quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

NÃO VOS PREOCUPEIS COM O DIA DE AMANHÃ

Aíla L. Pinheiro de Andrade*

Roteiro Homilético para 8º Domingo do Tempo Comum

I. INTRODUÇÃO GERAL

Muitas vezes o povo de Israel, durante períodos de sofrimento, duvidou da presença de Deus (Ex 17,7c; Is 49,14). Mas a primeira leitura nos assegura, por meio do profeta, que o amor de Deus pelo povo é maior que o amor de uma mãe pelo filho (Is 49,15). Deus jamais abandona a criatura que foi chamada à vida por amor. Contudo, com muita facili- dade as pessoas duvidam do amor e da assis- tência de Deus. Por isso, no evangelho, Jesus, o revelador por excelência do amor de Deus, garante-nos: Não vos preocupeis, vosso Pai cuida de vós (Mt 6,25). A segunda leitura nos diz que Deus manifestará as intenções dos corações (1Cor 4,5). Geralmente, o que angustia os corações é motivado pelas ambições, pelo hiperativismo e por outros interesses que tomam o tempo das pessoas e lhes dificultam um encontro pessoal com o Deus de amor.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 6,24-34): Buscai primeiro o reino de Deus

“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Mt 6,24). No idioma original, em vez de “dinheiro” está escrito “Mamon”, o deus das riquezas. O termo “Mamon” significa “te- souro”, “aquilo em que se põe a confiança”, “aquilo em que alguém se apoia”, “coisa que serve de alicerce”. Dessa forma, o dinheiro ou Mamon é um senhor tirânico que exige total atenção, que ocupa a mente de seu servidor, que lhe causa a preocupação de perdê-lo.
Para melhor compreender o que Jesus está querendo nos dizer na liturgia de hoje, tomemos um exemplo: imaginemos que alguém está se afogando e encontra uma tábua em que se pode apoiar. Essa tábua será de extrema importância para o náufrago, que acredita perecer sem esse apoio. Agora imaginemos que alguém ordene ao náufrago que solte a tábua. Certamente o náufrago recusará e lutará para não soltar seu apoio. É isso que significa Mamon, um apoio ao qual se dá total confiança e sem o qual se acredita não ser possível viver.
Muitas pessoas têm uma relação assim com os bens materiais. Não confiam em Deus porque confiam apenas neles. Por isso, não se pode servir a Deus e ao dinheiro (Ma- mon). E, quanto mais riqueza, mais fácil se torna cair na tentação de servir a Mamon. Contudo, o que Jesus ressalta é que todos os seus discípulos necessitam estar em vi- gilância para não idolatrar o dinheiro, seja ele muito ou pouco. O serviço ao dinheiro (Mamon) não se define pela quantidade dos bens, mas pela relação que se tem com eles. Jesus denuncia esse perigo e exortou seus discípulos a se dedicar primeiramente à construção do Reino, sendo tudo o mais secundário.

2. I leitura (Is 49,14-15): Eu jamais te esquecerei

As Sagradas Escrituras afirmam que “o Altíssimo cuida” (Sb 5,15). O ser humano deve viver na confiança de que Deus vela por ele. Deus guarda seus filhos em tudo e sempre. Como Pai-Mãe amoroso, ele sabe de tudo aquilo de seus filhos necessitam e não os esquece um só momento.
É verdade que existem sofrimentos e pro- vações pelos quais passa toda a humanidade. Não há nenhuma pessoa que passe uma vida inteira sem experimentar algum tipo de sofrimento. Nesses momentos, é difícil perceber o amor e o cuidado de Deus. Mas também são esses momentos que mais exi- gem a fidelidade a Deus e a confiança nele. É necessário olhar para além da dificuldade a fim de ver o amor de Deus, apesar de tudo parecer afirmar o contrário. Às vezes, não é possível encontrar nenhuma explicação para o sofrimento. Mesmo assim, nunca deverí- amos desconfiar do amor de Deus. O amor verdadeiro não tem explicação, simplesmente acontece. Temos de dar lugar ao mistério e abandonar a arrogância de pensar que tudo tem uma explicação ou que necessitamos de explicação como condição para o amor.

3. II leitura (1Cor 4,1-5): Somos servidores de Cristo

Muitas vezes, nas nossas comunidades, nos chateamos porque não temos reconheci- mento por nossas atividades. Nesse texto da primeira carta aos Coríntios, Paulo exorta os cristãos, falando a respeito de suas preocu- pações. A vida cristã não terá como centro as ambições, o hiperativismo, a busca de reconhecimento ou qualquer outra coisa que desvie a atenção do realmente importante: o amor de Deus.
É na lógica do amor e da gratuidade que Paulo afirma serem os cristãos “ministros de Cristo e administradores de Deus”. O amor que recebemos do Pai é pura gratuidade. Quando se é fiel ao que se recebe de Deus, as vãs preocupações se dissipam, deixando lugar para a ação dele na vida da comuni- dade. Quando se serve por amor, não há preocupação com o julgamento humano. Espera-se o julgamento de Deus, que conhe- ce os corações e, no devido tempo, manifes- tará a consistência das intenções humanas. Para quem ama, o louvor devido a Deus é simplesmente vislumbrar a realização da sua obra e alegrar-se com isso.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O futuro a Deus pertence! Preocupar-se demasiadamente com o amanhã é a grande tentação de não confiar que Deus sustenta seus filhos. Mas isso não significa ficar de braços cruzados, esperando as coisas caírem do céu. Significa crer que Deus cuida de seus filhos em todas as situações da vida, embora muitas vezes não seja notado. Quando não percebe- mos a presença de Deus, somos tentados a pôr total confiança nos bens materiais ou em certas pessoas. No entanto, bens e pessoas passam, pois são finitos. Somente o infinito pode dar sentido à vida humana. E o amor de Deus é eterno, infinito, perene. É esse amor que nos consola nos momentos difíceis da vida. É ele que nos impulsiona a servir a Deus na pessoa do irmão, mesmo quando não há reconheci- mento do nosso trabalho.


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

SEDE SANTOS PORQUE O SENHOR, VOSSO DEUS, É SANTO


Aíla L. Pinheiro de Andrade*

Roteiro Homilético para o 7º Domingo do Tempo Comum

I. INTRODUÇÃO GERAL

A primeira leitura destaca o mandamento “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lv 19,17-18). Para Israel, somente é possível amar a Deus se há amor ao próximo. Mas, ao longo da história, houve uma tendência de interpretar esse mandamento em sentido restrito, reservando a prática do amor apenas para o compatriota. O evangelho afirma que Jesus interpretou o preceito do amor ao próximo em dimensões universais. Por motivo algum é lícito odiar o outro, filho do mesmo Pai celeste e alvo do mesmo amor paterno (Mt 5,45). O mundo julga ser loucura retribuir o ódio com o amor, o mal com o bem, as ofensas com o perdão. Mas, na segunda leitura, Paulo ensina que os cristãos não devem se preocupar quando o mundo os julga loucos, afinal “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus” (1Cor 3,19).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1.Evangelho (Mt 5,38-48): Amai os vossos inimigos

“Olho por olho, dente por dente” (Mt 5,38; Ex 21,24) é uma antiga lei, anterior à existência do povo de Israel. Era uma lei de natureza social e não individual. Tinha por objetivo limitar os excessos de vingança de uma tribo contra outra. Israel também aderiu a esse preceito, mas o abrandou bastante com a exigência do perdão (Lv 19,17-18).
No evangelho, Jesus pede a seus seguidores que não resistam a ninguém que lhes cause algum prejuízo. Ou seja, Jesus proíbe aos cristãos resistir ao mal com a vingança. O papel dos cristãos é o combate do mal no mundo mediante a não violência, como fez Jesus na cruz.
“Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás teu inimigo” (Mt 5,43). Passagem alguma da Escritura ordena odiar os inimigos. Essa orientação teve origem em grupo judeu contemporâneo de Jesus. Em um livro, intitulado Regra da Comunidade, encontrado no século passado nas grutas próximas ao mar Morto, os judeus pertencentes ao grupo dos essênios dão essa orientação de ódio aos inimigos: “Ame o que Deus escolheu e odeie o que Deus rejeitou”.
Jesus enfrenta e condena essa postura de seus contemporâneos. Os cristãos devem amar amigos e inimigos sem exceção, pois uns e outros são filhos de Deus, todos são irmãos, todos são próximos.
A aceitação ou a recusa dessa ordem de Jesus são o critério para uma pessoa ser ou não reconhecida por Deus como filha (Mt 5,44-45). Pois, da mesma forma que o filho reflete a fisionomia dos pais, os cristãos devem, nas relações com seus semelhantes, refletir o amor de Deus para com todos os seres humanos.

2.I leitura (Lv 19,1-2.17-18): Amarás o teu próximo como a ti mesmo

A santidade é o principal atributo do Deus de Israel. Em primeiro lugar porque ele é separado, ou seja, não se confunde com a criatura. Nas civilizações vizinhas de Israel, as religiões politeístas confundiam a divindade com vários seres da natureza ou com imagens. Em Israel, ao contrário, um só era reconhecido como Deus criador, os demais eram apenas criatura. É nesse sentido que Deus é separado (santo): o Criador não pode ser confundido com a criatura.
A santidade de Deus era comunicada a todos os que se aproximavam dele ou a tudo o que lhe era consagrado: pessoas, animais, objetos. Tudo o que pertencia a Deus era separado dos demais para simbolizar a unicidade do Criador.
Nesse sentido é que o povo de Israel deveria ser separado ou diferente dos demais povos. Por isso, Israel não deve odiar, mas praticar a exortação comunitária para o crescimento pessoal; não se vingará nem terá rancor, mas amará o próximo. Agindo assim, Israel participava da santidade de Deus e se tornava diferente dos povos vizinhos, que praticavam ações contrárias a esse preceito. Isso significa a existência de uma ética inerente ao monoteísmo que não era encontrada em religiões politeístas, em cujos mitos as divindades praticavam e ensinavam o ódio e o egoísmo.

3. II leitura (1Cor 3,16-23): Vós sois de Cristo

Paulo ensina aos cristãos de Corinto que o único fundamento de sua fé é o Cristo, e não os sábios deste mundo, sejam eles cristãos ou não, pois o que é sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus.
Os cristãos são de Cristo, como Cristo é de Deus. Eles não pertencem ao mundo e, por isso, não devem reger a vida segundo os valores do mundo. Pertencendo a Cristo, os cristãos são templos do Espírito de Deus, como Cristo é o templo de Deus por excelência, lugar do encontro definitivo entre a humanidade e o Criador. Os cristãos, por meio de sua inserção em Cristo pelo batismo, com uma vida dedicada a Deus e ao amor ao próximo, testemunham a presença de Deus no meio dos povos. Ser templo de Deus, pertencer a Cristo, significa ser mediação do amor e do perdão, ser lugar do encontro com Deus. E isso é loucura para o mundo, mas sabedoria de Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O amor a Deus se reflete no amor ao próximo. Nisso consiste a vida cristã configurada a Cristo. Uma vez que o Pai ama a cada ser humano indistintamente, a vocação cristã consiste em amar o próximo não como a si mesmo, mas como Cristo o amou. Somente pelo amor as divisões são superadas, a violência extinta, a fraternidade instaurada. E, com isso, a santidade de Deus será comunicada a todos os povos.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

FELIZES OS QUE ANDAM NA LEI DO SENHOR

Aíla L. Pinheiro de Andrade*

Roteiro Homilético para 6º Domingo do Tempo Comum

I. INTRODUÇÃO GERAL

A fidelidade à Lei de Deus, melhor di- zendo, à Torá ou instrução do Senhor, é um dos temas centrais do Antigo Testamento. O amor e a fidelidade à Lei de Deus cons- tituíam toda a justiça e santidade do povo de Israel.
A Lei de Deus é boa e santa (Rm 7,12). Por isso, a Lei não foi abolida por Jesus, mas sim plenificada (Mt 5,17). Plenificar significa que não basta cumprir a materia- lidade do mandamento, mas se perguntar pela intenção de Deus ao instituí-lo. Não é suficiente uma fidelidade externa, mas faz-se necessária uma fidelidade mais pro- funda, que empenhe mente e coração. Não basta somente uma conduta que todos possam ver, mas uma reta intenção, que brote do mais profundo do coração e da mente, vista somente por Deus. Tal atitude é possível quando se é capaz de deixar-se penetrar pela sabedoria do evangelho,
“misteriosa e oculta” (1Cor 2,7), sabedoria da cruz de Cristo. Isso é andar na Lei do Senhor. Os atos meramente externos cons- tituem um legalismo severamente criticado por Jesus.


II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 5,17-37): Eu não vim abolir, mas cumprir a Lei

Jesus continua o discurso do monte, afirmando que, se o modo de agir, ou seja, se a justiça dos discípulos não for mais exi- gente que a dos escribas e dos fariseus, eles não participarão da construção do reino de Deus. É isso que mostra o evangelho na liturgia de hoje: o cristianismo é muito mais exigente que o judaísmo.
Com o termo “ouvistes” se quer contrapor o ensinamento de Jesus ao ensinamento dos escribas e fariseus. Isso não significa, como muitos pensam, uma substituição do Antigo pelo Novo Testamento. Não se trata do que foi
“escrito”, mas do que foi “ouvido” como ho- milia feita pelos doutores da Lei, os mestres do judaísmo. Trata-se da interpretação de Jesus contra a interpretação dos escribas e fariseus a respeito da Sagrada Escritura.
A novidade da interpretação que Jesus faz da Escritura está na explicitação da intenção de Deus ao dar os mandamentos. Não basta, por exemplo, não matar. Há que evitar as pala- vras de desamor, de desprezo, de ressentimento contra o próximo. Era essa a intenção de Deus ao dar o mandamento “não matarás”.
“Deixa tua oferta diante do altar” (v. 24). No Dia da Expiação (ou do Perdão, ver Lv
16), os judeus confessam os pecados cometidos contra Deus e pedem perdão durante
24 horas. Mas acreditam que os pecados contra o “próximo” devem ser perdoados por quem sofreu a ofensa, e não por Deus; por isso, primeiramente pedem perdão ao próximo para depois se dirigirem a Deus. Jesus faz uma mudança em relação ao ju- daísmo, afirmando que não somente num dia especial, mas todos os dias, os cristãos devem pedir perdão ao seu próximo para depois dirigir-se a Deus.
A compreensão dos escribas a respeito do adultério era diferente no caso da culpa da mulher e da culpa do homem. Enten- diam que a mulher cometia adultério até mesmo sozinha, no coração, quando era casada e desejava outro homem. Cometia adultério quando observava um homem para vê-lo passar ou quando se exibia para ser notada por ele. Se fosse flagrada numa dessas atitudes, poderia ser apedrejada so- zinha, porque seu adultério não dependia do consentimento de um homem. Jesus põe homem e mulher em pé de igualdade. Seja homem ou mulher, cada um comete adultério no coração. A intenção de Jesus é preservar a família e o matrimônio, e não lançar um fardo pesado demais sobre nossos ombros.
Quanto ao juramento, muitas vezes os judeus juravam sem pensar e se obrigavam a agir mesmo se descobrissem ser a vontade de Deus diferente do que foi prometido por juramento. Mesmo assim, algumas pessoas preferiam fazer algo que desagradava a Deus a descumprir um juramento, pois amaldiço- avam a si mesmas quando juravam (ver 1Rs
19,1-2). Por isso, Jesus exorta a não jurar.

2. I leitura (Eclo 15,16-21): Fidelidade é fazer a vontade de Deus

Esse texto da primeira leitura destaca a liberdade de escolha, o livre-arbítrio do ser humano diante da vontade de Deus. O autor bíblico acentua a responsabilidade humana quando decide se rebelar contra Deus.
Quem obedece à vontade de Deus, ex- pressa principalmente na Escritura, tem qualidade de vida. Se todas as pessoas cum- prissem os mandamentos de não roubar e não matar, entendidos em sentido amplo, incluindo injustiças e ofensas, a sociedade de hoje seria menos violenta.
Por isso, afirma o texto bíblico que a vida e a morte estão diante do ser humano para que ele escolha o que deseja. A vontade de Deus gera vida em plenitude, o pecado gera morte. Tanto a vida quanto a morte, enten- didas nesse sentido, são consequências das escolhas humanas.
O ser humano é livre e, por conseguinte, responsável pelas próprias ações. O mal que faz ao próximo não é culpa de Deus, pois “a ninguém Deus ordenou que fizesse o mal, a ninguém Deus deu licença de pecar” (v. 21). Deus nos deu o livre-arbítrio e a capacidade de fazer as escolhas certas.

3. II leitura (1Cor 2,6-10): Uma sabedoria que não é deste mundo

Paulo ensina os fiéis de Corinto a cultivar a sabedoria “misteriosa e oculta” revelada por Deus, que ultrapassa a sabedoria do mundo e dos poderosos.
A sabedoria de que Paulo fala é a cruz, na qual Cristo revela o Deus despojado. Na fragilidade de sua vida humana e totalmente ofertada ao Pai como dom de amor, Jesus desvenda aquilo que Deus “preparou desde toda a eternidade” para os seres humanos: o amor ao extremo. É, pois, na adesão à vida de Cristo que consiste a sabedoria divina, não reconhecida pelos poderosos, porque foge da lógica deste mundo. Somente aquele que se despoja da própria vida será capaz de reconhecer a sabedoria de Deus, que é Jesus Cristo crucificado.


III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Durante muito tempo, se entendeu que fazer a vontade de Deus significava cumprir apenas seus mandamentos de forma rigorosa. No entanto, essa concepção levou muitos a cair num legalismo exacerbado, o que gerou uma moral escravizadora. Ainda hoje muitas pessoas sofrem por causa de certos julgamentos pautados numa visão legalista da Escritura. Mas a proposta de Jesus sempre foi outra. Isso não significa um relaxamento na conduta do ser humano; ao contrário, a proposta de Jesus é exigente, porque mira o interior do ser humano, no qual foi escrita a vontade de Deus. Deus não quer seus filhos escravos, mas livres. E somente no exercício da liberdade o ser humano poderá ser verdadeiramente fiel aos mandamentos divinos.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

VÓS SOIS O SAL DA TERRA

Aíla L. Pinheiro de Andrade*

Roteiro Homilético para 5º Domingo do Tempo Comum

I. INTRODUÇÃO GERAL

O Antigo Testamento apresenta as ações éticas em favor dos necessitados como por- tadoras de luz. “Se saciares os pobres, tua luz brilhará nas trevas” (Is 58,10). Para o evangelho, à medida que souberem apro- priar-se do espírito das bem-aventuranças, os discípulos adquirirão aquela sabedoria sobrenatural que os torna sal da terra e luz do mundo (Mt 5,13-14). As ações dos dis- cípulos farão brilhar a luz de Deus, e não sua própria luz: “que, vendo vossas boas ações, eles glorifiquem vosso Pai que está nos céus” (Mt 5,16b). Modelo esplêndido de discípulo de Cristo, sal e luz do mundo, é o apóstolo Paulo. A eficácia de seu apos- tolado não está na “sublimidade de palavras ou de sabedoria” (1Cor 2,1), mas na vida totalmente inspirada no evangelho e confi- gurada a Cristo.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 5,13-16): Vendo vossas boas obras, glorificarão a Deus

Terminado o discurso das bem-aven- turanças, Jesus se refere ao papel de seus discípulos no mundo: ser sal e luz. Mas, para que isso seja possível, é necessário se- rem realmente pobres em espírito, mansos, misericordiosos, puros, pacíficos e alegres, apesar das perseguições.
Os cristãos são chamados a transformar o mundo insípido (sem sal), insensato (sem a sabedoria divina) e sombrio (sem a luz de Deus) em reino de Deus, no qual esses valo- res têm a primazia. Contudo, há o reverso da medalha: se os cristãos não tiverem o espírito do evangelho, não servirão para a edificação do Reino.
Tendo a própria vida configurada à vida de Cristo, cada ação praticada no seguimento de Jesus se tornará como que um candelabro a iluminar “todos os que estão em casa”. Será como uma “cidade no alto do monte”, vista por todos os peregrinos cansados a atraí-los para o conforto de uma hospedagem.
Quem segue o Cristo com autenticidade se torna portador de sua luz, pois deixa transparecer na própria conduta a vida e a mensagem de Jesus e atrai todos para Deus.

2. I leitura (Is 58,7-10): Teus atos de justiça irão à tua frente

Esse texto de Isaías trata do que agrada e desagrada a Deus. Especificamente, a vontade de Deus é que o amemos acima de todas as coisas e amemos o próximo como a nós mesmos. Esse é o resumo da Escritura. Os judeus já sabiam disso (Lc 10,25-28).
O pecado consiste basicamente em não fazer a vontade de Deus resumida nesse princípio. Para reatar a amizade com Deus, o judeu oferecia sacrifícios, e, por meio da substituição da vida do ofertante pela vida do animal (a oferta), era mostrado de forma ritual o desejo do ser humano de entregar sua vida nas mãos de Deus.
Estando longe de Jerusalém, impossibili- tados de ir ao Templo, os judeus substituíam o ritual do sacrifício pelo jejum. O jejum e os demais ritos penitenciais eram sinais de sincero arrependimento e expressão de mu- dança radical de conduta (Jn 3,8).
Contudo, esse texto de Isaías, dirigido aos judeus dispersos pelo mundo, reclama da prática do jejum quando outras pessoas estão sem roupa, enfermas, sem alimento, injustiçadas. A verdadeira ação que agrada a Deus não se limita a rituais, sejam quais forem; ao contrário, é necessário voltar-se para o “outro”. Só assim a glória de Deus resplandecerá no mundo.

3. II leitura (1Cor 2,1-5): O anúncio pelo testemunho

Paulo é o modelo de discípulo que, por meio do evangelho, se torna “sal e luz” no mundo. E o mundo que ele evangeliza – aqui especificamente a cidade de Corinto – é um ambiente onde os homens brilham por sua sabedoria e eloquência. No entanto, o pro- jeto de Deus difere do projeto meramente humano, pois a sabedoria divina se revela nos que se deixam conduzir por ele, como é o caso de Paulo. Como ministro do evange- lho, sua pregação se baseia unicamente na força do Espírito, que o conduz segundo o plano divino. Plano esse revelado na “lou- cura da cruz de Cristo”, no qual apresenta o caminho de acesso a Deus. Esse caminho não é o do poder nem o do prestígio ou o da sabedoria, que leva o ser humano a se gloriar de si mesmo. Mas é um caminho inovador, totalmente diferente daquele proposto pelo mundo. Um caminho de oferta total de si nas mãos daquele que é fonte de vida: o Pai. Por isso, Paulo não necessita recorrer à sabedoria humana. Sua vida entregue a Cristo testemunha esse poder e essa sabe- doria de Deus, fonte de salvação para os que creem.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Ser “sal da terra” é testemunhar no mundo a vida em Cristo por uma conduta reta, baseada no amor a Deus e ao próximo. Os rituais que realizamos devem constituir uma expressão dessa vida unida a Deus, teste- munhada na prática dos valores do Reino. Nisto consiste a missão do cristão: temperar o mundo como o “sal” do reino de Deus, para que os seres humanos saboreiem as coisas do alto e, com isso, busquem em Deus o alimento para a vida eterna. Sem isso, os ritos são vazios.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.