as armas que lhe caiam nas mãos em situações conflituosas. Propomos fazer um passeio pela nossa história, a história do povo de Deus, e tentarmos perceber a atuação dessas mulheres de Deus, que têm muito a nos ensinar.

As Escrituras narram que no início Deus criou homem e mulher para cuidarem da terra, regarem, e a protegerem, mas, os dois (homem e mulher) foram desobedientes e por isso acabaram saindo do jardim do Éden. Contudo, o Senhor não desistiu da humanidade e a convidou a fazer com Ele uma aliança. Essa aliança foi renovada com Abraão, ele é conhecido como o Pai da fé, aquele que sendo chamado por Deus abandonou sua terra e saiu em busca daquilo que lhe foi prometido. Abraão é conhecido como o Pai da fé, porque confiou nas promessas a ele feitas. Se ele é o Pai não será Sara, sua esposa, a mãe? Não abandonou ela, juntamente com ele, sua terra e seguiram juntos confiando na palavra de Deus? Abraão teria suportado tudo e se mantido fiel, caso não tivesse contado com o apoio e a força de sua companheira Sara?

Quando Moisés foi chamado por Deus a ser o libertador de seu povo da escravidão infligida aos hebreus pelos egípcios, estava ele sozinho? Não tinha ao seu lado seu irmão Aarão e sua irmã Miriam, não foi ela que cantou o Cântico de vitória, encorajando seu povo a prosseguir até o fim na passagem do Mar Vermelho em meio a perseguição dos egípcios? (Ex 15,20).

Durante o tempo que Moisés caminhou à frente de seu povo no deserto ele contou com a ajuda e apoio de Miriam. Ela era uma mulher forte e corajosa a ponto de questionar a autoridade de seu irmão Moisés, mesmo sendo castigada por isso. Enquanto ela esteve com lepra o povo não levantou acampamento, esperou seu retorno e só então partiu (Nm 12,1-3.15-16). Isso nos revela o quanto ela era importante dentro da comunidade. Miriam é conhecida como profetisa.

Além dela temos Débora que aparece no Livro dos Juízes. Débora era uma profetisa e juíza em Israel. Naquela época os cananeus oprimiram os filhos de Israel, ela então profetizou que o Senhor daria a vitória ao seu povo e mandou reunir o exército, mas o líder Barac teve medo e exigiu a presença dela na batalha, ela foi mas anunciou que seria pela mão de uma mulher que o Senhor daria a vitória a Israel (Jz 4 e 5). Nessas situações de guerra não podemos esquecer de Judite que derrotou o chefe do exército, cortando-lhe a cabeça. Ela entrou no acampamento inimigo, ganhou a confiança do chefe e com isso deu a seu povo a vitória. Ela derrotou todo um exército porque colocou a confiança em Iahweh e não na força física ou nas armas. E Ester, a rainha, que conseguiu salvar seu povo do extermínio graças a sua intercessão? Poderíamos falar de muitas outras mulheres do antigo Testamento: Rebeca, Raquel, Lia, Tamar, Ana, Abigail, Micol, Bersabéia, Hulda, Rute, todas elas têm em comum o fato de intervirem na história de seu povo de maneira bem concreta, em situações da vida cotidiana, sempre demonstrando confiança em Deus e amor a seu povo.

No Novo Testamento Maria, mãe de Jesus representa “o resto de Israel” que permaneceu fiel às promessas do Antigo Testamento. Assim também como Isabel sua parenta, que concebeu já na velhice à semelhança de Sara. Ana, a profetisa anunciou a todos no Templo que o menino Jesus era o redentor. (Lc 2,39-38). A primeira testemunha da ressurreição de Jesus é uma mulher, Maria, Madalena, este fato é apresentado nos quatro evangelhos. A primeira pessoa a tomar conhecimento do nascimento de Jesus foi uma mulher e a primeira a saber de sua ressurreição também. As mulheres tiverem uma presença forte e atuação constante durante a vida pública de Jesus e permaneceram fiéis até o fim de sua vida terrena e anunciaram sua volta ao seio do Pai. (Lc 8,1-3). Elas seguiram o Senhor e Ele as curou, consolou e amparou em situações difíceis, sempre solícito para com suas necessidades e aflições.

Será que as mulheres de hoje se vêm representadas nessa história da salvação? Será que elas sabem da importância e atuação dessas outras mulheres que citamos acima? Conhecer o nosso passado nos ajuda a melhorar nosso presente. A mulher é antes de tudo uma fortaleza, embora muitas vezes adormecida. Ter conhecimento do que nós, mulheres, fomos capazes de fazer na história da salvação, num contexto de opressão, discriminação e repressão, nos inspira a continuar lutando de forma constante na construção desse Reino que também é nosso, pois como disse o apóstolo Paulo em Gl 3,28 : “Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; pois todos vós sois um só em Cristo Jesus.



Ir Luciene Lima Gonçalves é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020). É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Filosofia (ITEP) e Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007).