quarta-feira, 26 de outubro de 2011

ELES NÃO PRATICAM O QUE ENSINAM

Roteiro Homilético para o XXXI Domingo Comum - A (30 de outubro)
Aíla L. Pinheiro Andrade, nj *

I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia de hoje enfoca o papel de quem tem a responsabilidade do ensino e da liderança na Igreja, sejam bispos, presbíteros ou leigos. O tema é, na verdade, uma exortação e um convite à fidelidade. Na primeira leitura, o profeta Malaquias faz severa crítica aos sacerdotes antigos que, longe de levar o povo a encontrar-se com Deus e de pôr em prática a Escritura, afastavam as pessoas com falsas doutrinas: “Vós vos afastastes do caminho e fizestes tropeçar a muitos por vosso ensinamento” (Ml 2,8). Também Jesus, no evangelho, critica a postura dos líderes religiosos da época, reconhecendo que eles se assentam na “cátedra de Moisés”, mas agem com hipocrisia, pois não vivem o que exigem das pessoas comuns. “Sentar-se na cátedra” é expressão que ainda hoje significa “ter autoridade para ensinar”. A essa conduta Jesus contrapõe a docilidade e a simplicidade dos discípulos seus. Trata-se de qualidades vividas por Paulo, conforme o texto da segunda leitura: “nos tornamos pequenos no meio de vós” (1Ts 2,7).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1.  Evangelho (Mt 23,1-12): Um só é vosso mestre
O evangelho de hoje vem nos exortar acer-ca da responsabilidade que assumem os que se dedicam ao ensino e à liderança da comunidade.
Jesus afirma a autoridade dos que assumiram a tarefa do ensino. Exorta a todos os seus ouvintes a fazer e observar o que lhes é ensinado. Mas chama a atenção para a conduta desses líderes, pois o comportamento deles está em contraste com o que ensinam. E isso é sinal de infidelidade à missão assumida.
O primeiro contraste apontado por Jesus é o acúmulo de observâncias exigidas do povo que não fazem parte do cerne da fé. E tais práticas não são de todo desconhecidas para nós. Vemos muitas vezes fiéis que se impõem “pesados fardos” como necessários para chegar a Deus. Esse tipo de conduta retrata uma visão deturpada de Deus. Ele não quer de nós observâncias externas, mas apenas o nosso coração. E é dever nosso, sejamos líderes ou não, ajudar essas pessoas a encontrar o núcleo na fé cristã: seguir Jesus.
Outro contraste diz respeito à hipocrisia e ostentação das pessoas que, por estarem à frente da comunidade, querem ser tratadas com honra e gostam de ser reconhecidas como “mestres”. Mas Jesus afirma: “um só é vosso mestre”. Dessa forma, destrói toda pretensão de usurparmos o lugar que não é nosso. Podemos nos sentar na “cátedra” para ensinar, mas ela não nos pertence.
Jesus nos ensina como deve ser o comportamento do verdadeiro discípulo: deixar que Cristo seja o único mestre. E a prova da grandeza do discípulo não está no uso de títulos, mas no serviço humilde ao irmão, pois o mais importante é a fraternidade. Foi isso o que Jesus, o mestre, nos ensinou com sua vida. Se nos dedicarmos ao serviço fraterno, com certeza mereceremos nos sentar para ensinar, pois o mais eloquente discurso que proferimos é nossa própria vida configurada a Cristo.

2.  I leitura (Ml 1,14b–2,1-2b.8-10): Um só é vosso guia
Os sacerdotes levitas tinham como missão ensinar a vontade de Deus ao povo. Essa vontade, expressa na Escritura, nem sempre é realizada pelo ser humano, porque este é limitado e pecador. Em decorrência disso, os sacerdotes deveriam realizar os ritos de reconciliação entre o pecador e Deus. Os ritos eram, portanto, secundários; vinham em auxílio ao pecador para que este não permanecesse afastado de Deus. O profeta Malaquias faz dura crítica aos sacerdotes, porque não realizam de forma correta estes dois aspectos da missão deles: não ensinam ao povo a vontade de Deus nem realizam corretamente os ritos de reconciliação e comunhão. Portanto, o povo fica duplamente afastado de Deus por culpa dos sacerdotes levitas. Os que tinham a missão de guiar o povo como representantes de Deus não o faziam adequadamente, e por isso Deus os rejeitou para essa função. Para que o povo não se perdesse, Deus mesmo prometeu ser seu guia.

3.  II leitura (1Ts 2,7b-9.13): Um só é vosso Pai
O apóstolo Paulo é exemplo concreto de como deve ser o seguidor de Jesus. Ele se apresentou perante os tessalonicenses sem ostentação e sem orgulho. Não se sentia melhor que os outros apenas porque tinha recebido de Deus a missão de ensinar as verdades do cristianismo. Paulo esteve entre os tessalonicenses cheio de doçura e mansidão. Estava convicto de sua autoridade para ensinar, no entanto o fazia como uma mãe a seus filhinhos. A responsabilidade que sentia era tão grande, que estava disposto a dar a própria vida em favor deles. O apóstolo trabalhava dia e noite, por generosidade, para que os tessalonicenses não tivessem gastos com ele. E porque não buscava os próprios interesses, a sua pregação foi eficaz. Paulo deixava toda a honra para Deus Pai, a quem servia por meio de Jesus e do Espírito Santo.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO
A homilia é uma exortação à fidelidade, e não um momento para que o presidente da celebração explique e justifique qualquer falha ou omissão. As leituras são claras: criticam todas as pessoas constituídas em autoridade para ensinar e guiar o povo. Em primeiro lugar atinge os ministros ordenados e depois os leigos que exercem algum mandato para essas funções. Tanto os sacerdotes levitas quanto os escribas e fariseus estavam nas funções de condução e ensino do povo. Hoje essas funções são exercidas na Igreja também por clérigos e leigos. É bom destacar um momento penitencial no qual se reconheçam as limitações em vez de “dar desculpas” pelos comodismos ou culpar a alta hierarquia. A Igreja santa e pecadora somos todos nós. É bom aproveitar a exortação que a liturgia nos faz para avaliarmos a quantas anda a missão, que é um mandato para todos nós. Ensinamos o que é vontade de Deus ou aproveitamos o momento para nos sentirmos maiores e melhores que os outros? Servimos ou somos servidos?

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade  é graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

O MAIOR MANDAMENTO

Roteiro Homilético para o XXX Domingo Comum - A (23 de outubro)
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*
I. INTRODUÇÃO GERAL
A liturgia de hoje destaca o maior mandamento: amar a Deus e amar o próximo. No livro do Êxodo, encontramos uma série de leis sobre os deveres para com as categorias sociais mais necessitadas naquela época: estrangeiros, viúvas, órfãos e endividados. No Novo Testamento, essas exigências são plenificadas pelas palavras de Jesus, ao pôr em paralelo o amor a Deus e o amor ao próximo. Mais que palavras, a obra redentora de Cristo é a expressão de seu amor ao Pai e ao ser humano. O Filho de Deus é verdadeiramente aquele que se fez próximo de quem mais necessitava da plenitude da vida.


II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Mt 22,34-40): Amor a Deus, amor ao próximo
O evangelho de hoje nos situa diante de uma pergunta muito importante não apenas para os judeus, como também para nós, cristãos: o maior mandamento. É importante para nós, seguidores de Jesus, porque o mandamento nos reporta à prática evangélica.
A resposta de Jesus, fundamentada na Escritura, une dois mandamentos já conhecidos e praticados pelos judeus. O primeiro é amar a Deus (Dt 6,5), que resume a vocação própria de Israel, a razão de sua existência. Em Cristo, essa vocação estendeu-se a todos nós, chamados a amar a Deus no Filho amado. Ele nos ensinou o caminho de acesso a Deus Pai, no amor e na doação de sua vida integralmente.
O segundo é amar o próximo como a si mesmo (Lv 19,18), cujo fundamento é Deus, que ama o ser humano. A realização desse mandamento faz parte da vocação de Israel e, em Jesus, chegou à plenitude, porque Cristo amou o próximo não como a si mesmo, mas como o Pai o ama. Deu-se totalmente ao outro como se dava totalmente ao Pai e como o Pai se dava a ele. Sem reservas. Por isso, ao unir os dois mandamentos e defini-los como vontade de Deus expressa na totalidade da Escritura (Lei e Profetas), Jesus apresenta uma novidade à sua época e a nós.
Jesus quer ressaltar que o mais importante para cumprir a vontade de Deus não é o muito fazer, seja por Deus, seja pelos irmãos. O importante é ser para o outro, como ele próprio foi para Deus e para o próximo. Toda a sua vida e missão traduziram quem ele é: o Filho amado. Toda a sua ação em prol do outro foi baseada no amor filial, fonte de sua existência. Toda a Escritura (Lei e Profetas) testemunha que a realização da vontade de Deus está no cumprimento do duplo mandamento de amar a Deus e o próximo. Tudo o mais, nossos afazeres, nossas devoções etc. só têm sentido se nascem desse mandamento.
2. I leitura (Ex 22,20-26): “Quem ama a Deus ame também a seu irmão” (1Jo 4,21)
A série de leis que aparecem nesse texto bíblico baseia-se em dois fundamentos:
– não se deve fazer a outrem o que não é desejado para si mesmo (Ex 22,20);
– Deus é o libertador e tem particular cuidado com os atribulados, escuta seus clamores e é misericordioso para com eles (Ex 22,26).
São estas as categorias sociais mencionadas nas proibições:
o estrangeiro. Na Antiguidade, cada indivíduo tinha a identidade vinculada a uma tribo ou clã de origem que o protegia. Em viagem ou quando havia migração de uma pequena família para outra região, então facilmente essas pessoas ficavam sem proteção e à mercê da violência, por causa da distância da tribo à qual pertenciam.
a viúva e o órfão. A mulher era protegida pelo pai e, na falta deste, pelos irmãos adultos; se casada, pelo marido e, na ausência deste, pelos filhos adultos. A viúva propriamente dita era uma mulher cujo pai ou irmãos estavam ausentes e que, com a morte do esposo, tinha ficado sozinha com filhos ainda crianças. Nessa condição, a mulher estava totalmente desprotegida, podendo sofrer violência e escravidão. Ela está na mesma situação da criança órfã.
3. II leitura (1Ts 1,5c-10): Sois um exemplo para todos
A segunda leitura é um exemplo prático de amor a Deus e ao próximo, concretizado no perdão e na perseverança.
Paulo elogia os tessalonicenses por perseverarem na fé, apesar das tribulações pelas quais passaram. Os tessalonicenses imitavam o modo de viver de Paulo e, em última instância, o modo de viver de Cristo. Quando abraçaram a fé cristã, os tessalonicenses sofreram calúnias e outras perseguições dos moradores da cidade. Mesmo assim, nada os impediu de perseverar no amor a Deus e na divulgação do evangelho entre os que os perseguiam. Isso mostra que o amor ao próximo não é sinônimo de ajudar os aflitos. O próximo é aquele de quem me aproximo, seja para ajudar, seja para perdoar. Não podemos confundir “próximo” apenas com “necessitado”.
Os cristãos de Tessalônica eram alegres, apesar das perseguições. Não sentiam uma alegria superficial, como a que brota de um coração vazio de sentido e sedento por diversões. Tratava-se, antes, da alegria profunda de quem não guarda rancor, de quem sabe perdoar e amar. Os tessalonicenses perseveravam no amor a Deus e ao próximo.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Destacar na homilia a dicotomia presente na vida de alguns cristãos e chamar a atenção para a unidade entre fé e vida.
Muitos cristãos ainda não assimilaram o mandamento de Jesus sobre o amor a Deus e ao próximo. Muitos lutam por justiça, têm uma prática social e estão engajados na luta por um mundo melhor, mas não têm um momento para estar com Deus em oração, não têm tempo para o Senhor, e, em consequência, suas ações não são fruto de escuta ou de discipulado. Outros cristãos vivem para louvar, para práticas devocionais de novenas e rosários; passam tanto tempo na igreja, que não têm um momento para a família, para os amigos, para os vizinhos ou colegas de trabalho.
Discípulos e missionários, orantes e atuantes, dedicados a amar a Deus e amar o próximo, é isso que constitui verdadeiros seguidores de Jesus.
(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).
* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

terça-feira, 4 de outubro de 2011

IDE POR TODOS OS CAMINHOS E CONVIDAI PARA O MEU BANQUETE

Roteiro Homilético para o XXVIII Domingo Comum - A (09 de outubro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

A liturgia de hoje apresenta a salvação sob a metáfora de um banquete preparado por Deus para todos os povos. No idioma em que o texto foi escrito, há certa dificuldade para falar sobre os sentimentos, sobre o humor ou sobre os estados de espírito. Por isso se tomam emprestadas da linguagem cotidiana as metáforas que servem para expressá-los. A dor é representada pelo fogo (ou pelo gelo) que queima, pelas lágrimas ou pelo ranger de dentes. A alegria é simbolizada pelo banquete. Quando a Bíblia fala sobre o fogo eterno ou o banquete eterno, está apenas simbolizando os sentimentos de tristeza ou alegria infinita.

A refeição era o maior gesto de comunhão, e a liturgia judaica sempre usa o comer e o beber para falar do encontro de irmãos entre si e com Deus. Estar à mesa com alguém é fazer aliança com ele. Nos textos da liturgia de hoje, o banquete de Deus é para todas as pessoas, não apenas para Israel. Somos convocados para o banquete de Deus e somos enviados por ele para convidar a todos para a mesa da nova aliança. II.

COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 22,1-14): Vinde ao banquete

O evangelho acrescenta um aspecto novo ao texto de Isaías: trata-se de um banquete nupcial. “Núpcias” ou “casamento”, no idioma de Jesus, significam o mesmo que “aliança”. Assim, o texto quer dizer que todos são chamados a ingressar na nova aliança realizada em Jesus. Mas a resposta a esse convite nem sempre é positiva ou adequada, como se percebe nas atitudes dos candidatos.

Há quem recuse o convite apesar de nada ter-lhe sido exigido, mas, ao contrário, tudo ter-lhe sido oferecido. Essa atitude significa a rejeição ao amor e à gratuidade de Deus, muito comum na sociedade atual. Muitas pessoas não querem nem ouvir falar de Deus. Acham que tudo o que possuem é fruto do esforço pessoal. Deus nada tem a ver com isso. São incapazes de perceber o amor de Deus presente nelas próprias e naquilo que as rodeia.

Há quem aceite, mas não use a veste adequada, ou seja, não tenha disposição interna para o seguimento de Cristo. Sua fé é desvinculada da práxis. Muitos cristãos querem viver a fé superficialmente, buscando apenas usufruir do que a religião possa lhes oferecer por aquele momento. Uma vez satisfeita sua “necessidade”, esquecem-se de Deus. São pessoas que não têm vínculo real com a fé e suas exigências.

O convite a participar do banquete da nova aliança é feito a todos, sem distinções. Mas a adesão a Cristo requer uma resposta radical, que envolva a totalidade da vida. E nem todos estão dispostos a mudar sua “veste”. É por isso que “muitos são chamados, e poucos são escolhidos”: isso significa que o número dos que entraram na aliança é inferior ao dos chamados, por causa da superficialidade da resposta ao convite de Deus.

2. I leitura (Is 25,6-10a): Diante de mim preparas uma mesa

O texto menciona um banquete suntuoso que revela a grandiosidade e a generosidade de quem o oferece. Numa terra cercada por desertos, é de admirar um banquete de carnes gordas regado com vinhos finos. Trata-se não somente de uma ocasião de grande alegria, mas também de uma manifestação de abundância.

O banquete será oferecido no monte Sião, ou seja, em Jerusalém, capital da terra de onde mana leite e mel, quer dizer, da terra fértil numa região desértica. A menção do vinho merece mais atenção: “vinho fino” tem o mesmo sentido de “preservar”, significa que o vinho retém cor, cheiro e sabor apesar do tempo. Nesse banquete, será servido um vinho que ganhou qualidade ao longo do tempo. Significa uma nova aliança que plenifica a primeira.

No mesmo versículo é mencionado o “vinho depurado” ou refinado. Geralmente, esse termo é usado para os metais preciosos purificados no fogo. Aqui significa que os resíduos do processo de fermentação foram retirados. Esses elementos também evocam a qualidade da nova aliança.

Nesse banquete oferecido a todos os povos, Deus se revelará de modo definitivo, pois o véu dos povos será retirado. Cobrir a face era uma maneira usual para expressar pesar (2Sm 15,30) ou a forma de uma moça se apresentar diante do noivo para indicar que não se “conheciam”, ou seja, que ela era virgem. Esses dois sentidos estão no v. 7, referindo-se ao relacionamento entre Deus e as nações. Sem a revelação, os povos não conhecem a Deus e por isso estão mortos. É necessário retirar o véu e a mortalha para poder ter a comunhão proposta pelo banquete.

A destruição da morte e da dor faz pensar no futuro do reino definitivo. Trata-se de bem-aventurança anunciada também no Apocalipse: “Deus enxugará todas as lágrimas de seus olhos, e não haverá mais a morte” (Ap 21,4).

3. II leitura (Fl 4,12-14.19-20): Deus tudo proverá em vossas necessidades

Enquanto não se dá a plenitude do reino, quando já não haverá lágrimas, mas somente o banquete nupcial do Messias, a situação atual dos seguidores de Jesus é cheia de altos e baixos.

Paulo nos ensina a viver bem em qualquer situação, seja de penúria, seja de abundância. O apóstolo aprendeu, ou melhor, recebeu a instrução dessas situações de penúria e de fartura. Ele adquiriu sabedoria tirada dessas experiências que ele vivenciou.

Paulo sabe que a Deus tudo pertence e que Deus é rico em misericórdia. Por isso o apóstolo se mostra inteiramente confiante toda vez que passa por dificuldade. Ele confia na graça de Deus e, portanto, está preparado para passar por qualquer situação.

Contrária a isso é a atitude de muitos cristãos de hoje, que mantêm um relacionamento comercial com Deus. Se alguma coisa não vai bem, então Deus tem de lhes solucionar o problema. Essa atitude corresponde à veste inadequada mencionada no evangelho. III.

PISTAS PARA REFLEXÃO

Estamos no segundo domingo do mês de outubro, mês dedicado às missões. O ano litúrgico corre para o seu final. As leituras estão exigindo cada vez mais o compromisso dos cristãos. Eis que o Rei se aproxima. É necessário convidar a todos para o banquete, é preciso que cada um verifique se está com a veste adequada. É bom incentivar a assembleia para um compromisso maior. Todos somos convidados para o banquete, mas também somos enviados a convidar. Nossa práxis cotidiana, fruto de verdadeiro compromisso com Deus, é nossa melhor forma de evangelizar, mas não a única; é necessário ir “às encruzilhadas dos caminhos e convidar para a festa” (Mt 22,9) todos os que encontrarmos. Não podemos deixar de evangelizar porque temos muitos afazeres (v. 5).

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

TRABALHAR NA VINHA DO SENHOR

Roteiro Homilético para o XXVII Domingo Comum - A (02 de outubro)

 Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

O tema da vinha é predominante na liturgia de hoje. Trata-se de parábola comum ao Antigo e ao Novo Testamentos da qual primeiro os profetas e, depois, Jesus se serviram para falar do amor de Deus e da ingratidão do ser humano. Na primeira leitura, Isaías descreve a história de Israel como a história da vinha que o Senhor plantou e à qual deu condições para que produzisse bons frutos. O evangelho resume a metáfora de Isaías e a desenvolve, falando de outros imensos benefícios feitos por Deus, primeiramente o envio dos profetas e, enfim, o envio do Filho como prova suprema de amor. A segunda leitura pode ser tomada como um convite à gratidão para com Deus e como compromisso de nossa parte para darmos abundantes frutos de boas obras.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 21,33-43): Entregarão os frutos no tempo certo

Numa releitura do texto de Isaías, o evangelho de hoje vem acentuar a importância dos líderes religiosos no exercício de sua missão na comunidade: cuidar da vinha.

O cultivo da vinha exige muita dedicação, porque ela representa frequentemente os escolhidos de Deus, que são muito valiosos para ele. O dono da vinha esteve distante até o tempo em que ela deveria dar frutos e a confiou a “empregados”. Jesus está dizendo a seus interlocutores que eles são apenas servos de Deus, que a função deles é entregar os frutos para o verdadeiro dono, mas eles quiseram fazer as coisas do jeito deles.

Os servos quiseram a parte que pertencia a Deus. Mas somente o Senhor tem a última palavra na condução do povo. E somente a Deus pertence o louvor, não aos líderes religiosos. Então a liderança religiosa já não estará com aquele grupo; caberá a quem fizer a vinha produzir frutos para Deus.

Essa realidade criticada pelo evangelho está presente na Igreja em todos os tempos, porque o ser humano é sempre tentado a usurpar o lugar de Deus. Para aprendermos a assumir nosso papel na liderança da comunidade, basta olhar para Jesus, que não se apegou a seu ser igual a Deus, mas assumiu a condição de servo (cf. Fl 2,6-7). E ele é o herdeiro da vinha. Por isso, Jesus é o caminho a ser seguido não somente pelos líderes religiosos, mas por todos os cristãos que queiram realizar na sua vida a vocação humana e cristã: ser para Deus. Se realizarmos essa vocação, certamente a vinha do Senhor dará muitos frutos no seu tempo.

2. I leitura (Is 5,1-7): Esperava que produzisse uvas boas

O poeta canta em versos a história de amor entre seu Amigo e a vinha. Primeiramente destaca o cuidado que seu Amigo teve para com ela: preparou a terra, plantou mudas selecionadas; deu-lhe proteção permanente com vigias, construindo uma torre; evitou que as uvas se estragassem, fazendo um tanque de amassar uvas. Esses cuidados fizeram dela uma “vinha preciosa” (Jr 2,21). Contudo a vinha não correspondeu às expectativas de seu proprietário. Para Isaías, a vinha é Israel e Judá, a totalidade do povo de Deus. Que expectativas não foram correspondidas? O exercício da justiça e do direito.

O poeta afirma que seu Amigo, o proprietário da vinha, identificado com o Senhor dos exércitos, convoca os moradores de Jerusalém para julgar a vinha. O proprietário faz duas perguntas: a primeira sobre as próprias atividades, e a segunda sobre a produção da vinha. No final, o proprietário dá uma sentença, anunciando o que fará. E suas atividades para com a vinha serão o oposto dos cuidados iniciais. O ápice é o v. 7, no qual estão em contraste as expectativas de Deus e a resposta negativa do povo.

A vinha não produz os frutos esperados, o povo não realiza obras que agradam a Deus, especificamente a justiça e o direito. Essas palavras da primeira leitura são bem atuais; hoje elas se dirigem a nós que somos povo de Deus em Jesus Cristo.

3. II leitura (Fl 4,6-9): Ocupai-vos com tudo o que é bom

O texto da segunda leitura traça um itinerário para que o cristão possa ter uma práxis que seja fruto de seu relacionamento com Deus.

Primeiramente diz: “Não vos preocupeis com coisa alguma”. Isso não significa ser irresponsáveis nas tarefas, nas atribuições, nas profissões, nos relacionamentos familiares etc., e sim que as preocupações com o cotidiano não devem tomar demasiado espaço em nossa vida. Quanto mais se confia em Deus, tanto mais os pensamentos ficam livres de aflições e ansiedades (cf. Mt 6,25 e 1Tm 5,8).

Se alguma situação se torna muito difícil para nós, então devemos nos reportar a Deus com orações e súplicas. A palavra “súplica”, no idioma em que o texto foi escrito, denota o sentido de algo do qual necessitamos muito, de alguma coisa vital para nós. Mas as orações e súplicas devem estar unidas à ação de graças, porque devemos agradecer a Deus antes mesmo de receber a resposta dos nossos pedidos. Talvez Deus não realize exatamente o que esperamos, mas sabemos que ele sempre responde às nossas orações e por isso devemos agradecer imediatamente.

Em seguida, após depositarmos nossas dificuldades nas mãos de Deus, então já não estaremos tão estressados como antes e poderemos saborear “a paz que supera todo entendimento” (v. 7). Sentimos paz não porque a situação foi resolvida, mas porque ela já não nos sufoca – afinal, somos a vinha bem cuidada de Deus. E como nossa mente já não está sobrecarregada com preocupações e ansiedades, então podemos nos ocupar com o que é essencial (v. 8): levar uma vida exemplar no mundo (dar testemunho), sendo verdadeiros, sabendo respeitar a dignidade do outro, sendo amáveis, sendo puros, enfim, praticando as virtudes.

Paulo termina dizendo que esse comportamento os filipenses aprenderam observando o modo como ele, Paulo, se comportava. Quem dera as pessoas pudessem também aprender essas coisas pelo testemunho dos cristãos. Então o mundo inteiro seria uma vinha que produz frutos agradáveis para Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Também para os membros da Igreja valem as palavras de Isaías e de Jesus; por isso a homilia deve evitar estabelecer contraposição entre Israel e Igreja, para não deixar os cristãos numa posição muito confortável. Se a vinha, que é a vida de cada fiel na Igreja, não der frutos, Jesus dirá hoje as mesmas palavras que dirigiu aos líderes religiosos da sua época.

Estamos iniciando o mês missionário, e todo batizado deve ser “vinha do Senhor”, dar frutos e evitar o comodismo que freia a missão. Esta não deve ser entendida como atividade individual e fruto de recursos e capacidades humanas, mas sempre como colaboração com a obra missionária de Cristo, pois ele é a origem e fonte de toda atividade missionária na Igreja.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

 * Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ENSINA-ME, SENHOR, OS TEUS CAMINHOS (Sl 25,4)

Roteiro Homilético para o XXVI Domingo Comum - A (25 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

Os textos de hoje nos mostram que o reino de Deus entra em diálogo com o ser humano para que este possa distinguir entre o modo como se dá a ação divina e a maneira humana de proceder. O ser humano é uma tarefa, ele nunca vai estar terminado; sua existência no mundo é um constante fazer-se e refazer-se baseado nas decisões tomadas com livre arbítrio.

Quem é bom pode deixar o caminho do bem, e quem é perverso pode abandonar a vereda do mal. Por isso, Deus está constantemente chamando o ser humano para que deixe os caminhos tortuosos e diga um “sim” consciente e maduro que seja realmente “sim”. Para isso, Deus envia mediadores, na tentativa de chegar ao coração humano.

Contudo, as pessoas podem recusar o chamado de Deus, fazer pouco caso de sua proposta ou até mesmo ser hostis com os mediadores que ele envia. É sobretudo por orgulho que opõem obstáculos à própria salvação. Por isso, exorta-nos o apóstolo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo”.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 21,28-32): João ensinou o caminho da justiça e não acreditaram nele

Jesus, para nos instruir sobre nossas próprias escolhas, conta-nos a parábola dos dois filhos que mudaram de atitude. Deus nos fez livres. A salvação que ele nos oferece é puro dom. Cabe a nós responder “sim” ou “não” a esse convite. O livre-arbítrio possibilita ao ser humano acolher em sua vida o bom ou o mau caminho. Há sempre a possibilidade de mudar de rumo. É isso o que nos mostra o texto. Ambos os irmãos mudaram de rumo. Um fez a vontade do pai e o outro não.

Estar no rumo certo não é sinônimo de segurança, pois podemos ser facilmente levados para outro caminho se não nos mantivermos atentos ao chamado constante de Deus. Por isso a necessidade constante de conversão, porque não estamos prontos. E os que se acham “santos” são muito facilmente propensos ao erro, mais do que os que têm firme consciência das próprias limitações. Os “santos” acabam afogando-se na sua soberba e se fecham à graça divina. Ao contrário, os pecadores são mais abertos para acolher a graça, pois confiam apenas na misericórdia de Deus.

Fazer a vontade de Deus é muito mais acolhê-lo na vida diária do que proclamar discursos vazios, destituídos de testemunho de vida. Deus nos chama constantemente a viver seu amor na doação total de nossa vida ao irmão. Deve-se viver esse chamado nos atos cotidianos, nas relações interpessoais, nas próprias escolhas. Fazendo assim, caminha-se na justiça e no testemunho fidedigno do reino de Deus.

2. I leitura (Ez 18,25-28): Deus ensina o caminho aos pecadores

O texto começa com uma estranheza: “o caminho do Senhor não é direito” (v. 25). Pensava-se dessa forma porque Deus não fazia o que se esperava, a saber: recompensar o “justo” e castigar os “injustos”. Esse modo diferente de Deus proceder irritava as pessoas tidas como santas naquela época.

Por meio do profeta, Deus toma a palavra e põe as intenções humanas às claras: os caminhos humanos é que são tortuosos, mas, apesar disso, Deus continua chamando, respeitando o livre-arbítrio e perdoando a cada um de seus filhos.

Em primeiro lugar, Deus se dirige aos tidos por justos. O que se pode dizer de uma pessoa realmente justa? Como pode ser qualificada uma pessoa convertida? Aquele que aparentemente é santo e irrepreensível e comete atos que fazem transparecer grande maldade no coração pode ser considerado justo ou convertido? Segundo o texto que foi proclamado, a pessoa que se qualifica assim não é verdadeiramente justa, e Deus, que tudo vê, considera os atos de iniquidade dela, e não sua suposta justiça externa.

Outros são tidos por pecadores, hereges, infiéis, gentinha de má conduta. A estes Deus convida à conversão e, caso tenham abertura para acolher o perdão divino, é-lhes assegurado que não serão considerados os atos praticados numa vida desregrada, muitas vezes afetada por condicionamentos sociais, religiosos e psicológicos.

Enfim, o texto bíblico exorta todos à conversão, e a todos está destinado o perdão de Deus.

3. II leitura (Fl 2,1-11): O esvaziamento de Cristo nos ensina o caminho para Deus

O apóstolo Paulo pede aos filipenses que tenham os mesmos sentimentos de Cristo (v. 5). Com isso, ele espera resolver o problema daquela comunidade: egoísmo e arrogância (v. 3) e dissensões internas que ameaçavam o amor, a unidade e o companheirismo. Mas quais seriam os sentimentos de Cristo que o apóstolo deseja inculcar nos filipenses?

Para definir bem de que se trata, Paulo usa o termo “esvaziamento” ou “abaixamento”, que significa privar-se de poder ou abdicar de um direito que se possui. Cristo não se apegou à sua condição divina nem usou dos privilégios dela em favor de si mesmo, mas assumiu a existência humana como servo.

O abaixamento de Cristo não é apenas tornar-se humano, mas, além disso, tornar-se servo.

Isso caracteriza a totalidade da vida de Jesus, que assumiu as limitações humanas e esteve à mercê de nosso egoísmo e violência, responsáveis pela sua morte terrível na cruz. Porque, acima de tudo, ele quis atender ao bem-estar e aos interesses dos outros em vez de ter interesses egocêntricos.

Esse modo de viver de Jesus nos ensina o caminho para Deus. É descendo a escada da humildade que ascendemos ao reino definitivo. Esses critérios são diferentes dos critérios humanos, mas são o único e legítimo caminho para a verdadeira humanização e para Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O momento atual é marcado por uma religiosidade intimista e subjetiva de relacionamento vertical: o indivíduo e Deus. Isso traz como consequência a ideologia da prosperidade: “Eu não cometo pecados escandalosos e, em troca, Deus me abençoa com o que quero”. Esse tipo de religiosidade suscita a ideia de um Deus castigador que está contra os “maus” e recompensa os “bons”. As leituras de hoje mostram que tal pensamento é tortuoso e não representa os critérios de Deus. Por isso é bom destacar na homilia a gratuidade, o cuidado com os mais fracos, a tolerância e o diálogo que constroem comunidade.

Hoje é o dia da Bíblia, palavra de Deus, “luz para os passos, lâmpada para o caminho” (Sl 119,105). Esta data não deve passar sem algum destaque na comunidade. Há um clamor uníssono para que a palavra de Deus seja o centro da vida e da missão da Igreja. Este dia é ótima oportunidade para que sejam iniciados (ou melhorados) eventos que destaquem a centralidade da palavra de Deus em toda a Igreja, começando pelas comunidades mais simples e pequenas até atingir o mundo inteiro.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MEUS CAMINHOS NÃO SÃO OS VOSSOS (Is 55,8)

Roteiro Homilético para o XXV Domingo Comum - Ano A (18 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras de hoje exortam-nos a tomar cuidado para não reduzir Deus aos critérios humanos, por melhor que eles sejam. Deus ultrapassa tudo o que se pode pensar ou dizer sobre ele. Muitas vezes seus planos se tornam incompreensíveis ao ser humano. Quando isso acontece, resta-nos perseverar na fidelidade sem mudar de caminho, a exemplo de Jesus, que disse: “Pai, afasta de mim este cálice, contudo não se faça a minha vontade, mas, sim, a tua” (cf. Mt 26,39).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 20,1-16a): “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.

O texto situa-se no “sermão sobre a comunidade”. Jesus continua instruindo seus seguidores sobre como se comportar no mundo.

O reino dos céus é aqui comparado ao proprietário que contratou vários trabalhadores para sua vinha, em horários diferentes. No final, paga a todos igualmente, começando pelos últimos, contratados à tardinha, até os primeiros, contratados de manhã.

A maneira como o patrão trata seus operários nos chama a atenção para a gratuidade com que Deus nos acolhe em seu reino. Não é segundo os critérios humanos que Deus age em favor da humanidade. A estranheza das palavras de Jesus nessa parábola deve nos chamar a atenção para nossa maneira de julgar a Deus ou de atribuir-lhe atitudes especificamente humanas.

Geralmente o ser humano quer recompensa por suas boas ações. E, quando não se sente recompensado, acha que Deus é injusto, ou não o ama, ou esqueceu-se dele. Costuma-se até dizer: “Por que Deus não atende às minhas preces? Sou tão dedicado, tenho tanta fé!”.

Mas a maneira de Deus agir não se iguala à nossa. Ele é absolutamente livre para agir como quiser. E essa liberdade é pontuada por seu amor incondicional e sua generosidade inestimável. Deus nos ama e deu-nos mais do que ousamos pedir. Deu-nos a vida. Deu-nos a si mesmo no seu Filho. Deu-nos a eternidade ao seu lado.

Por isso, o reino dos céus não se apresenta como recompensa por nossos méritos pessoais. É puro dom de Deus, que nos chama gratuitamente a participar da vida plena. Cabe a nós acolhê-lo como dom ou ficar numa atitude mesquinha de sempre esperar recompensas por méritos prévios. Isso não é cristianismo, não é gratuidade. Isso não é resposta amorosa a Deus.

2. I leitura (Is 55,6-9): Que o perverso deixe o seu caminho

O texto da primeira leitura é uma oferta de perdão, de paz e de felicidade para os pecadores. Em primeiro lugar, assegura que as orações e o arrependimento serão acolhidos por Deus: “buscai o Senhor... invocai-o... deixe o mau caminho... converta-se... que o Senhor se compadecerá” (v. 6-7).

Deus não é como o ser humano, seus pensamentos são totalmente diferentes. Deus é infinitamente fiel: não desiste de seus filhos, não cessa de ofertar-lhes sua misericórdia sem limites. Ao contrário, o ser humano desiste de Deus, trilha outros caminhos bem diferentes daqueles que são propostos pelo Senhor.

“Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao Senhor... volte-se para o nosso Deus” (v. 7).

Em primeiro lugar, arrepender-se é mudar de caminho, de atitudes, é tomar outros tipos de decisões, fazer outras escolhas. Mas não é só isso: há que mudar também os pensamentos, ou seja, transformar-se internamente, mudando de mentalidade em relação ao mundo, às pessoas e às situações; mudar de ideia a respeito de si mesmo, mudar até mesmo as concepções sobre Deus e sobre seus caminhos, porque o Senhor sempre estará muito além do que se pode dizer e pensar a respeito dele.

Converter-se é mudar de mente e voltar aos caminhos do Senhor. Mas voltar a ele não porque houve total compreensão do seu projeto, e sim porque ele é soberano e misericordioso. A vida humana só tem sentido no relacionamento com Deus, e, quando seus caminhos são difíceis de entender e de trilhar, resta, acima de tudo, perseverar na fidelidade.

3. II leitura (Fl 1,20c-24.27a): Meu viver é Cristo

Grande exemplo de perseverança, mesmo que os planos de Deus se tornem incompreensíveis, é-nos dado na leitura da epístola aos Filipenses.

O cristão vive unicamente para Deus, não em função de recompensas por méritos pessoais. Qualquer que seja a situação, boa ou ruim, deve perseverar no bem e na busca de agradar unicamente a Deus, seguindo em frente sem hesitar. O cristão não deve desanimar nunca, mesmo se, depois de repetidos esforços, sentir-se fracassado ou mesmo perseguido, como o apóstolo Paulo. É necessário confiar somente em Deus, pois só ele pode dar eficácia à atividade humana. Mesmo sem entender o que acontece consigo, o cristão deve viver de modo digno do evangelho (v. 27).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Não considerar a parábola no plano da justiça social, mas respeitar a estranheza das palavras de Jesus, que tem por objetivo nos conscientizar de que o reino de Deus não se baseia em mérito-recompensa, mas é puro dom. O próximo domingo será o dia da Bíblia; é bom destacar a importância do itinerário do povo de Deus, comparando-o ao daqueles trabalhadores das primeiras horas. Os hebreus foram os primeiros a responder “sim” ao apelo do dono da vinha. As demais nações herdaram desse povo as alianças, as promessas, a história e principalmente o Messias. Sejamos gratos a Deus e a Israel, nosso irmão mais velho, fatigado pelo dia inteiro de trabalho.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

PERDOAI-NOS, SENHOR, COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS OFENDE


Roteiro Homilético para o XXIV Domingo Comum - Ano A (11 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL
O tema da liturgia de hoje é o perdão. A oração que Jesus ensinou a seus discípulos traz o imperativo do perdão mútuo ao mesmo tempo que nos assegura o perdão divino. O pedido “perdoai-nos como nós perdoamos” não limita a ação de Deus em relação às nossas faltas, mas nos introduz na dinâmica divina de perdoar sempre. É porque Deus tem misericórdia de nós que devemos ter misericórdia de nossos semelhantes. Deus nos perdoou primeiro, e nós correspondemos a tão grande dom perdoando nosso próximo da maneira que nosso Pai nos perdoa. O mal deve ser vencido com a bondade ilimitada, que se manifesta incansavelmente no perdão. As leituras de hoje mostram que, se o mal é intensamente prolífero, deve o bem ser muito mais.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 18,21-35): Perdoai sempre

Pedro estava convicto de que tinha feito boa proposta a Jesus sobre o exercício do perdão. No entanto, Jesus eleva esse valor ao máximo possível. Se observarmos o texto de Gn 4,24, veremos que estão em jogo também esses números, só que no contexto da vingança.

No Antigo Testamento, a atitude de um descendente de Caim, Lamec, que se propõe vingar até setenta vezes sete, dá margem a uma corrente sem freios de violência. A atitude de Lamec é tão contrária ao ensinamento de Jesus quanto a atitude do servo é contrária à do patrão. A parábola quer ensinar que a morte de Jesus, segundo os critérios de Lamec, careceria de vingança infinita por parte de Deus. No entanto, o Pai, representado pelo patrão, não vingou seu Filho, mas perdoou infinitamente (setenta vezes sete). E com isso pôs fim à corrente de violência por meio do perdão.

Com isso se quer ensinar que somente o perdão, ato divino que somos chamados a praticar, pode pôr fim à violência. Como membros do corpo de Cristo, nossa atitude diante das ofensas sofridas é perdoar sempre, pois não há ofensa maior do que aquela realizada por nós a Deus: a morte do Herdeiro amado. Mas o Pai transformou essa ofensa em perdão e salvação.

Perdoar sempre não quer dizer passividade ou omissão diante do erro e da injustiça, mas sim não guardar mágoa ou rancor, tampouco sentimentos de vingança. Somente pelo perdão, fruto do amor, podemos construir um mundo mais pacífico, fraterno e amoroso.

2. I leitura (Eclo 27,33–28,9): Perdoa a ofensa de teu próximo

Esse texto bíblico do Antigo Testamento (nas edições católicas, não consta da bíblia hebraica) representa um avanço na maneira pela qual as pessoas lidavam antigamente com as ofensas. O autor pede que se renuncie à vingança, afirmando que somente as pessoas afastadas de Deus é que nutrem a ira, o desejo de vingança no coração.

Quem tem um relacionamento mais íntimo com o Senhor deveria cultivar um espírito de misericórdia, já que a proximidade com Deus revela tanto as faltas do ser humano quanto o perdão divino.

A consciência de que todos têm necessidade da misericórdia de Deus deveria tornar as pessoas mais religiosas e mais dispostas a perdoar. Infelizmente nem sempre é isso que se vê.

O texto bíblico pede que a pessoa rancorosa pense na morte e perdoe as ofensas recebidas. “Pensar na morte” não significa “pensar num castigo eterno”, mas conscientizar-se de que a morte iguala a todos nós. Todos morremos, e isso significa que ninguém é melhor que o outro e todos nós somos muito mais devedores de Deus do que de uns para com os outros.

3. II leitura (Rm 14,7-9): Pertencemos ao Senhor

Frequentemente as mágoas e os rancores surgem da intolerância com o diferente. Algumas pessoas não suportam que outras pensem e vivam a religião, a missão, a profissão ou outras situações humanas de modo distinto. Há uma tentativa de uniformizar as opiniões. Geralmente se confunde unidade com uniformidade. Estar no mesmo grupo ou equipe e pensar ou agir de modo diferente é motivo para ser tachado de rebelde, de falta de espírito comunitário etc. Nessas situações é necessário discernimento, e o apóstolo Paulo nos dá uma pista para não criarmos ressentimentos por causa da pluralidade: “Ninguém vive para si mesmo... é para o Senhor que vivemos”. Aqueles que pensam e agem diferentemente de mim fazem-no por causa do Senhor ou para exaltar a si mesmos? E eu, quando penso que determinados pensamentos e atitudes das outras pessoas estão errados, é por causa do Senhor que penso assim ou é para exaltar a mim mesmo?

Cristo é o Senhor, nós pertencemos a ele; portanto, não devemos criar guerra em vez de bons relacionamentos somente porque alguém que caminha conosco dá passos diferentes e observa outras coisas no caminho.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Levar a comunidade a uma reflexão sobre o perdão e a tolerância. Estamos seguindo Lamec ou Jesus? Estamos empenhados em construir pontes ou em edificar muros entre as pessoas? É necessário sondar o próprio coração, perceber se ali estão aninhadas intolerâncias, ressentimentos, aversão ao “diferente”. Maturidade afetiva exige autoconhecimento bem como um coração livre daquela mesquinha estreiteza do ser humano, o qual, embora constantemente necessitado de misericórdia, por vezes se mostra incapaz de perdoar ofensas insignificantes.

Neste mês dedicado à Bíblia, deixemos que a palavra de Deus penetre até nos recônditos mais profundos de nosso ser e nos transforme em verdadeiros irmãos de Jesus e filhos de Deus.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

NÃO FECHEIS OS CORAÇÕES

Roteiro Homilético para o XXIII Domingo Comum - Ano A (4 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

Iniciamos o mês da Bíblia com o tema da correção fraterna. Em todas as leituras de hoje, a palavra de Deus vem insistir que somos responsáveis uns pelos outros e devemos ser um suporte para os fracos, indecisos, tíbios, apáticos na fé e no seguimento de Jesus.

Pouquíssimas pessoas têm coragem de advertir alguém que está errado. É mais fácil condenar, humilhar, fofocar ou ser indiferente. Mas a Bíblia afirma e reafirma a responsabilidade de uns para com os outros. Deus nos pedirá contas da vida de nossos irmãos e irmãs. Por isso, hoje, quando ouvirmos a sua voz, não endureçamos nosso coração.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 18,15-20): Se ele te ouvir, terás ganho teu irmão

O texto do evangelho de hoje situa-se no contexto do “sermão sobre a comunidade”, cujos textos são direcionados especificamente para orientar a vida na Igreja. E um tema muito precioso para o Evangelho de Mateus é a correção fraterna, essencial para o crescimento pessoal do cristão na comunidade.

O evangelho nos orienta no delicado passo da correção fraterna. Primeiramente devemos tomar consciência de que o ato de corrigir o irmão é nossa responsabilidade. O texto é claro: “Vai!” É um imperativo que nos interpela. A não realização desse mandato significa erro grave, pois nos omitimos diante do erro do outro, deixando que um membro do corpo de Cristo permaneça no engano.

O texto nos apresenta a preocupação com o retorno à comunidade de quem se desligou pelo pecado. Por isso são empregados todos os recursos para a volta do irmão. É uma correção feita com respeito e amor. São oferecidas várias oportunidades para a conscientização sobre o erro. Primeiramente a exortação pessoal, para preservá-lo de constrangimento diante da comunidade. Depois, a exortação diante de algumas testemunhas; por fim, diante da comunidade, para que o irmão obstinado em sua má conduta reconheça, perante a autoridade da Igreja, a situação em que ele mesmo se colocou.

Todo esse procedimento nos ajuda a perceber o papel mediador da Igreja para ajudar um membro a sair do erro. Isso porque não caminhamos sozinhos, mas fazemos parte de um corpo, necessitamos uns dos outros para viver nossa fé.

Se levarmos a sério nossa responsabilidade para com nosso irmão, nossa ação de exortá-lo, de encaminhá-lo para o rumo certo, proporcionar-nos-á ganhar um irmão na caminhada de fé. Nossa maior preocupação deverá ser não apontar os erros dos nossos irmãos na comunidade, mas reconduzi-los de volta à comunhão com Deus expressa na comunidade crente. Se fizermos isso, certamente a Igreja desempenhará bem seu papel de mediação da boa-nova de Jesus Cristo.

2. I leitura (Ez 33,7-9): Perdoa ao teu irmão

O profeta é não apenas o porta-voz de Deus, mas também uma sentinela para o povo. A sentinela era alguém que estava de prontidão, que permanecia acordado enquanto todos dormiam. Era alguém que percebia a aproximação de um inimigo ou de um viajante noturno aos portões da aldeia. Esse simbolismo nos ajuda a ver nossa responsabilidade perante as pessoas com as quais convivemos em casa, no trabalho, na vizinhança, nos círculos de amizade, na Igreja. Devemos estar atentos aos outros: perceber se estão em perigo, se correm algum risco de pôr a si mesmo ou outras pessoas em perigo.

A expressão bíblica “exigir o preço do sangue” significa ser responsável pelo outro. Deus exige que não sejamos omissos, que não deixemos as pessoas seguir para um precipício sem alertá-las – com bondade e compaixão, sem condenar nem humilhar – sobre a necessidade de mudança de atitude.

Em todo caso, deve-se respeitar o livre-arbítrio de quem é adulto e responsável pelos próprios atos, mas somente depois de ter sido tentado tudo o que é humanamente possível para o bem do próximo.

3. II leitura (Rm 13,8-10): Quem ama o próximo cumpriu toda a Lei

Os preceitos da Lei de Deus sobre as relações humanas culminam no amor mútuo. O “amor não pratica o mal contra o próximo” e também não quer o mal para os outros. O fato de alguém não fazer nenhum ato de maldade não significa que possa ficar confortável, dizendo a si mesmo: “Não roubei, não matei, logo sou bom para meu próximo”. Quem não pratica o mal, mas se omite ou negligencia a responsabilidade pelo outro, não ama verdadeiramente o seu próximo. Responsáveis que somos por nossos semelhantes, não devemos ficar no comodismo, mas ajudá-los a ser alguém melhor.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

É oportuno lembrar serem vários os motivos da omissão, os quais geralmente envolvem medo ou frieza de coração. Temos receio de advertir alguém e ser repelidos, perder a popularidade ou ser tachados de intransigentes. Por isso é mais fácil “lavar as mãos”, como fez Pilatos, e dizer: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Não deixemos que nosso coração fique endurecido diante do clamor silencioso de quem está envolvido numa teia de erros e não consegue sair sozinho dessa armadilha. É mais fácil julgar-se superior, murmurar, fofocar, condenar quem caiu ou está em perigo de queda.

Comecemos este mês da Bíblia formando uma consciência de “povo de Deus”, todos unidos como irmãos e irmãs da mesma família, responsáveis uns pelos outros. Se alguém se desviou do caminho, vamos ao seu encontro e insistamos para que retorne. E, caso não queira nos ouvir, não desistamos: oremos para que Deus mesmo o reconduza. Somente não endureçamos nosso coração.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

DOIS IRMÃOS

*Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj

Numa leitura superficial sobre Caim e Abel, Deus aparece como um sanguinário que provoca o primeiro assassinato. Mas a base desse texto é a crença de que a vida (vegetal, animal, humana) vinha de Deus e por isso se fazia oferenda em reconhecimento disso. Para a Escritura a oferenda não podia ser apenas para se evitar um castigo de Deus. No texto bíblico não parece que o Criador abençoe uma oferta de sangue em vez de vegetais. O que o texto diz é o seguinte: Caim: “trouxe do fruto da terra uma oferta” (Gn 4,3) e não as primícias. Ou seja, apenas cumpriu um ritual para assegurar a colheita do ano seguinte.

“Abel, por sua vez, trouxe das primícias do seu rebanho e da gordura (em hebraico: lev = coração)" (Gn 4,4). Abel trouxe o melhor. O único sangue que aparece neste texto é o de Abel (v. 10). Esse texto quer falar de inveja, de ganância e de pessoas que usam a religião em função dos próprios interesses. Não há nenhuma referência a um Deus sanguinário, mas a um homem sanguinário. A tradição popular de Caim e Abel falava do difícil processo de sedentarização dos hebreus, principalmente por causa do Quenitas (Caim) que eram muito violentos.

Trata-se de um conflito entre povos. O pastor é nômade porque a vida dele está nos rebanhos ao qual ele deve acompanhar. O agricultor é sedentário porque toda a riqueza dele está na semente que depositou no solo e que ele defende a qualquer custo. Para o pastor a terra foi doada por Deus a todas as pessoas e quem não partilha a terra está sendo ambicioso.

Vejamos esse mito em três versões:

1) A versão do agricultor: Era uma vez os deuses sumérios Dumuzi, o pastor, que competiu com Enkimdu, agricultor, pelo amor de Inanna. Esta escolheu Dumuzi como marido. Por causa da ambição dela (desejo de trazer o mundo inferior sob seu domínio), Inanna decidiu descer ao mundo inferior, no qual ficou presa. E Enkimdu fez magias pelas quais Inanna foi estabelecida à vida. Entretanto havia uma lei no mundo inferior que ninguém poderia ser devolvido à superfície sem prover um substituto. E Dumuzi, o marido devia substituí-la. Só que Dumuzi não podia ser mantido lá para sempre e voltava a cada primavera. E assim Dumuzi passou a ser considerado Tammuz, responsável pela fertilidade do solo.

2) A versão do Pastor: Era uma vez Caim (EnKimdu) e Abel (Dumuzi) que competiam pelo amor do SENHOR. Parece que o problema não foi a oferta, mas o coração do ofertante. Naquele contexto era impossível conciliar pastores e agricultores, inimigos mortais, pois ovelhas invadiam as plantações, mas o autor bíblico teve a coragem de afirmar: “O pastor (Abel) e o agricultor (Caim) são irmãos”.

Essa narrativa bíblica parece ser do mesmo contexto de Is 56, quando se propõe uma abertura religiosa. Uma época em que os judeus já estão há bastante tempo no exílio da Babilônia. O mais importante para aqueles que estão no estrangeiro é ser luz para as nações e não guerrear com elas. Por isso o autor, do texto de Caim-Abel, no exílio, diz *somos irmãos*. Lembremos que a Babilônia foi acusada de ambiciosa e invejosa (2Rs 20,15). A Babilônia seria Caim e Judá seria Abel.

No processo histórico, o nomadismo veio antes da sedentarização, no entanto, a narrativa nos diz como o SENHOR castigou Caim: “serás fugitivo e errante pela terra. Então, disse Caim ao SENHOR: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. Eis que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me matará” (Gn 4,12-14).

Então:
a) Aquele que era sedentário se tornou nômade (errante). O inverso (proposital) do processo histórico. Deus estaria dizendo: Caim
(sedentário) seu castigo será viver a vida que você tirou do seu oponente (nômade). Pois, somente se colocando no lugar do outro é que poderá entendê-lo;

b) O texto dá uma dica clara sobre o contexto histórico, perguntemos: para quem “ser lançado para fora da terra” é um castigo insuportável? O judeu fora de Israel. Viver errante é viver no exílio, na diáspora. No final, tanto Abel, quanto Caim, são apenas duas faces da mesma moeda, ou da mesma pessoa.

3) A versão de Jesus: Era uma vez um homem que tinha dois filhos (Lc 15,11). O mais novo "se mandou pelo mundo", e gastou tudo numa vida dissoluta. Depois que a "grana" acabou e os “amigos” sumiram, ele voltou para casa, confiando no amor de seu pai. Este ficou feliz, mandou matar o novilho cevado (o melhor) para o filho. Será que tem alguma coisa a ver com Abel também ter dado o que tinha de melhor? Mas, o filho mais velho, voltando do campo (Lc 15,25, era agricultor) ficou indignado: “nunca mataste um cabrito pra mim?” (Lc 15, 29) (inveja e ambição). E acusou o irmão de gastar o patrimônio da família com prostitutas (Lc 15,30). Exagero muito comum aos judeus mais rigorosos, acusar os judeus da Diáspora e os gentios em geral de idólatras (= prostituição). A primeira parte da parábola apenas afirma que o filho mais novo foi dissoluto, que os amigos só duraram enquanto a grana durou e que ele sofreu muito. Mesmo assim o pai quer bem aos dois por igual.

A parábola do Filho pródigo deve ser estudada no contexto das outras duas parábolas dos perdidos: a ovelha e a moeda. O contexto é de um debate entre Jesus e alguns escribas Lc 14. O evangelista quer mostrar que Jesus contou algumas parábolas para explicar seus argumentos aos opositores. Jesus aproxima-se dos pecadores porque esta é a vontade do Pai Criador. Esta vontade já estava expressa na releitura bíblica dos mitos antigos e nas Escrituras dos Judeus.

O texto de Caim e Abel é um mashal para dizer aos judeus da época que os babilônicos ou qualquer outro adversário deve ser considerado irmão. É verdade que há violência entre as pessoas, mas Deus nos fez irmãos e não inimigos eternos como afirmava o mito antigo.

Bem, os três textos falam de conflitos e discórdias. O texto de Gn não é apenas a versão pastoril. O SENHOR ama Caim e ama Abel, só que a ferta de Caim não valeu, pois não veio do coração. Não adianta só cumprir um ritual. O filho mais velho do texto de Lc também cumpre tudo (Lc 15,29) e não ama, nem uma vez pronuncia a palavra PAI.

Os dois textos bíblicos dizem: somos irmãos. Deus não quer guerra entre pastores e agricultores, eles não são inimigos, são irmãos. IRMÃO, palavra mais repetida no texto de Caim e Abel. Deus não quer guerra entre as etnias, nações e religiões. Jesus não quer a discórdia entre seu seguidores e o povo a que ele pertence (Lc 15,1-2).


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O tesouro do Reino: discernir e preferir (Mt 13,44-52)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*  

Roteiro Homilético para o 17º Domingo do Tempo Comum – ano A

Evangelho
O trecho do evangelho de hoje traz mais uma série de parábolas sobre o Reino dos céus (ou de Deus).

Primeiramente, o Reino é comparado a um tesouro escondido em um campo e encontrado por um homem (v.44). Algumas coisas são afirmadas sobre esse personagem:
- ele encontrou o tesouro
- ele o escondeu novamente
- ele ficou muito feliz (transbordando de alegria)
- ele vendeu tudo que tinha porque preferiu o tesouro
- ele não podia comprar o tesouro, mas apenas o campo onde o encontrou

A estranheza nesse texto do evangelho é a atitude desonesta do homem. Conforme a Torah (o Pentateuco), ele tinha o dever de informar a descoberta para o dono do campo. Esse elemento que choca o nosso senso ético tem o propósito de chamar a nossa atenção para o significado espiritual. As parábolas fazem uma comparação entre a realidade espiritual e a realidade material. O elemento estranho serve para assegurar que a realidade do Reino é incomparável, está muito além do que podemos imaginar. Essa transação comercial não seria possível naquela época nas condições descritas pela parábola. O elemento estranho serve para implodir a estorinha depois de narrada, para que fiquemos apenas com o ensinamento.

E qual é o ensinamento da parábola? Que quando alguém encontra o Reino, mesmo sem o ter procurado, fica tão feliz a ponto de preferi-lo a qualquer coisa. Tudo se torna relativo em comparação com o Reino. Mas quem olha de fora, sem ter feito a experiência com Jesus, não entende os motivos da renúncia e do desprendimento, o Reino permanece invisível para quem não o encontrou. Ensina também que ninguém tem mérito para possuir o Reino, ele nos é dado por Jesus, nós não podemos comprá-lo, mas apenas renunciar a tudo por ele.

A segunda parábola (v. 45-46) está na mesma linha de reflexão que a primeira. A diferença principal é que a pérola de grande valor foi encontrada por alguém que se esforçava em procurá-la (grego: zetéo). Encontrar o Reino é resposta a uma busca insistente pelo Bem, pela Verdade e pelos demais valores que são alvos dos anseios humanos.

Um detalhe importante e não narrado, mas suposto, é que a formação da pérola se dá somente quando a ostra é ferida. Quando um corpo estranho (geralmente um grão de areia) consegue penetrar na concha, a ostra o isola para se defender. A pérola é consequência dessa defesa, é a lágrima da ostra ferida. O que começou como um desastre para a ostra pode se transformar na jóia mais bonita.

A terceira é a parábola da rede (v. 47-50). O termo grego “sagéne” é dado para um equipamento de pesca semelhante a uma draga no fundo do lago arrastada pelo barco e que recolhe todo tipo de coisa.

O ensinamento é o mesmo da parábola do joio. Até que chegue o final dos tempos, os bons e os maus devem conviver. Os que buscam o Reino devem ter misericórdia para com aqueles que não o buscam ainda. A rede está varrendo o fundo desse lago e ninguém escapa dela. Alguns ainda estão no início do processo de amadurecimento, outros já fizeram grandes renúncias. Mas estamos todos juntos, na mesma rede.

Não nos assustemos com a menção da fornalha (v.50), não devemos entendê-la de forma literal, ainda se trata de uma comparação e com o objetivo de retomar a parábola do joio (v. 42). A fornalha é onde se purifica o metal como o ouro e a prata dos quais se retiram as impurezas. É verdade que a purificação dói, mas também é verdade que ela nos torna valiosos, dignos da vocação que recebemos.

“Compreendestes tudo isto? Sim, Senhor, responderam eles” (v. 51).

Se compreendermos que o Reino exige escolhas e que devemos tomar decisões difíceis por causa dele. Que a felicidade do Reino não vem em curto prazo. Que uma lágrima pode se tornar uma pérola de grande valor. Se compreendermos que Jesus foi o primeiro a renunciar seus privilégios para se encarnar em nosso meio. Se entendermos que o tipo de morte que ele sofreu era o pior que poderia acontecer a um ser humano. Se compreendermos que ele não fez tudo isso apenas pelos bons, mas principalmente pelos piores pecadores. Enfim, se compreendermos tudo isso, não intelectualmente, mas com o coração e a vida, é sinal de que já somo doutores no evangelho, somos escribas instruídos do Reino. Saberemos tirar do velho depósito da primeira fase da revelação (Antigo Testamento) a novidade da Palavra de Deus sempre atual.


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral. 

quarta-feira, 13 de julho de 2011

O crescimento do Reino e a Misericórdia de Deus (Mt 13, 24-43)


16º Domingo do Tempo Comum - Ano A





O texto de Mt 13,1-23 apresenta o Reino de Deus como uma semeadura. Os relatos que vêm em seguida (Mt 13, 24-43) desenvolvem mais profundamente esse tema por meio de outras parábolas. O texto começa com parábola do joio plantado no trigal (v. 24-30). O mundo é um campo misto, onde o trigo e o joio crescem; e é impossível separar o trigo do joio, enquanto estivermos neste mundo, uma vez que estão bem misturados.

Jesus nos pede paciência. Ele nos ensina, com a própria vida, que somos capazes de existir e de dar frutos em um mundo plural, numa época em que o bem e o mal estão entrelaçados. Portanto, não devemos transformar o mundo num campo de batalha, cada um querendo eliminar seu adversário. Certamente existe o joio, mas não é possível traçar uma linha no chão e dizer “deste lado está o bem e do lado de lá está o mal”. O joio está tão misturado com o trigo, que até mesmo no interior e nas ações das pessoas mais religiosas o joio está presente. Somente no fim dos tempos Cristo poderá separar o joio do trigo.

Por enquanto, permanece o mundo paradoxal. Essa ideia é completada pelas parábolas que vêm em seguida: a da menor semente (v. 31-32) e a do fermento nas três medidas de farinha (v. 33). Primeiramente, Jesus mostrou uma oposição entre duas sementes e entre dois semeadores; agora, destaca o contraste entre o tamanho da semente e o tamanho da hortaliça e entre a pequena medida de fermento e a quantidade da massa. As oposições convivem no mundo. Os servos do dono da casa querem antecipar o juízo dentro da história, destruindo o joio à força. Esta é a tentação de nosso momento histórico, queremos eliminar as oposições pela força da violência contra o outro que temos por adversário ou desafeto.

Cristo, ao contrário, não entende o mundo como um campo de batalha e deixa a sua semente crescer e amadurecer no meio do joio. Um mundo onde só existe o trigo é outro tipo de mundo, no qual se vive plenamente o amor, e o Cristo o chamava de Reino de Deus. Se formos intolerantes com as pessoas, isso mostra que o joio está em nós, porque não estamos produzindo frutos de amor, mas de violência velada e sutil. E violência é fruto do joio semeado no coração.

E como fica a luta por justiça? Ela deve permanecer. Devemos estar atentos para que o joio não seja semeado e não contamine o campo inteiro. O que Jesus nos proíbe é fazer justiça com as próprias mãos, é disseminar o ódio e a violência. Jesus espera que sejamos o bom trigo e não o joio.

Os cristãos são muitos, mas os que verdadeiramente seguem Jesus constituem um pequeno número, são como a mostarda e o fermento, mas, como a força do trigo é o amor, esses poucos e verdadeiros cristãos fazem com que este mundo caminhe para uma plenitude. Enquanto não chega o fim dos tempos, devemos agir como Deus age.

Para o livro da Sabedoria (Sb 12,13.16-19), Deus é o Senhor absoluto de todas as criaturas e não há outro Deus: essa é a afirmação bíblica do monoteísmo. Apesar de sua onipotência, ele prefere agir com misericórdia em relação às suas criaturas. O domínio de Deus sobre as criaturas estende o amor dele sobre todos os seres, com especial atenção ao ser humano, mais digno de misericórdia porque é o único que peca. Isso não significa que Deus não seja justo, mas que nele se harmonizam misericórdia e justiça.

O modo como Deus age em relação aos incrédulos e aos pecadores leva o autor do livro da Sabedoria a concluir que Israel deve agir para com todos os povos, igualmente, com misericórdia, a exemplo de Deus, misericordioso e compassivo. Ao levar a sério o monoteísmo, Israel teve uma lição de humanismo, teve de ir além da lei do “olho por olho”. Isso preparou o povo para a revelação do Novo Testamento sobre o amor aos inimigos. O texto do livro da Sabedoria também sugere que a salvação é para todos os povos, e isso prepara o anúncio da salvação universal feita pela Igreja primitiva.

Salvação que não é obra humana, afirma o texto de Rm 8,26-27. A salvação é dom de Deus e vem a nós por intermédio de Jesus Cristo. O nosso empenho consiste é na santificação, pelo Espírito Santo. A santificação é realizada ao longo de nossa existência numa configuração de nossa vida ao modo como Cristo viveu, ou seja, fazendo a vontade de Deus.

Mas é difícil ajustarmo-nos à vontade divina; em muitos momentos da vida não conseguimos nem discerni-la. Não sabemos sequer o que pedir a Deus, e muitas vezes, sem saber, insistimos com ele para que nos conceda algo que poderá ser prejudicial a nós ou aos outros. Somos como bebês que tentam se comunicar sem ainda poder articular palavras compreensíveis, que fazem sons sem sentido como reação às palavras, olhares e carinhos dos adultos. O Espírito Santo, em nós, faz a mediação, transmitindo ao Pai o que não conseguimos expressar devido à nossa pequenez, à nossa fragilidade.

O Espírito Santo se faz solidário a nós, não tira a nossa fraqueza, mas nos ajuda em nossa debilidade. Sem a ajuda do Espírito Santo, não saberíamos sequer o que dizer a Deus em nossas orações. Mesmo quando pensamos que sabemos o que devemos pedir, podemos estar totalmente equivocados. O dom do Espírito Santo é a prova de que Deus cuida de nós em todos os sentidos.

Ir Aíla Luzia Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas) e Palavra Viva e Eficaz (Paulus).