segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Mês da Bíblia - Jonas: conversão e missão (texto base) - continuação

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

4. Evangelizar é preciso, converter-se é urgente

O livro se inicia como muitos livros proféticos afirmando que a palavra de Deus veio a... (Os 1,1; Jl 1,1; Mq 1,1; Sf 1,1; Ag 1,1; Zc 1,1). Com isso se estabelece um convite ao leitor para se identificar com o protagonista e se tornar um canal para que a palavra de Deus chegue a todos os povos. Lendo o livro atentamente se chega à conclusão que Deus é diretor do drama, ele está no controle de tudo, está determinado a fazer sua misericórdia chegar aos ninivitas. Ele prepara (em hebraico, manah) um peixe (2,1), uma mamoneira (4,6), um verme (4,7), um vento oriental (4,8). E Jonas não consegue mudar o roteiro ou projeto divino. Deus começa e termina o livro, a sua palavra é soberana e não volta a ele sem que se torne efetiva e produza o fruto almejado (Is 55, 11).

A missão de Jonas é precisa: tem que anunciar aos habitantes da grande cidade de Nínive que sua iniquidade subiu até Deus. Isso consiste numa parusia conforme se procedia em antigos reinos. O termo grego parusia significava a visita do rei a uma região distante da sede do governo para resolver certos problemas administrativos como o abuso de autoridade dos governantes e a prática da iniquidade por parte destes. O aviso de que o rei está sabendo da iniquidade, dava tempo aos culpados para mudar de conduta como também deixava os oprimidos cheios de esperança que o rei lhes fizesse justiça. Nesse sentido, o que Jonas deve anunciar é a parusia do verdadeiro rei do universo sobre um vassalo, o rei de Nínive. De nenhuma forma se trata de um veredicto definitivo do juiz, mas de um aviso para que haja oportunidade de mudança de atitude por parte dos que estão praticando o erro. Não é uma condenação, mas uma boa-notícia o que Jonas deve anunciar.

O mandato missionário consiste em três imperativos: levanta-te, vai, proclama (Jn 1,2; 3,2). O termo chave é o verbo hebraico qara' que significa proclamar ou gritar. Esse termo aparece sete vezes nesse livro: três vezes se diz qara' (proclama) a Nínive; três vezes se diz qara' (clama) a Deus e uma vez se afirma qara' (proclama) um jejum. A proclamação do jejum faz a ligação entre proclamar a Nínive e clamar a Deus. O mesmo termo aparece no salmo do capítulo dois (Jn 2,3), mas trata-se de um acréscimo bem posterior.

Apesar de não haver, em nenhuma parte do livro de Jonas, uma palavra vinda de Deus para condenar Nínive, é isto que o missionário anuncia: “Dentro de quarenta dias Nínive será destruída!” (Jn 3,4). Por que o missionário diria isso se a palavra de Deus foi outra (Jn 1,2)? Ora, segundo a ideologia da retribuição, se Deus sabia da iniquidade de Nínive deduzia-se que ele a destruiria como castigo pelos pecados. O termo hebraico haphak significa a total destruição de uma cidade e é usada na Bíblia somente para se referir a Sodoma e a Gomorra (Gn 19,29). Jonas anunciou uma consequência lógica de suas concepções teológicas. Por esse motivo o livro de Jonas chama à conversão, não apenas os ouvintes, mas primeiramente o missionário.

De fato, Jonas é, de todos os personagens desse livro, o que mais precisa de conversão. Ele pode ser definido como o desobediente. Aos três imperativos da missão (levanta-te, vai, proclama, Jn 1,2; 3,2) Jonas age em sentido contrário: desce (1,3), foge (1,3), dorme (1,5). Os estrangeiros, tanto os marinheiros quanto os ninivitas, foram mais religiosos, e até o mar, o peixe, a planta, o verme, o vento oriental, todos submetem-se à vontade de Deus. Jonas, ao contrário, mesmo quando parece ser obediente não o é de fato, pois anuncia a mensagem em apenas um dia, quando se levaria três dias para atravessar a cidade. E proclama um conteúdo diferente daquele que lhe foi indicado.

Apesar de tudo os ninivitas creram em Deus (Jn 3,5), o termo hebraico usado é 'aman, o mesmo usado para descrever a fé de Abraão (Gn 15,6), isso significa que eles depositaram toda a sua confiança em Deus, mesmo tendo recebido uma mensagem de condenação. O que não fariam, então, se tivessem recebido a boa-nova? Também os marinheiros estrangeiros adoraram o Deus de Israel (Jn 1,14-17), apesar de Jonas ter preferido ser lançado ao mar que falar-lhes sobre a misericórdia do Senhor. O grande problema do livro de Jonas, a maior dificuldade é a conversão do missionário e não a dos iníquos e dos idólatras.

A conversão dos ninivitas começou com o povo e depois chegou ao rei, o qual expediu um decreto de penitência geral, incluindo também os animais (Jt 4,9-10) para mostrar que a criação inteira é afetada pelos nossos pecados. A reação do rei de Nínive foi muito distinta do procedimento dos reis de Israel que poucas vezes consideraram a exortação dos profetas. Assim como os marinheiros, o rei confiou na misericórdia de Deus, mesmo sem que Jonas a mencionasse em nenhum momento. E Jonas sabia que Deus é misericordioso, isso faz parte da fé de Israel (Ex 34,6).

Para demonstrar seu arrependimento sincero os ninivitas se uniram, desde os da mais alta classe social até os mais humildes, na busca da misericórdia de Deus. Para mostrar isso empregaram os símbolos da época: fizeram um jejum e vestiram-se de panos de saco (Jn 3,5). Esse costume era empregado em momentos de tristeza (2Sm 3,31; Jr 6,26), de luto (Est 4, 1-3), de arrependimento (Ne 9,1; Jó 42,6) e de humilhação (Dn 9,3-5).

Esses gestos externos eram expressões de uma mudança radical de atitude. Cada um deveria deixar o seu mau caminho (Jn 3,8-10), ou seja, o estilo de vida caracterizado pelo pecado e pela violência. O verbo arrepender-se, em hebraico shuv, significa uma mudança radical, uma volta de 180 graus. Consiste em deixar um estilo de vida fundado na iniquidade por uma vida nova com perspectivas totalmente diferentes.

Mas a resposta de Deus à conversão dos ninivitas desagradou totalmente a Jonas, deixando-o profundamente irritado. Isto o fez revelar o objetivo da tentativa de fuga; não fora por medo da violência dos ninivitas nem por receio do desconhecido, como poderíamos supor. Para surpresa do leitor, Jonas diz que fugiu porque Deus é misericordioso, lento para a cólera e não faria mal a Nínive (Jn 4,2). Jonas não queria ser mensageiro de Deus porque assim evitaria que os ninivitas usufruíssem da misericórdia divina. Mas já que não conseguiu fugir dessa tarefa, agora preferia morrer a ver a salvação daqueles que considerava ímpios.

À revelia disso, o Senhor do céu e da terra ama a totalidade da criação. Essa é uma afirmação revolucionária para a maioria dos judeus contemporâneos do autor do livro de Jonas, pois se o Deus de Israel cuida de todos os seres, povos e nações, qual o lugar de Israel como povo da aliança? Hoje diríamos: qual o privilégio de ser cristão, se Deus ama os ateus, os membros de outras religiões e até mesmo aqueles que maculam sua imagem com o ódio? Isso significa que o povo de Deus deve investir na salvação dos iníquos e não na destruição deles. Os opressores, os violentos, os ímpios conhecerão a misericórdia e a redenção que vem de Deus através dos missionários de boas notícias.

O livro de Jonas termina bruscamente como é próprio desse gênero literário. Com isso permite ao leitor de cada geração fazer uma autocrítica e responder à pergunta do Senhor, confrontando-se com as atitudes de Jonas, dos marinheiros e dos ninivitas. Quem nunca desejou o desaparecimento definitivo do opressor ou do malvado? Quem se sente confortável em saber que “a misericórdia triunfa sobre o julgamento” (Tg 2,13)? O amor e a misericórdia de Deus se estendem a cada pessoa e deseja a conversão de todos.

O final do livro mostra o contraste entre Jonas e Deus: um deseja a morte, o outro, a vida; um quer a destruição, o outro, a salvação. O livro inteiro é uma exortação à conversão e à misericórdia, ambas são indesejáveis a Jonas e ele necessita das duas. O livro desafia o cristão atual, herdeiro da vocação de Israel, a deixar-se corrigir pela Palavra inspirada, santa e perfeita, útil para exortar e para “discernir os propósitos do coração” (Hb 4,12).



** Publicado originalmente no site da CNBB.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Intituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

domingo, 29 de agosto de 2010

Mês da Bíblia - Jonas: conversão e missão (texto base)

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

LEVANTA-TE E VAI À GRANDE CIDADE (Jn 1,2)**

Quem nunca ouviu falar no profeta Jonas que foi engolido por um grande peixe? Mas seria esse episódio o que há de mais importante nesse livro bíblico? Em que esse fato seria relevante para a fé dos judeus e para fé cristã hoje? As respostas a estas perguntas dependem de um estudo atento do texto bíblico dentro de seu contexto histórico, somente assim é possível descobrir traços que indiquem o perfil de quem o escreveu, a época de seu surgimento e, seus destinatários imediatos. Com esses dados, a mensagem de Jonas se mostrará atual para o século XXI.

1. O Autor
Numa leitura superficial do texto bíblico, o leitor contemporâneo pode cometer o equívoco de pensar que o autor desse livro tenha sido um profeta nacionalista de Israel do Norte, chamado Jonas, filho de Amitai, que viveu durante o reinado de Jeroboão II, por volta de 790-750 a.C., mencionado em 2Rs 14,25 e em Jn 1,1. Não é raro encontrar leituras fundamentalistas da Bíblia que tendem a concluir que o autor do livro de Jonas tenha sido aquele profeta do séculoVIII a.C.
Alguns aspectos do livro de Jonas, contudo, nos levam a concluir que a obra não poderia ter sido escrita no tempo de Jeroboão II, como veremos a seguir. Mas, se o livro não é do século VIII a.C. e se o autor não é o profeta Jonas, por que o texto se inicia com a seguinte indicação: “Veio a palavra do SENHOR a Jonas, filho de Amitai...” (Jn 1,1)?

O autor usa um recurso literário chamado de pseudonímia. Ele não está interessado em destacar a autoria do livro, nem em focalizar sua identidade. Isso era muito comum naquela cultura. Os autores dos livros bíblicos geralmente não assinam suas obras porque acreditam que estão apenas representando a fé e a experiência de um povo do qual são membros, ou seja, eles não falam em nome próprio e com seus escritos querem apenas trazer os filhos de Israel de volta para a aliança firmada com Deus.

O autor do livro permanece anônimo e usa como pseudônimo o antigo profeta Jonas, filho de Amitai, porque esse recurso o ajuda a divulgar melhor sua mensagem. Não sabemos quem escreveu o livro de Jonas, mas podemos fazer um perfil de sua personalidade a partir do texto bíblico. É alguém com mente aberta, como diríamos hoje, para ele todas as pessoas são alvos do amor e da misericórdia de Deus. É uma pessoa bem humorada que usa o recurso da ironia para convencer os judeus nacionalistas de sua época da inconsistência da postura exclusivista que considerava apenas o judeu como merecedor do amor de Deus.

2. A época
Para ter uma idéia sobre a época em que esse livro foi escrito, alguns aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar não é possível que seja do século VIII a.C., quando viveu o profeta nacionalista Jonas filho de Amitai, pois o texto hebraico emprega expressões conhecidas só muito tempo depois reinado de Jeroboão II [1]. Afirmar que o livro de Jonas foi escrito no século VIII a.C. seria algo semelhante a dizer que um dos modernos escritores brasileiros teria vivido no tempo de Dom João VI. O hebraico sofreu modificações ao longo da história, como acontece a qualquer idioma.

Outro aspecto a ser levado em conta é que o livro de Jonas contém expressões em aramaico [2], idioma oficial dos judeus durante o domínio persa (538-333 a.C.), mas que não era falado por eles antes do exílio da Babilônia (587-538 a.C.). Portanto, o livro tem que ser posterior ao século VI a.C.

Em Jn 1,9 encontra-se a expressão “Deus dos céus que fez o mar e a terra”. Isso indica um período tardio da teologia de Israel. Em épocas mais antigas era comum falar no Deus libertador, destacando as características de guerreiro, que fez aliança com Israel considerado seu único povo dentre todas as nações.

Esses e outros aspectos levam à conclusão que o livro de Jonas foi escrito após o período de Esdras e Neemias quando a maioria dos judeus, depois de sofrer a dominação de vários impérios estrangeiros, havia desenvolvido forte espírito de exclusivismo e de particularismo e não queria uma aproximação com outros povos e muito menos exercer a vocação missionária de fazer o Deus de Israel ser conhecido e amado pelas demais nações.

Como o livro de Jonas faz parte do bloco dos doze profetas, mencionado em Eclo (Sir) 49,10-12, ele não pode ter sido escrito depois do ano 170 a.C, possível época do surgimento do Eclesiástico. Por isso a maioria dos estudiosos está de acordo que o livro de Jonas data provavelmente do final do século V a.C, ou início do século IV a.C.

3. A obra
O autor do livro de Jonas, unindo o recurso da pseudonímia ao da ironia, escreve um conto edificante que termina com uma lição dada por Deus ao protagonista. O conto edificante é um gênero literário muito conhecido entre os mestres judeus e, nesse caso específico, podemos classificá-lo como um midraxe hagadá, ou seja, uma narrativa que interpreta um texto bíblico à luz de um contexto histórico posterior.

O autor do livro de Jonas, ao ler 2Rs 14,25s quatro séculos depois, se pergunta como o Deus de Israel poderia conceder uma profecia de coisas boas para o Reino do Norte no tempo de Jeroboão II se o povo daquela época era desleal e tinha um rei que persistia em todos os pecados dos seus antecessores. A teologia que estava em voga, no tempo em que 2Rs foi escrito, considerava o relacionamento de Deus com o ser humano regido pela bipolaridade justiça-bênção e injustiça-castigo. Nessa visão mecanicista da vida e das relações se supunha que as ações humanas desencadeariam bemestar geral ou má sorte, conforme agradasse ou desagradasse a Deus. Era pensar comum que o futuro do ser humano dependeria da submissão a essa ordem da qual nem Deus poderia fugir. Esse tipo de pensamento foi nomeado pelos estudiosos como Teologia da Retribuição, o melhor seria designá-la por ideologia da retribuição.

Sendo assim, como é possível que a passagem de 2Rs 14,25s, marcada pelas concepções de retribuição, poderia relatar uma profecia de prosperidade para um reino infiel à aliança com Deus? Se tal era possível ao Reino de Israel não seria possível às demais nações? Então o autor do livro de Jonas pensa em usar aquele profeta nacionalista de quatro séculos atrás para profetizar a misericórdia de Deus aos inimigos que haviam destruído Samaria, capital de Israel, em 722 a.C. Não podemos deixar de perceber a ironia contida aqui: o Jonas histórico (2Rs 14,25) profetiza a prosperidade e a expansão do Reino do Norte e o Jonas personagem do conto edificante tem que profetizar a favor dos habitantes da cidade de Nínive destruidores de Samaria, capital do reino do Norte.

A ironia também está presente no significado do nome do protagonista. Jonas em hebraico é Yonah e significa “pomba”, ave conhecida como símbolo da paz e das boas relações entre Deus e o ser humano, haja vista a pomba com o ramo de oliveira como sinal do fim do dilúvio. O profeta Oséias comparou com uma pomba os deportados de Israel do Norte para a Assíria quando assegurou que Deus os traria de volta apesar da inclinação deles a desviar-se da palavra do Senhor (Os 11,7-11). A palavra Yonah, além disso, deriva da raiz do verbo Yanah que significa chorar, reclamar, lamentar. Então o nosso protagonista Jonas deveria ser sinal de paz, mas se mostra como uma pessoa intransigente que reclama de tudo ao longo da narrativa, com nítida inclinação para a desobediência à palavra de Deus.

Ao ser questionado sobre sua identidade, Jonas afirma que é hebreu e adora o Deus criador do mar e da terra. A fé no Deus criador traz como consequência o reconhecimento de seu amor por todos os povos. Dessa maneira, Jonas afirmou que a autoridade de seu Deus não está limitada a um território determinado, mas tinha domínio universal. Com isso se vê a ironia da situação de Jonas: crer que Deus domina sobre o mar e a terra e, ao mesmo tempo, está fugindo de sua presença.

Os termos Israel, profeta e profecia não aparecem nem uma vez no livro de Jonas. Isso mostra que não se trata de um de um livro profético. E qual contexto histórico estaria sendo interpretado nesse bemhumorado conto? A pista nos é dada no final do livro, na lição que Jonas é forçado a receber: a misericórdia de Deus está sobre todos os povos e sobre toda criatura. Se a maioria das pessoas não sabe disso é porque falta quem lhes anuncie essa boa-notícia. O autor do livro de Jonas viveu em uma época marcada por reformas radicais nacionalistas desde Esdras e Neeemias, basta conferir os capítulos nove e dez do livro de Esdras e a ordem para que os judeus se divorciassem das esposas estrangeiras e expulsassem os filhos nascidos desses casamentos mistos. Veja também Ne 13,23–28.

Ao lado dessa tendência nacionalista exacerbada caminhava uma tendência universalista que considerava o estrangeiro como filho de Deus. Defensores dessa tendência são os textos de Is 40–55 e o livro de Rute, entre outros. O autor do livro de Jonas empresta sua voz à teologia universalista para defender o direito de Deus amar a todos, sem fazer acepção de pessoa. Para criticar a tendência nacionalista o autor faz o personagem Jonas preferir morrer a aceitar o amor de Deus para com os estrangeiros. Na linguagem de hoje diríamos que o livro de Jonas foi escrito para animar os judeus a assumir sua responsabilidade missionária para com as outras nações, nesse sentido, esse escrito é um precursor do mandato missionário do evangelho.

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Notas:

** Publicado originalmente no site da CNBB
[1] WYATT, Roy & WYATT, Joyce. “Jonas” in Daniel CARRO et. al., Comentario Bíblico Mundo Hispano -
Tomo 13: Oseas - Malaquías, El Passo: Editorial Mundo Hispano, 2.000, p. 167.
[2] Ibidem.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sábado, 28 de agosto de 2010

Paulo em Filipos: o anúncio do Evangelho numa grande cidade - continuação

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

2) A Carta aos Filipenses [3]
A epístola foi escrita para que os filipenses se mantivessem na fé genuína e no seguimento de Jesus, ou seja, que os destinatários produzissem o fruto da justiça para a glória de Deus (Fl 1,9-11). A expressão “frutos da justiça” significa ajustar-se ao que Deus Pai espera do seguidor de Jesus.

a) A situação de Paulo ao escrever a carta:
Paulo afirma que escreve da prisão (1,7.13.17), na qual se encontra por causa do evangelho. Algumas passagens da carta levam a pensar que ele estava em perigo de morte iminente (1,21–24).
Em Atos dos Apóstolos temos o relato de três lugares onde Paulo esteve preso: em Filipos (At 16,23–40), em Cesaréia (At 21,32–26,32) e em Roma (At 28,16–31). Mas Paulo afirma que foi preso muitas vezes (2Cor 11,23). A maioria dos estudiosos é de opinião que Paulo estava preso em Éfeso quando escreveu aos filipenses. Essa hipótese baseia-se em inferências de 1Cor 15,32 e na proximidade geográfica entre Éfeso e Filipos.
Mas, que tipo de detenção poderia estar sofrendo Paulo enquanto escrevia aos filipenses? Em Filipos foi levado para o fundo da prisão e atado a um tronco. Mas isso só aconteceu porque não tinham conhecimento de que ele era cidadão romano.
De fato, os cidadãos romanos tinham direito a um tipo de prisão, chamada custodia libera, ou liberdade vigiada. A custodia publica, detenção penal, era para aqueles que não possuíam cidadania. O cidadão romano podia escolher a residência na qual ficaria em prisão domiciliar. E o soldado que o vigiava tinha que acompanhá-lo em todas as horas e se saíssem à rua deveria mantê-lo preso com uma corrente.
As notícias sobre a prisão de Paulo chegaram aos filipenses que lhe enviaram uma doação através de Epafrodito (Fl 2,25; 4,18). Depois que se encontrou com Paulo, Epafrodito ficou doente e demonstrou muita preocupação (Fl 2,26) por não poder retornar logo a Filipos com notícias. Paulo pretendia enviá-lo junto com Timóteo para esclarecer toda a situação aos filipenses (Fl 2,23).

b) O motivo da carta
Quando Paulo recebeu a doação vinda dos filipenses, trazida por Epafrodito (Fl 2,24– 4,18) resolveu escrever, possivelmente durante o ano 54, para agradecê-los e também para orientar seus destinatários sobre que atitudes tomarem com relação aos judaizantes. Paulo temia que os novos convertidos fossem afastados da fé cristã, seja pelos judaizantes, seja pelos pagãos.

3) A teologia da kénosis:
O Hino Cristológico de Fl 2,6-11 é chamado de Hino da Kénosis, de kenós, termo grego que significa “vazio”. Esse título, com o qual o poema ficou conhecido na história da teologia, foi derivado do verbo kenóo encontrado em Fl 2,7 e que significa “privar-se de poder” ou “abdicar do que possui”. Esse termo caracteriza toda a vida de Jesus, o Filho de Deus como alguém que não se apegou à sua condição divina e ao entrar nas esferas da história e da criação, assumiu as limitações desses âmbitos, até as últimas conseqüências, inclusive ficando à mercê do egoísmo e violência humana, que o levaram a morte terrível na cruz.
A maioria dos estudiosos está de acordo que o Hino da Kénosis não é de autoria paulina, mas fazia partia da Liturgia Eucarística. Isso significa que uma das teologias mais profundas do Novo Testamento teve sua fonte num hino litúrgico para celebrar o mistério pascal. E, como o mesmo hino foi usado por Paulo como expressão de uma reta compreensão de Deus em seu mistério, isso manifesta que o mesmo poema retrata uma profunda experiência mística do Apóstolo. Finalmente, ao usar o hino como exortação aos filipenses significa que Paulo faz da teologia da kénosis o fundamento da práxis cristã configurada à práxis de Cristo.

a) A kénosis como modo de ser de Jesus de Nazaré que revela o modo de ser de Deus
Paulo se utiliza do hino para falar da vida de Jesus, para mostrar a maneira como Jesus viveu a sua humanidade. E o modo concreto como Jesus viveu é a fonte e o critério para toda teologia que tenha a pretensão de ser realmente cristã. A vida terrestre de Jesus, o Filho de Deus, se manifestou a nós como kenótica, foi isso que as primeiras testemunhas cristãs transmitiram a Paulo e que ele nos mostra no hino. Porque a kénosis não é apenas um aspecto, mas a totalidade da vida de Jesus; Paulo nos apresenta esse modo de viver como o paradigma de vida para o cristão.
De fato, a vida terrestre de Jesus se identifica como um modo de ser referido ao outro, uma vida descentrada de si, a serviço. Jesus viveu a vida humana perdendo-a, esvaziando-se, renunciando totalmente a si mesmo. Foi uma vida desfigurada, humilhada. Pode-se pensar que a kénosis é um aspecto pontual, uma etapa passageira na vida de Jesus, que se identifica apenas com sua paixão e morte. Mas, a kénosis é um modo de ser, é algo que afeta a totalidade de sua existência. Uma vida que foi reconhecida, após a ressurreição, como kenótica e exaltada. Pois não podemos separar o kenótico do Ressuscitado. Com a ressurreição se revela uma condição divina, que a condição humana de servo não deixava transparecer.
O Ressuscitado é o Senhor, mas é a vida humilhada que reinterpreta esse título e dá-lhe um sentido totalmente diferente do que se pensa, nos padrões terrenos, sobre o significado de alguém ser chamado de Senhor. Com a ressurreição transparece naquela vida totalmente descentrada de si no outro e em Deus, uma relação única com Deus a ponto de Jesus Cristo ser reconhecido como seu Filho unigênito. E por causa da unidade indissolúvel que vem dessa relação entre Jesus e o Pai, entre o humano e o divino é que a kénosis diz algo a respeito de Deus em si mesmo. Ela nos revela a verdadeira intimidade do ser de Deus. A kénosis manifestada em Jesus torna acessível a nós o mistério antes escondido em Deus. Assim, por meio da vida kenótica de Jesus se revela que o esvaziamento tem suas raízes na Trindade. A kénosis não é apenas uma maneira de ser humano, mas a maneira de ser de Deus. Dessa forma, o conceito de Deus se torna inseparável da realidade kenótica, o que significa um duro golpe na maioria de nossas concepções de Deus.

b) A kénosis de Paulo à luz da kénosis de Cristo
O hino da Kénosis, unido à experiência pessoal de Paulo com o Ressuscitado, deu ao apóstolo um entendimento mais profundo sobre a pessoa e a obra de Cristo. Esse entendimento ajudou Paulo a manter-se fiel e lúcido nas circunstâncias difíceis pelas quais estava passando. Ele estava em prisão domiciliar e enfrentava a possibilidade de uma morte iminente (Fl 1,7.12-16; 3,8-14). E o evangelho, anunciado por ele, estava sendo ameaçado por pregadores ambiciosos (Fl 1,15-17; 2,20-21; 3,18-19).
Contudo, não há nenhuma tristeza ou melancolia nessa Epístola. Pelo contrário, alegria e regozijo são proeminentes (Fl 1,4.8.25; 2,2.17-18.29; 3,1; 4,1.4.10). Paulo enfrenta as circunstâncias adversas com uma fé nascida não somente do sustento e provisão que recebeu de Deus, no passado, mas também de uma esperança viva no futuro. Sua fé está baseada no próprio Senhor Ressuscitado que a ele se manifestou, com todo conhecimento decorrente desse encontro que transformou sua vida, de modo que ele pode se referir a coisas altamente estimadas, nos padrões terrenos, como sendo lixo (Fl 1,19-26; 3,4-11.20-21).
Paulo estava, de fato, preso a valores que o faziam regozijar-se por viver nessas circunstâncias terríveis porque elas lhe deram a oportunidade para a proclamação de Cristo (Fl 1,12-14). Essa atitude foi expressa no versículo de abertura da Epístola por uma autodesignação de Paulo: “servo” (grego: doûlos). Enquanto Paulo costumeiramente estabelece a sua autoridade como apóstolo em outras cartas (Rm 1,1; 1Cor 1,1; Gl 1,1; Ef 1,1; Cl 1,1), nessa epístola ele se denomina simplesmente servo (junto como seu colaborador Timóteo).
Longe de impedi-lo de evangelizar, a prisão de Paulo proporcionou a divulgação de sua fidelidade a Cristo e ao evangelho porque todos ficaram sabendo de suas “algemas”. Esse episódio serviu de encorajamento a muitos irmãos que pregavam o evangelho com ousadia. Por isso Paulo tem certeza de que qualquer decisão do tribunal a seu respeito será motivo para glorificar aquele a quem serve. Cristo será engrandecido seja pela vida de Paulo (libertação da prisão), seja por sua morte (condenação). Em vista do engrandecimento de Cristo, Paulo considerou como lixo tudo o que apreciava como valioso. Por causa de Cristo, Paulo perdeu tudo, todas as coisas importantes de sua vida anterior, para ganhar a todos para Cristo.
Isso só foi possível porque Paulo aprendeu a viver a fidelidade em qualquer situação, fosse de tristeza ou de alegria. Mas Paulo ainda não era perfeito, ele corria para alcançar a Cristo, já que fora alcançado por ele. Paulo necessitava evoluir e avançar em direção à perfeição de Cristo.
O Apóstolo se vê seguindo o caminho do serviço, que foi estabelecido pela vida de Cristo, especialmente nas circunstâncias perigosas em que estava vivendo. É a vida concreta de Jesus que dá sentido à vida de Paulo, por isso o Apóstolo se refere à sua comunhão com o sofrimento do Senhor e com a morte dele (Fl 3,10). É nesse espírito que Paulo pode apontar a si mesmo e dizer, sem traço de arrogância ou orgulho: “Sejam meus imitadores” (Fl 3,17).
A vontade de Paulo é colocar de lado todos os direitos e privilégios pessoais, para se submeter, no espírito de serviço, às necessidades e interesses dos outros, isso é o coração dessa carta. De um lado, vemos como Paulo é um servo fiel de Cristo, de outro, os filipenses são, como ele, convocados a mostrar essa atitude de serviço como seguidores de Cristo.

c) A Kénosis de Cristo: o paradigma para a vida cristã
Cristo esvaziou-se, sendo de condição divina, renunciou aos privilégios dessa condição e assumiu uma existência humana como servo, morrendo na cruz. Por isso Deus o exaltou acima de tudo e todos para que ele reine sobre todas as realidades. A glorificação de Cristo será vista totalmente no Dia de Cristo, quando a obra de Deus será plena. Até lá, todos estão num processo rumo à plenitude (para alcançar o Cristo). A vida de Paulo segue o exemplo de Cristo. Os filipenses devem fazer o mesmo que Paulo, ou seja, ter os mesmos sentimentos de Cristo (Fl 2,5), pois a eles foi dada a graça de sofrer com Cristo.
Paulo costuma fazer apelos às comunidades para que se comportem verdadeiramente como cristãs (Ef 4,1; Cl 1,10; 1Tss 2,12), mas no imperativo endereçado aos filipenses sai de seu vocabulário habitual e usa um termo técnico (1,27) que significa “desempenhem sua obrigação como cidadãos” ou “cumpram sua obrigação para com a sociedade”.
Os filipenses eram orgulhosos de seu status de cidadãos romanos e poderiam entender a expressão de Paulo como se referindo às suas obrigações para com a cidade. Mas Paulo não os convocou a ser simplesmente bons cidadãos, mas a cumprirem suas obrigações para com a Comunidade Cristã. Paulo não explica imediatamente o que essa obrigação requer, mas já se constrói uma expectativa que está relacionada, de algum modo, às circunstâncias extremas sugeridas pela sua referência ao sofrimento suportado tanto pelo remetente quanto pelos destinatários (Fl 1,29-30). Esse chamado à cidadania própria do Evangelho é reforçado pelos primeiros versículos do capítulo dois quando o amor, a compaixão e o sentido de comunidade, que vêm de Cristo, são usados como base para um renovado apelo à unidade.
O problema da comunidade de Filipos é finalmente revelado como egoísmo e arrogância (Fl 2,3). A dissensão interna está ameaçando o amor, a unidade e o companheirismo na comunidade (Fl 2,14; 3,18-19; 4,2). Enquanto a causa desses problemas não é revelada, a solução proposta por Paulo é um ordenamento da forma de vida de cada um. Prioridades devem ser eleitas de acordo com um conjunto de valores que coloquem o bem-estar e os interesses dos outros acima dos interesses egocêntricos (Fl 2,3-4), uma humildade que surja da natureza mesma do ser cristão. Isso traria duas implicações: (1) os filipenses cumpririam seus deveres para com a Comunidade de fé como cidadãos do Reino de Deus; (2) a própria Comunidade seria construída em torno a um conjunto de valores e interesses diferentes daqueles que são próprios do “mundo” (Fl 3,17-20). O hino da Kénosis nesse contexto literário dá expressão ao apelo de Paulo para a realização do servir cristão.

d) Os judaizantes: antítese da kénosis de Cristo
Alguns cristãos não aprenderam a lição da kénosis de Cristo e anunciam o evangelho por inveja ou por rivalidade. Os judaizantes consideravam a circuncisão da carne, com todo o compromisso de observância da Lei que isso encerrava, mais importante que a cruz e a ressurreição de Cristo; entendiam a salvação como obra puramente humana e carnal, e não a obra redentora de Deus através do Cristo. Os judaizantes se apegavam a tudo que Paulo considerava como lixo em vista de Cristo. Eles agiam na Comunidade apropriando-se da designação de missionários sem assimilarem o verdadeiro sentido de serem discípulos de Cristo. E faziam sucesso entre os filipenses, deixando-os inseguros a respeito da identidade cristã, criando divisões dentro da Comunidade.
A primeira insinuação de um problema emerge em Fl 1,27. Aqui Paulo começa a enviar recomendações práticas relacionadas à vida da Comunidade de Filipos. A ênfase em “ser firmes num só espírito” e “lutar juntos, com uma só alma” por causa do Evangelho, sugere que a unidade da comunidade precisava de fortalecimento.
“Haja entre vós o mesmo sentir e pensar de Cristo Jesus” (Fl 2,5). Entendido de outra maneira, esse versículo pode ser lido assim: “tenham em vocês a mesma atitude de Cristo Jesus”. A expressão “en Christo”, como está no texto grego, é o fundamento para ter a atitude de humildade que Paulo mostrou ser necessária. É alicerçados na atitude (vida) de humildade de Cristo, que os cristãos podem também ter a mesma atitude um para com os outros. Essa compreensão de Fl 2,5 se ajusta bem com o contexto no qual Paulo elabora a natureza da conduta cristã.

CONCLUSÃO
O movimento abaixamento-exaltação é um elemento estrutural básico da Epístola inteira. Paulo se lançou claramente no papel de servo desde a saudação inicial (Fl 1,1) e da alusão às circunstâncias em que estava vivendo (Fl 1,12-16). Ele também testemunha que desfrutou privilégios, os quais, alegremente e livremente, foram colocados à parte e considerados como lixo por causa de Cristo (Fl 3,7-9). Ele diz claramente que Deus transformará seu corpo pobre em corpo glorioso, porque Deus tem o poder de sujeitar a si todas as coisas (Fl 3,21), por isso, Paulo acha que morrer é lucro (Fl 1,21).
Ele deliberadamente usa a si mesmo e as circunstâncias em que vive para ilustrar como é o exercício cristão do papel de servo. Repetidamente Paulo utiliza o termo grego fronein (fixar a mente em, ter uma atitude de), para se referir à vida de humildade e abnegação, à qual já havia convidado os filipenses (Fl 1,7). Ele também usa esse termo para falar sobre sua própria atitude de compromisso abnegado que os convida a compartilhar (Fl 3,15). Finalmente, serve-se da mesma palavra para destacar os interesses egoístas para com valores terrenos (Fl 3,19) e para recomendar como os filipenses devem se preocupar com os outros (Fl 4,10).
Paulo mostra que o cumprimento das “obrigações” de um cidadão do Reino de Deus, só é possível no esvaziamento de si mesmo, e em assumir o papel de servo. Os cristãos devem estar dispostos a terem o sangue derramado (libado) no serviço dos outros (Fl 2,17), terem a mente e o estilo de vida fixos em valores que são diferentes daqueles apresentados pelo “mundo” (Fl 3,18-19).

NOTA
___________
[3] Consideraremos o texto de Filipenses tal como se encontra atualmente na Escritura, sem levar em conta as hipóteses sobre o processo de sua redação.

BIBLIOGRAFIA
EICHER, Peter (dir). Dicionário de conceitos fundamentais de teologia, São Paulo: Paulus, 1993.
FLORISTAN SAMANES, Cassiano & TAMAYO-ACOSTA, Juan-José (dir). Dicionário de conceitos fundamentais do cristianismo, São Paulo: Paulus, 1999.
McKENZIE, John L. Dicionário bíblico, São Paulo: Paulus, 1983.
VORGRIMLER, Herbert & RAHNER, Karl. Diccionario teológico, Barcelona: Herder, 1966.
ZIJLSTRA, Onno (ed). Letting go: rethinking kenosis, Bern and New York: Peter Lang, 2002.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Paulo em Filipos: o anúncio do Evangelho numa grande cidade

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

Paulo levou o Evangelho aos filipenses, possivelmente, durante a segunda viagem missionária (cf. At 15,36–18,17), por volta do ano 48 dC. A cidade, fundada em 360 aC. pelo general ateniense Calístrato de Afidna, no vale sul do monte Órbelos (atual monte Lekani) na Macedônia oriental, recebeu o nome de Krénides (em grego, “fontes”), por causa das muitas fontes do rio Angites. Posteriormente, ameaçada por tribos vizinhas, em 356 aC a cidade pediu auxílio a Filipe II, rei de Macedônia, pai de Alexandre Magno. Felipe II apoderou-se das minas de ouro ali existentes e refundou a cidade dando-lhe seu próprio nome. Filipos era uma porta de entrada para Europa, pois a cidade estava situada numa posição estratégica atravessada pela Via Egnatia [1], rota principal para o porto de Neápoles. Em 42 AEC, a cidade foi convertida em importante “colônia romana” (cf. At 16,12), uma espécie de Roma em miniatura, cujos cidadãos gozavam de privilégios (ius italicum) semelhantes aos da capital, como por exemplo, estar livres de impostos e com direito de governar-se por magistrados próprios, chamados de pretores. O orgulho de possuir esses privilégios era uma forte característica dos filipenses. Paulo chegou a Filipos, em companhia de Silas, sem conhecer ninguém na região. Os judeus ali residentes deviam ser poucos, pois não havia edifício para assembléia litúrgica (sinagoga), mas reuniam-se à margem de um rio (cf. At 16,12-13), possivelmente tratava-se do Angites ou de uma de suas fontes. Conforme o livro de Atos dos Apóstolos, em Filipos Paulo encontrou Lídia (cf. At 16,14), uma comerciante de púrpura, que era “temente a Deus”. Depois de aceitar o evangelho e fazer-se batizar, Lídia ofereceu sua casa para que servisse de alojamento aos missionários, providenciando dessa forma uma base para a missão (At 16,15.40).

1 Os desafios de uma grande cidade

1.1 Pluralismo religioso
Segundo o relato de At 16,16, em Filipos, Paulo curou uma escrava que estava sob o domínio de um “espírito pitônico” (de Píton, divindade grega muito cultuada na época). Na mitologia grega, Píton era uma serpente ou dragão que vivia na região de mesmo nome, ao pé do Monte Parnaso, e da qual se afirmava que guardava o oráculo de Delfos. Narra o mito que Apolo matou essa grande serpente para adquirir seu espírito de adivinhação. Por isso, era denominada pitonisa toda mulher que tivesse o dom de prever o futuro ou fosse sacerdotisa de Apolo.
A expressão “temente a Deus” para designar Lídia em At 16,14 revela uma categoria religiosa bem específica. Temente a Deus era uma pessoa gentia (não judia) que simpatizava com o judaísmo e participava do culto na sinagoga. Os “tementes a Deus” estavam familiarizados com o Antigo Testamento (na versão grega – LXX) e com as práticas judaicas do amor ao próximo, da observância do Decálogo (dez mandamentos), da doação de esmolas, da santificação do tempo (orações em horários definidos) e praticavam o monoteísmo ao Deus de Israel.
Ao afirmar que não havia edifício para sinagoga, mas que os judeus residentes em Filipos se reuniam aos sábados à margem de um rio (cf. At 16,12-13), o texto bíblico refere-se possivelmente à existência de judeus helenistas. Estes eram diferentes dos judeus de Jerusalém e arredores. Os judeus helenistas tinham por idioma o grego e viviam espalhados nas regiões ao longo do império romano, na Diáspora [2]. Eles tinham uma mentalidade mais aberta porque estavam constantemente em contato com outras culturas. Mesmo fora da Terra Prometida, eles cumpriam as normas fundamentais da fé judaica, apesar de não serem tão estritos nos detalhes.
Após a passagem de Paulo por Filipos, surgiu também nessa cidade o grupo dos seguidores de Jesus. O novo grupo, provavelmente era formado por judeus helenistas, por “tementes a Deus” e por ex-adoradores de divindades do império romano.

1.2 Exploração
Da mesma forma que acontecia com Jesus nos evangelhos, com a proclamação de Paulo e Silas sobre a chegada do Reino de Deus, as trevas cederam lugar à luz (cf. Mc 1,25; 3,12; Lc 4,35; At 16,16-18). A jovem foi libertada do espírito de adivinhação. Antes ela era totalmente alienada, ou seja, não era dona de si, mas possuída pelo espírito pitônico e pelos donos que a exploravam obtendo muitos lucros à custa dos oráculos que ela proferia (At 16,16). Não se menciona o nome dela, mas apenas sua condição de escrava.

1.3 Violência
Indignados por perderem seus lucros, os donos da escrava desencadearam forte perseguição contra Paulo e Silas. Agarraram os dois, os arrastaram e os levaram à praça da cidade (At 16,19). Usaram o preconceito contra os judeus (anti-semitismo) para acusar os missionários de não respeitarem os costumes romanos (At 16,20-21) o que provocou o ódio da multidão. Paulo e Silas foram açoitados e levados à prisão. Também tiveram seus pés presos no tronco que ficava no fundo da prisão (At 16,22-24). E tudo que eles tinham feito era devolver a dignidade de uma pessoa. Mas a sede de lucro não podia suportar isso sem uma reação acompanhada de diversos tipos de violência.

2 Características da Igreja de Filipos
É provável que entre o episódio da conversão de Lídia (At 16,13-15) e os acontecimentos que motivaram a violência contra os missionários (At 16,16-24), tenha se passado algum tempo. A carta aos Filipenses menciona vários colaboradores que ajudaram Paulo na evangelização (cf. Fl 2,25; 4,3). Isto pressupõe uma comunidade florescente que não teria sido possível sem uma estadia prolongada dos apóstolos na cidade. A narrativa de Lucas teria saltado do episódio inicial, conversão de Lídia, ao episódio final, a violência contra Paulo e Silas e o “convite” para que ambos se retirassem da cidade.
Portanto, ao saírem da cidade, Paulo e Silas deixaram uma igreja formada. Entre as pessoas que colaboraram com os missionários estão algumas mulheres. Em Fl 4,2-3, Paulo roga a Evódia e a Síntique que se ponham em harmonia no Senhor (a expressão grega pode ser traduzida por “sentir” ou “pensar” (cf. Fl 2,2). São mulheres evidentemente de destaque na comunidade. Paulo se dirige a ambas recordando o fato de que haviam colaborado com ele tanto quanto Clemente. O verbo que descreve a ação dessas mulheres é synathléo (que significa “esforçar-se ao mesmo tempo junto com alguém”) usado por Paulo apenas em Filipenses, nessa passagem 4,3 e em 1,27 quando se esforçam juntos para manter a fé. O verbo synathléo era usado na linguagem cotidiana para exprimir a luta penosa e até mesmo a morte com que os gladiadores estavam submetidos no circo romano. Isso mostra o valor dessas mulheres e dos filipenses em geral.
Talvez, por causa de tanto empenho, não despercebido por Paulo, o apóstolo manifeste a ternura que não foi tão enfatizada nas outras cartas. Pois logo no início, na ação de graças pela comunidade, afirma: “Deus é testemunha das saudades que tenho de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus” (Fl 1,8). Inclusive, Timóteo, o co-autor da epístola, é a pessoa mais indicada para levar a carta, por causa da sinceridade com que ama tanto a Paulo quanto aos filipenses (Fl 2,19-23). Destinatários da carta também demonstraram muita ternura para com o apóstolo ao enviarem Epafrodito com um donativo para o sustento de Paulo enquanto estivesse preso (Fl 4,18).

_____________
[1] A Via Egnatia partia de Bizâncio e, atravessando a Trácia e a Macedônia, chegava no Adriático, terminando na Via Apia que ligava a Roma. Entre as cidades atravessadas pela Via Egnatia estavam: Filipos, Anfípolis, Apolônia e Tessalônica, que foram visitadas por Paulo (cf. At 16,12; 17,1).
[2] O termo grego diáspora geralmente é traduzido por dispersão e significa as regiões, fora de Israel, por onde os judeus estão dispersos. Literalmente o termo significa “semeadura” (do grego sporá, semente). Dessa forma, os judeus destacam que a semente de Abraão (descendência) que carregam consigo e a semente de Deus (palavra) está semeando a fé no Deus vivo e verdadeiro por entre as nações através da proclamação da Torah nas sinagogas.

BIBLIOGRAFIA
BAKIRTZIS, Charalambos & KOESTER, Helmut (ed). Philippi at the time of Paul and after his death, Harrisburg: Trinity Press International, 1998.
O'BRIEN, Peter T. The Epistle to the Philippians: a Commentary on the Greek Text, Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1991. New International Greek Testament Commentary.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

A NOVA JERUSALÉM

Somos grupo de freiras católicas e formamos comunidade no Instituto Religioso Nova Jerusalém, ao qual pertencem também irmãos e padres, famílias e jovens. Cada comunidade com sua autonomia.
O fundador dessa obra foi Padre Caetano Minette de Tillesse, o qual nos legou um grande amor pela Bíblia.
 

A Nova Jerusalém existe para evangelizar a partir da Palavra de Deus, atuando em diversos campos, tais como: o diálogo interreligioso, o diálogo com as ciências e universidades, atividades acadêmicas em cursos de Ciências das Religiões, Teologia, Filosofia, Cultura Judaica etc.
 

Além disso, assessoramos cursos bíblicos, animação bíblica das pastorais, círculos bíblicos, Leitura Orante da Bíblia e retiros de espiritualidade bíblica.
Nosso objetivo é tornar a Palavra de Deus viva e eficaz na vida de todos, buscando testemunhar com a vida o que anunciamos por palavras.
 

A nossa vivência espiritual é fruto da contemplação e do silêncio cotidiano que nos possibilita crescer cada vez mais no contato íntimo e profundo com Cristo Ressuscitado e ressuscitante.
 

Atualmente nossa Casa Geral fica na cidade de Fortaleza-Ce, também temos casas em Vespasiano-MG e Mossoró-RN.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

O ESPÍRITO SANTO NAS CARTAS DE PAULO

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

Um estudo cuidadoso dos ensinos de Paulo mostra a confluência de três temas para uma unidade teológica. Esses temas são a fé, o Cristo e o Espírito Santo.

A fé em Jesus Cristo é a resposta humana à atividade divina levada a cabo pelo Espírito Santo. O Espírito Santo é descrito como o Espírito do Filho de Deus (Gl 4,6) e como o Espírito de Cristo (Rm 8,9). Quem confessa Jesus o faz pelo Espírito Santo, e ninguém que está no Espírito Santo pode dizer que Jesus é maldito (1Cor 12,3). Desta forma, não tem sentido um pentecostalismo sem uma configuração do cristão a Cristo, um pentencostalismo intimista e subjetivista, desvinculado da obra de Cristo para redenção do mundo e edificação do Reino que é ético em seu propósito: “justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14,17).

A vida cristã, em suas dimensões mais diversificadas, é considerada por Paulo como estando sob o poder do Espírito Santo. Há diversas passagens que evocam, quando não afirmam diretamente, que a vida cristã é originada pelo Espírito Santo (1Ts 1,6; Rm 5,5; 8,9; 1Cor 2,4; 6,11; Tt 3:5). O Espírito é recebido pela escuta da pregação (Gl 3,2). Para o cristão, o dom do Espírito é a garantia da redenção plena que há de vir, como as primícias eram a garantia da colheita plena (Rm 8,23). Os cristãos foram selados com o Espírito da promessa (Ef 1,13).

Os dons do Espírito Santo nos textos de Paulo são dados em função do Reino Messiânico. Ele enumera uma lista longa de dons espirituais como profecia (Rm 12,6); línguas (1Cor 12,10); sabedoria (1Cor 2,6ss); conhecimento (1Cor 12,8); poder para fazer milagres (1Cor 12,10); discernimento dos espíritos (1Cor 12,10); interpretação de línguas (1Cor 12,10); fé (1Cor 12,9).

Em 1Cor 14 Paulo adverte sobre os dons carismáticos, contra a tendência extravagante e imoderada de empolgação emocional, devido à ação poderosa do Espírito de Deus na Igreja de Corinto. Ele insiste que todas as coisas sejam feitas para a edificação e que o crescimento do Corpo do Messias seja o verdadeiro alvo de todos os dons espirituais.

No fim do seu ministério e em suas ultimas epístolas, Paulo dedicou-se muito ao tema da Igreja e uma de suas analogias favoritas era a Igreja como corpo de Cristo. O Espírito Santo é quem anima esse corpo, comunicando-lhe a vida e dirigindo-lhe em todos os aspectos para a edificação do Reino. O mesmo Espírito também anima e guia o fiel de modo pessoal. Em um só Espírito todos foram batizados, para formar um só corpo (1Cor 12,13). Todos os dons atuantes na Igreja, “carismáticos” ou não, são formas diferenciadas da ação do Espírito (1Cor 12,4.8-11). Os carismas, em primeiro lugar, estão em função da edificação comunitária (1Cor 14,4s). A Igreja deve conservar “a unidade do Espírito pelo vínculo da paz” (Ef 4,3). A Igreja é a habitação do Espírito (Ef 2,22), é uma carta de Cristo escrita pelo Espírito (2Cor 3,3). Assim, a vida inteira da igreja está sob a ação do Espírito Santo.

Também há uma grande variedade de expressões que indicam a presença e a atividade do Espírito Santo orientando a vida moral do cristão. De fato, tudo na vida do fiel deve estar sob a direção e sustentação do Espírito. “O fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança. Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito. Não sejamos ávidos da vanglória. Nada de provocações, nada de invejas entre nós” (Gl 5,22-26).

Os cristãos são advertidos a não contristar o Espírito Santo (Ef 4,30) e são exortados a portar a espada do Espírito, isto é, a Palavra de Deus (Ef 6,17), pois há um contraste entre a carne e o Espírito. Esse contraste aparece em vários pontos nos escritos de Paulo, como por exemplo, em Gl 5,17ss. O Espírito nessas passagens, provavelmente, significa o Espírito de Deus ou o espírito do ser humano sob a influência do Espírito de Deus. “Carne” é uma palavra difícil de definir, mas geralmente equivale a “mente carnal”, isto é, a mente do ser humano pecador, distinta da mente submersa na espiritualidade. A carne é pensada como a esfera na qual os impulsos para o pecado agem (Gl 5,19), portanto, não se deve confundir carne com corpo. Paulo é judeu e, segundo o judaísmo, o ser humano é, em sua totalidade, muito bom. Essa idéia de que o corpo é negativo não faz parte do pensamento bíblico.

Por fim, o Espírito que habita nos fiéis é o mesmo que ressuscitou Jesus dos mortos e continua sua obra na vida dos fiéis como garantia de que também estes ressuscitarão (Rm 8,11 1Cor 15,44s).


Bibliografia:

KITTEL, Gerhard. Theological Dictionary of the New Testament. Michigan: Eerdmans, 1965.
KOHLENBERGER, J. R.; GOODRICK, E. W. & SWANSON, J. A. The exhaustive concordance to the greek New Testament. Grand Rapids: Zodervan, 1995.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

domingo, 22 de agosto de 2010

O ESPÍRITO SANTO NO ANTIGO TESTAMENTO

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

A compreensão neotestamentária sobre a atuação do Espírito Santo na vida cristã foi herdada da tradição veterotestamentária e da tradição apostólica sobre Jesus de Nazaré, sua vida e suas palavras.
A expressão “Espírito de Deus” ou “Espírito Santo” encontra-se na maioria dos livros da Bíblia. Mas, no Antigo Testamento (AT), a expressão hebraica Ruah ha-Kodesh, referindo-se unicamente ao Espírito Santo, somente é encontrada no Sl 51,13 e Is 63,10. Ruah significa “respiração”, “vento” ou “brisa” e ha-Kodesh significa “do Santo”, ou seja, “de Deus”. Essa expressão é apenas um sinônimo de Deus ou da profecia por inspiração divina. Ruah ha-Kodesh também pode ser identificada com a Presença Divina na nuvem que guiava o povo no deserto e que pairava sobre a Tenda do Encontro no acampamento israelita (Nm 9,15-17).
Os autores bíblicos não filosofaram sobre a natureza divina, mas pensaram o Espírito Santo atuante. E, não obstante observemos uma identificação entre Deus e o Espírito Santo, também há uma clara distinção entre ambos. Mesmo que o pensamento monoteísta de Israel não lhe permitisse a noção de Trindade, há numerosas passagens no AT que estão em harmonia com a concepção trinitária e preparam o caminho para esta doutrina, como o Sl 139,7; Is 63,10; 48,16; Ag 2,5; Zc 4,6. A identificação é vista, principalmente, no Sl 139,7 (que declara a onipresença do Espírito), em Is 63,10 e Ez 36,27. Em um grande número, porém, de passagens, Deus e o Espírito Santo são distintos como, por exemplo, Gn 1,2; 6,3; Ne 9,20; Sl 51,13; 104,29s. Mas isso não significa que, no pensamento dos autores do AT, Deus e o Espírito Santo fossem considerados como dois seres distintos. A distinção entre ambos significa apenas que o Espírito Santo tinha funções que eram próprias dele. O Espírito Santo expressava a ação de Deus, particularmente quando uma ação humana caracterizava-se como efetivação de algum propósito divino. O Espírito significava, então, a ação de Deus imanente no ser humano e no mundo. Era Deus agindo dentro do ser humano e, ao mesmo tempo, enviado por Deus ao ser humano.
Os autores do AT consideraram os fenômenos da natureza como sendo o resultado da ação direta de Deus através do Espírito. Para o AT, é pelo Espírito que a vida é dada, mantida e redimida. A manifestação mais distintiva e importante da atividade do Espírito no AT está na esfera da profecia. O profeta era essencialmente distinto das demais pessoas como alguém que possuía o Espírito de Deus, enquanto os iníquos o tinham por louco (Os 9,7). Mensageiro de Deus, o profeta proclamava a mensagem divina através do Espírito que agia nele.
Em algumas passagens do AT o Espírito Santo é chamado de “bom” (Ne 9,20; Sl 143,10), principalmente porque ensina a fazer a vontade de Deus (Sl 143,10). Essas afirmações apontam para uma qualidade ética da ação do Espírito Santo. Mas é no Messias que a ação do Espírito Santo agirá de maneira especial, segundo a teologia do AT. O termo “messias” significa “ungido (de Deus)”. Nele o Espírito atuará de modo único, dotando-o com poder e sabedoria (Is 11,1-5) para a obra com a qual trará o reino de justiça e paz. Em Is 42,1ss o “Servo” é dotado do Espírito para promulgar o direito aos gentios. Em Is 61,1ss encontramos as notáveis palavras citadas por Jesus em Lc 4,18s: “O Espírito do Senhor está sobre mim...”.
Ao longo da história de Israel, quando os sofrimentos do exílio fizeram-se sentir pesadamente, surgiu uma tendência de idealizar uma era futura como a era da bênção especial do Espírito, marcada por um forte otimismo sobre um derramamento futuro do Espírito, como em Jl 3,1-5, citado em At 2,17-21.

Bibliografia:
CLARK, Matityahu. Etymological dictionary of Biblical Hebrew: based on the commentaries of Rabbi Samson Raphael Hirsch. Jerusalem & New York: Feldheim Publishers, 1999.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

A MULHER E A TEOLOGIA

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

As estatísticas mais recentes sinalizam para o avanço das mulheres em setores que há pouco tempo ninguém jamais sonharia em vê-las. A presença da mulher em várias áreas do conhecimento faz parte de um processo geral de evolução, de abertura, de democracia e de antiexclusão. A participação da mulher no campo da Teologia faz parte desse processo.

Apesar das conquistas atuais, ainda há um extenso caminho a percorrer em decorrência da pouca participação da mulher nas principais atividades religiosas segundo a Bíblia. Na Terra de Israel, no tempo de Jesus, a atuação da mulher ainda estava restrita ao âmbito doméstico. Contudo, algumas passagens dos evangelhos mostram que as mulheres são consideradas dignas de um tratamento diferente. Jesus não se sente constrangido em aproximar-se delas e tratá-las com dignidade. Algumas receberam uma nova chance e tiveram suas vidas restauradas. Não encontramos nos evangelhos palavras ofensivas de Jesus dirigidas à mulher. Além disso, o Mestre de Nazaré contrariou visivelmente os costumes de sua época quando as aceitou como seguidoras. E mais, os relatos das aparições do Ressuscitado mencionam as mulheres como testemunhas privilegiadas da ressurreição.

Alguém pode objetar que estamos fazendo uma leitura fundamentalista da Bíblia, pois não se pode provar que Jesus tenha tratado as mulheres de modo diferente do que era comum naquela época. De fato, nada disso pode ser provado cientificamente. Nem os evangelhos pretendem ser reportagens a respeito da vida de Jesus. Mas, teria a Igreja nascente inovado tanto os costumes daquela época se Jesus não tivesse tomado essas posições a respeito da mulher? Esses relatos sobre Jesus e as mulheres teriam saído da cabeça dos primeiros escritores cristãos se Jesus não tivesse, ele mesmo, vivido tais relacionamentos? Ou será que os escritores bíblicos acharam por bem colocar por escrito algumas narrativas que demonstram a libertação da mulher como sinal da irrupção do Reino de Deus na história? Essa atitude de Jesus anima a mulher de hoje a seguir pelas vias da Teologia. Setor até bem pouco tempo ocupado apenas por homens.

Fazer Teologia é coisa nova para quem é mulher. Ela não pode, da noite para o dia, ser uma expert no assunto. Precisa apropriar-se de longos anos de uma reflexão realizada apenas por homens. A experiência de fazer Teologia não é apenas uma novidade, mas um processo de conversão, primeiramente para a mulher que a faz, depois para a Igreja inteira. Hoje, as teólogas enfrentam cada vez menos a desconfiança dos homens a respeito de seu trabalho. Isso faz parte do reconhecimento geral dado às mulheres em todas as profissões antes exercidas apenas por homens. Contudo, à medida que as mulheres se destacam mais em suas carreiras, há uma maior exposição e, conseqüentemente, podem ser avaliadas de acordo com alguns parâmetros ainda ditados pelo mundo masculino. Devido a essa visibilidade, alguém pode procurar na teóloga alguma característica que corresponda ao que é esperado dentro da ótica masculina. Por isso, a atividade teológica da mulher também pede a conversão do homem. Há um novo jeito de fazer Teologia, há uma ótica diferente, há uma perspectiva feminina. Por isso, este é um momento riquíssimo de aprendizagem para a Igreja inteira. É também um maravilhoso desafio que marca a vida eclesial, e chama a atenção para unidade sem que isso signifique uniformidade, mas antes, respeito às diferenças individuais.

No início é comum a teóloga viver a tentação de ocupar-se em provar que é capaz, que tem condições de exercer essa tarefa com sucesso. O fato de ser mulher num universo profissional até então formado apenas por homens causa certo desconforto. Isto transparece na insistência, por parte de algumas teólogas, em produzir textos cuja temática se reduz à exaltação da mulher e a um suposto machismo onipresente. A insistência nessa temática é tanta que muitos teólogos tornam-se receosos em fazer críticas construtivas às colegas, coisa natural no âmbito do conhecimento, pois temem que isto seja interpretado como uma atitude machista. É necessário um período de adaptação de ambas as partes. O respeito será conquistado com a convivência profissional. Com o passar do tempo espera-se que o homem deixe de ser visto como um adversário e seja considerado como um parceiro dessa importante vocação. Caso a teóloga continue insistindo apenas no tema “mulher” isto só desmerecerá sua capacidade de abordagem de qualquer outra temática de interesse teológico mais amplo.

A teóloga precisa ter uma enorme consideração pelo mundo e pela humanidade, visando uma sociedade mais justa e com mais respeito ao meio ambiente. Que a Teologia feita por mulher faça com que a vida das pessoas possa mudar significativamente. Que vá ao encontro das aspirações mais profundas dos prediletos de Jesus: os abandonados, solitários, humilhados.

Ao fazer Teologia a mulher terá que assumir a responsabilidade de lutar por uma sociedade mais justa e fraterna, consciente de que isto não é um modismo, mas ação de Cristo hoje por meio de quem o segue. Isto significa uma imersão radical da teóloga na realidade humana mais sofrida e se constitui um serviço como Jesus o fez.

Em suma, o que se espera da mulher que deseja trilhar os caminhos da Teologia é que seja alguém de visão aguçada, uma sonhadora, até utopista. Mas, com um comportamento arrojado, proativo, versátil, dinâmico, persistente, direcionado para resultados, empreendedor, facilitador. Com discurso e prática estimulantes. Ou seja, alguém realmente de muita caridade, esperança e fé.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.