terça-feira, 28 de abril de 2015

Permanecei em mim e eu permanecerei em vós

Roteiro Homilético para o 5o. Domingo da Páscoa
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

 



I. INTRODUÇÃO GERAL
O Sl 22, com o qual respondemos às leituras de hoje, expressa o desejo de que todas as nações e gerações futuras estejam diante de Deus para adorá-lo. Por enquanto os povos ainda não se arrependeram de suas ações violentas e ainda não praticam a unidade entre si. Tampouco se consideram irmãos, já que não reconhecem o mesmo Deus e único Pai.
Tornar esse desejo, expresso no salmo, em realidade depende, em grande parte, do modo como os seguidores de Jesus vivem o mandamento do amor. Seguir Jesus ou permanecer nele significa amar incondicionalmente. Significa amar como Jesus amou, fazendo do perdão a resposta definitiva ao ódio e à violência.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Jo 15,1-8): Permanecer em Jesus
O evangelho de hoje nos mostra os elos que formam a corrente do amor: o Pai, Jesus, os cristãos. Jesus nos mostrou quanto o Pai nos ama. Agora somos nós, os discípulos, que devemos mostrar ao mundo quanto experimentamos do amor do Pai por meio de Jesus. Para isso, é necessário que os membros da comunidade permaneçam unidos.
A metáfora da videira e dos ramos ilustra bem isso. Assim como os ramos da videira estão unidos entre si pelo tronco, os cristãos somente poderão estar vinculados uns aos outros se permanecerem no mandamento de Jesus, a saber, o amor. A maioria daqueles que se dizem cristãos ainda não atentou para o fato de que “permanecer em Jesus” não significa se tornar adepto de doutrinas, mas dar adesão a alguém, a uma pessoa concreta, Jesus. O mandamento que nos une a Jesus é o amor. O exercício do amor fraterno é o sinal distintivo do cristão justamente porque é a prova de sua comunhão vital com o Senhor.
Somente unido ao tronco o ramo pode viver e frutificar: “sem mim nada podeis fazer” (v. 5). Isso mostra não somente nossa dependência de Cristo, mas também a vontade dele de nos doar sua própria vida. E é impossível ter uma vida de comunhão com Cristo, que é o amor encarnado, sem que se produzam frutos de amor – manifesto não simplesmente pela eloquência ou pela multiplicação de palavras, “mas por atos e em verdade” (II leitura, v. 18).
2. I leitura (At 9,26-31): Permanecer na unidade
A leitura fala sobre desconfiança e sobre lealdade. O texto refere-se à chegada de Saulo a Jerusalém e afirma que todos tinham medo dele, pois não acreditavam que fosse discípulo de Cristo (v. 26). As pessoas começam a ter dúvidas sobre a sinceridade da conversão do perseguidor. Parece ser algo extraordinário que a ação de Cristo sobre o principal opositor da comunidade o tenha feito mudar de vida, por isso é tão difícil acreditar.
A conversão é possível a todos, mas converter-se não é apenas passagem da incredulidade para a fé, como muita gente pensa. É, antes de tudo, um exercício de saída do egoísmo para o crescimento no amor. Sob esse aspecto, a conversão não é acontecimento pontual na vida de uma pessoa, mas a vida inteira em progresso de santidade.
É comum desconfiarmos que alguém tenha mudado radicalmente de vida de um momento para o outro, à semelhança do ocorrido com Saulo. Mas quem realmente fez a experiência amorosa com o Mestre da Galileia pode ousar dar um voto de confiança e até mesmo um passo na direção do antigo inimigo da fé, ainda que isso traga dissabores e riscos à própria vida. Assim fez Ananias, e outros seguiram esse exemplo.
Dado o voto de confiança, a comunidade prossegue guiada pelo Espírito Santo, anunciando com coragem o evangelho. Ė importante que Saulo esteja unido aos demais apóstolos e sob a ação do Espírito, que realiza a comunhão entre os novos irmãos e as testemunhas oculares de Jesus. A efetivação da missão e o crescimento da comunidade são frutos dessa comunhão. Tanto a conversão do coração quanto a unidade de todos os membros do corpo, que é a Igreja, constituem uma única ação do Espírito Santo.
3. II leitura (1Jo 3,18-24): Permanecer no amor
Crer em Jesus é amar, afirma a segunda leitura. Amor que não se confunde com sentimentalismo de novela, mas se traduz em atos de amor eficaz em favor do próximo. Ė dessa forma que os discípulos mostram que permanecem em Jesus. A comunidade está sob um novo mandamento. No Antigo Testamento, o povo de Israel encontrava sua identidade no amor a Deus e no amor ao próximo como a si mesmo (cf. Dt 6,5; Lv 19,18). O novo mandamento dado por Jesus é que amemos como ele nos amou (cf. Jo 13,34; 15,12; 1Jo 3,23). Essa é a verdadeira identidade do cristão.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Um destaque maior na reflexão pode ser dado ao seguinte versículo: “E qualquer coisa que pedirmos dele a receberemos, porque guardamos os seus mandamentos” (1Jo 3,22).
Trata-se de boa oportunidade para corrigir alguns desvios pastorais de nossa época, principalmente no que tange à ideologia da prosperidade. Será que Deus assinou um cheque em branco para nós? Teria Deus nos dado a senha de seu cartão com crédito ilimitado? Seria Deus um gênio da lâmpada de um conto de fadas, pronto para realizar nossos desejos? Em um trecho mais adiante da primeira carta de João, fica claro que Deus nos concederá o que desejarmos se o pedirmos “conforme a sua vontade” (1Jo 5,14), ou seja, quando desejarmos o que Deus deseja.
Disse Jesus: “o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dará” (Jo 16,23); mas, para pedir a Deus qualquer coisa em nome de Jesus Cristo, é preciso estar primeiramente em consonância com o modo de ser de Jesus. Pedir algo a Deus em nome de Cristo é como se o próprio Cristo estivesse pedindo. Dessa forma, somente podemos pedir o que Cristo pediria. E o que ele pediria? “Pai… não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42).
Depois de corrigir todo desvio de interpretação decorrente da ideologia da prosperidade, poderemos voltar ao nosso trecho de 1Jo 3,22, acrescentando-lhe as mesmas palavras de Jesus: “Pai, eu te agradeço porque me ouviste e eu sei que sempre me ouves” (Jo 11,41-42).
Publicado originalmente em Revista Vida Pastoral, maio-junho de 2015, Ano 56, Número 303 http://vidapastoral.com.br/roteiros/3-de-maio-5o-domingo-da-pascoa/
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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O que significa a expressão "osso dos meus ossos"?

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

Em Gn 2,23, lemos: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23).

O termo hebraico ‘Etsem, que literalmente significa ossos, ganhou o significado metafórico de essência. A palavra aparece no relato do Gênesis, depois da criação da mulher, quando o homem, encantado com sua companheira, suspira e diz algo mais ou menos assim: “Agora sim. Esta é diferente das outras criaturas. Esta é das minhas; osso dos meus ossos!”.

Mas por que osso dos meus ossos e não pele das minhas peles ou músculo dos meus músculos?

Vejamos! Os ossos são o que há de mais interno; são nossa estrutura, o que nos mantém de pé. São os protetores dos órgãos vitais. São aquela parte de nosso corpo que ainda permanece quando o corpo entra em decomposição.

Em Gn 29,14, lemos: “Tu és meu osso e minha carne”.

Esta frase faz parte do relato que conta sobre a fuga de Jacó por medo das perseguições de Esaú (cf. o artigo “Esaú e Jacó: elogio à esperteza e à teimosia”). Chegando nas terras de Labão seu tio, Jacó é acolhido pelos parentes. Tal foi a alegria de Labão de conhecer um dos seus que logo exclamou: “tu és meu osso!”. Labão usa essa palavra para expressar o parentesco que o ligaria a Jacó (Gn 29,14).

Em Ex 1,9, o faraó diz: “O povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte (‘atsoum) do que nós”. O povo é ‘atsoum, e o faraó fica preocupado como se sua própria existência fosse ameaçada diretamente pela essência (‘etsem) destas pessoas.

Em Nm 22,6, lemos: “Peço que venhas amaldiçoá-lo, pois é um povo mais forte (‘atsoum) que eu”. Balaque também reconhece uma força (‘atsoum) em Israel e quer pará-lo a todo custo pela maldição de Balaão (Nm 22,6).

Em Ez 37, o profeta vê um vale de ‘etsem. uma planície cheia de ossos de um exército que, pelo aspecto da descrição, estão ali faz muito tempo. Deus faz uma promessa a Jeremias: esse exército vai ficar de pé novamente, vai ressuscitar. A essência do povo que está no exílio da Babilônia vai reanimar-se: esta é a garantia do Senhor (cf, Ez 37,11-14). A imagem descrita por Ezequiel vem certamente de Nm 13–14: os guerreiros de Israel são mortos e seus ossos permanecem no vale. São ossos de um exército de rebeldes. Também rebeldes são aqueles que, tempos depois, foram parar no exílio, mas seu ‘etsem é forte, eles terão sua esperança de volta.

No Novo Testamento, o evangelista João, antes de afirmar que Jesus ressuscitou, retoma o livro dos Salmos e diz que seus ossos permaneceram intactos. “E isto aconteceu para plenificar a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19,36 / Sl 34,20 [21]). João quer garantir que a essência de Jesus – o Filho de Deus – não está em risco; sua vida está garantida, pois seus ossos estão inteiros. Com esta expressão João quer também indicar que Jesus é tamim, ou seja, o animal da oferta (Ex 12,46), assim como o justo que completou sua jornada (dérek tamim). João quer usar o temo ossos para falar sobre a ressurreição e dizer que Jesus é tamim (completo, íntegro).

Bom, pelas citações acima percebemos que osso na bíblia significa a essência da pessoa, sua integridade, sua completude. Podemos concluir que, ao colocar na boca do primeiro homem a expressão “osso dos meus ossos” para falar da mulher, o escritor sagrado está garantindo que homem e mulher tem a mesma essência, a mesma força, a mesma condição de vida, a mesma dignidade.

Publicado originalmente em: http://fiquefirme.com.br/multimedia-archive/5-o-que-significa-a-expressao-osso-dos-meus-ossos/

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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A mulher foi criada da costela do homem?

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Em Gn 2,7 se afirma: “Então Deus formou adam da adamah".

Geralmente as bíblias não traduzem o termo adam, apenas o transliteram, e fica parecendo que é sempre o nome de um homem, Adão. Mas traduzem o termo adamah por terra ou barro. Isso causa confusões. De fato, o termo adam não é usado exclusivamente para expressar raça humana, além desse conceito, também é nome próprio do personagem dos dois textos da criação. Mas, no contexto desse versículo, a melhor tradução para adam é “humano” ou “ser humano’, pois quando o texto hebraico quer designar especificamente o masculino usa o termo ish. O ser humano, adam, é aquele que foi tirado do “humus”, da terra, pois adamah significa o solo bom pra trabalhar, a terra que pode produzir bom fruto. Com essa afirmação de Gn 2,7, o autor quer dizer que o primeiro ser é indefinido sexualmente e deve ser escrito com minúsculas (adam).

Em Gn 2,22 encontramos: “E da tsela‘ de adam, Deus fez a fêmea”.

Da mesma forma, as bíblias geralmente traduzem tsela‘ por costela. Contudo, tsela‘ significa metade, banda, cada margem de um rio. Tsela‘ pode ser o conjunto das costelas, do lado esquerdo ou do lado direito. A melhor tradução seria: “de uma das metades de adam (humano), Deus fez a fêmea”. Da outra metade, é óbvio, Deus fez o macho. Não precisa nem falar o óbvio.

Em Gn 2,24, lemos: “Portanto, o macho (ish) deixará seu pai e a sua mãe, e se unirá à fêmea (ishah), e serão uma só existência”. Ou seja, as duas metades se encontram e se tornam adam, o ser humano original. O ser humano completo, a existência plena, não pode ser definida a partir do macho ou da fêmea, mas da beleza e da união de ambos. É bom lembrar que esses mitos, parábolas e lendas, presentes no Livro do Gênesis, fazem parte de outras literaturas do Oriente próximo, muito mais antigas que a bíblia. E até mesmo Platão (Ocidente), que é filósofo, menciona o ser humano original como hermafrodita e posteriormente dividido em duas metades. Ou seja, o ser humano completo não se encontra no gênero masculino, mas na união das duas partes.

Jesus usou Gn 2,24 para falar sobre o divórcio (Mc 10,7-9). Vejamos: a mulher era a única prejudicada pela separação naquela época (apesar de a Lei mosaica lhe dar alguma garantia, coisa que raramente era posta em prática pelo marido). A mulher poucas vezes tinha direito à herança[1], não tinha pensão do marido, não tinha emprego, não tinha nada… Uma vez repudiada pelo marido, duas opções apenas pareciam viáveis: mendigar ou prostituir-se para viver[2]. E não era raro isto acontecer. Às vezes o homem, dava carta de divórcio à mulher e deixava-a desprotegida, sem nenhum amparo[3]. Jesus, sabendo do domínio do macho, protege a mulher: “nada de dar cartas de divórcio às mulheres; a humanidade completa está na igualdade das relações e não no domínio masculino”.

Voltemos ao Gênesis. A parábola da criação do homem e da mulher é muito romântica quando bem traduzida e não há machismo algum no relato que diz que Deus fez a mulher da metade de adam. Há muito menos ainda a pretensão da bíblia de dizer como o homem e a mulher surgiram (origem do ser humano, no sentido científico). O texto quer apenas explicar a atração entre o masculino e o feminino. Esse tipo de literatura quer refletir sobre questões existenciais, por isso os antigos mitos são muito usados hoje pela psicologia e filosofia.

Mas é aí: A mulher foi feita da costela de Adão ou não? Sim e não! Sim, se entendemos que esse Adão (Adam) é o ser humano original e a costela (tsela’) é a metade dele, assim como o homem também foi feito da outra metade. Não, se entendemos que Adão é um homem e se pensamos que a costela é uma vértebra do seu corpo. Obvio até! A anatomia do corpo humano já mostrou isso: não falta uma costela no gênero masculino, como o relato da criação poderia fazer pensar aos desavisados

[1] Dos pais, caso não tivesse irmãos, a mulher ficava com a herança (cf. Nm 27,1-11). Do marido, em caso de morte, a mulher herdava por meio do filho, mesmo que este fosse criança.

[2] Uma terceira opção era casar-se novamente, mas esta não era coisa muito fácil para a repudiada.

[3] Tomemos cuidado ao ler estas linhas para não efetuarmos um juízo muito rigoroso com os orientais, afinal as leis deles são mais antigas e – em alguns aspectos – mais justas que as dos ocidentais, que só recentemente tem leis para defesa da mulher.
* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O sangue e a vida na Bíblia

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Os antigos pensavam que a vida estava no sangue e Israel participava da mesma opinião, por isso tinha três prescrições acerca do sangue (Gn 9,4 e Dt 12,23)
1ª) é proibido comer o sangue ou a carne com sangue;

2ª) é proibido derramar o sangue de outra pessoa;

3ª) é proibido oferecer sangue em sacrifício aos deuses.
Mas como os antigos chegaram a essa concepção de que a vida estava no sangue? Os passos para se chegar a esta concepção foram os seguintes:

Os antigos tinham uma medicina elementar. Mas eles notaram que o bebê só pode ser considerado vivo depois que inspira (e chora). Observaram também que uma pessoa só poderia ser considerada morta depois que expirasse (e não mais inspirasse). Deduziram que a alma estava na respiração. Então: a alma era o ar. E entrava na pessoa pelo nariz, quando esta nascia, e saia pelo nariz, quando esta morria. Então eles se perguntaram: “Durante a vida onde fica a alma na pessoa? Ou seja, que parte do corpo é a sede da alma?”.

E veio uma nova observação da realidade: os soldados feridos em batalha sangravam. O sangue, ao sair do corpo deles, borbulhava. Logo, o sangue continha ar. Enquanto existia sangue no ferido ele permanecia vivo. Mas quando o sangue saía por completo, ele morria. Logo, a religiosidade chegou à seguinte conclusão: a alma é o ar. Entra no corpo pelo nariz e vai para o sangue. Logo concluíram: a alma está no sangue. Daí a proibição de Deuteronômio. O texto de Dt 12,23 diz o seguinte:

“Somente empenha-te em não comeres o sangue, pois o sangue é a vida; pelo que não comerás a vida juntamente com a carne“

Mas que vida é esta? Em hebraico, vida é nephesh, significando também personalidade, individualidade, instinto ou emoção. A Septuaginta traduziu nephesh (vida) para o grego com a palavra psyché, que deu psique. A vulgata traduziu psyché por anima. Então, em latim, ficou assim a tradução: “hoc solum cave ne sanguinem comedas sanguis enim eorum pro anima est et idcirco non debes animam comedere cum carnibus” ( Dt 12,23). Ânima significa alma ou vida, ânimo, aquilo que anima. Logo, alguns entenderam que comer o sangue era comer a alma. Daí para a polêmica sobre a transfusão de sangue foi um pulo. Há quem condene a transfusão de sangue baseando-se no texto de Dt 12,23, argumentando, segundo a tradução da vulgata, que o sangue é a alma, e, assim sendo, quem está doando sangue está doando a alma para outrem e quem está recebendo a doação está, evidentemente também, recebendo a vida do outro. Entendem, pois, que a transfusão de sangue é o mesmo que comer o sangue.

Compreensão equivocada, certamente, que necessita de correção. A alma não está no sangue, nem em nenhuma outra parte localizável do corpo. A alma é a pessoa, sua identidade, seu modo de ser, o conjunto de características natas e adquiridas que fazem a gente ser quem é diante de si, dos outros e de Deus. Não é porque doamos sangue para alguém que tiramos um pedaço da alma. Muito menos, ao receber uma doação de sangue, recebemos a alma do doador. Recebemos sim sua generosidade, sua gratuidade em partilhar a vida e isso diz algo sobre ela, mas sua alma não vem no sangue recebido.

Que fique bem claro: na bíblia, não há nenhuma proibição quanto à transfusão de sangue. Naquele tempo, ninguém pensava sobre a possibilidade de doar sangue para outrem. Há na Bíblia uma proibição de comer sangue, o que é compreensível para aquele tempo, conforme vimos acima. Tal proibição vem de uma compreensão equivocada acerca do sopro de vida que habita em nós. Sobre a transfusão de sangue é bom dizer uma palavrinha. Para quem precisa receber sangue, nada de escrúpulos ou culpa. É só um procedimento médico como qualquer outro. Para quem doa sangue é bom lembrar: não há maior amor do que dar a vida pelo outro. Doar sangue é sinal de amor e desprendimento. Podendo ajudar, por que não fazê-lo?




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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

sábado, 18 de abril de 2015

Profetas e Profetismo em Chave Histórica 05 (final)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 
(Material Didático do Curso de Extensão na Faculdade Católica de Fortaleza)

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4. Profetas após o exílio da Babilônia: Em 539 a.C., Ciro, após unir a Pérsia e a Média, conquistou a capital Babilônia e expandiu o império até o Egito e o que hoje é a Turquia. O Edito de Ciro (538 a.C) foi um instrumento para a política de colaboração espontânea.

4.1 Trito Isaías (Is 56-66): no final do exílio o entusiasmo inicial, cedeu lugar a novos erros, por isso o profeta animou a reconstrução da religião e não só da cidade e do Templo. Sua mensagem é exigente e utópica (60—61;66). Denuncia a ganância (Is 56,11) e exige a justiça (Is 56,1). É o mais aberto: para os estrangeiros (Is 56,4-6), sobre o sacerdócio (Is 61) e os eunucos (Is 56,3-4).

4.2 Ageu (חגי, festivo): a reconstrução do Templo tinha parado por 15 anos (Samaritanos, Esd 4). Quando Dario I subiu ao trono, Ageu viu uma oportunidade para recomeçar. A instabilidade das nações é um sinal do fim dos tempos (Ag 2,21-22).
4.3 Zacarias 1-8 (זכריה, o SENHOR se recorda): Depois de uma menção ao passado e de uma exortação à geração presente (Zc 1,1-6), há oito visões (1,7-6,8), uma história simbólica de Israel, e uma consolação aos repatriados. A ação simbólica da coroação de Josué (Zc 6,9-15) descreve a era messiânica do Reino de Deus.

4.5 Malaquias (מלאכי, meu mensageiro): é desenvolvido sobre três grandes temas: as faltas dos sacerdotes e dos fiéis (1,6-2,9; 3,6-12); o escândalo dos matrimônios mistos (2,10-16) e o Dia de Javé, o dia de purificação dos maus e triunfo dos justos (3,1-5.13-21). Foi Malaquias quem profetizou a vinda do novo Elias, o último dos profetas.

4.6 Abdias (עבדיה, servo do SENHOR): consiste de um capítulo: sobre a destruição de Edom (Ab 1,1-16) e a restauração de Israel (Ab 1,17-21). Este é o menor livro do Antigo Testamento.

4.7 Joel (יואל, o SENHOR é Deus): Contém duas partes: desastre agrícola (1-2) e o Dia do Senhor (3-4). Há uma profecia Messiânica, que é citada no discurso de Pedro (At 2,39).

4.8 Zacarias II (Zc 9-14): a campanha de Alexandre Magno e a destruição de Tiro são descritas em Zc 9,1-8. Em 9,13, “gregos” (Yonia) são designados como potência hostil ao povo de Deus. Assíria e Egito mencionados em Zc 9,11-12 e 10,8-11 significam simbolicamente a Diáspora inteira.

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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).