Introdução
A motivação primeira para uma reflexão sobre a omissão enquanto pecado vem de uma preocupação contínua com a vida comunitária e o papel representado por cada membro no seio de uma comunidade concreta. Segundo o ensinamento dos Evangelhos se um irmão pecar contra ti deves admoestá-lo; se mesmo assim não se resolve a questão deves buscar testemunhas (Mt 18,15-16). A consciência de que fazemos parte de um corpo nos obriga a fazer algo diante de situações de pecado; obriga-nos a não nos omitirmos.
O Pe. Caetano Minette de Tillesse[1] afirmava com toda confiança, para não dizer segurança, que “diante de Deus seríamos julgados não pelo que fizemos de errado, mas pelo bem que deixamos de fazer”. Não sabemos em que “autoridade teológica” ele se apoiava para tal afirmação, por isso, prefiro crer que vinha da experiência de vida e de fé acumulada ao longo de seus oitenta anos, quase todos dedicados ao estudo da Escritura, nela buscando a luz para guiar sua vida e missão em Deus e com Deus.
À luz desta afirmação e experiência de fé, tomadas a princípio como verdadeiras, buscamos uma aproximação entre o “Confiteor” e o “hatta΄t” do livro do Levítico, para tentarmos perceber o que tal idéia tem a nos dizer hoje. Como pode ressoar na vida dos fiéis modernos. O que tem a comunicar aos religiosos comprometidos duplamente, com a comunidade de fé, a Igreja e com a pequena comunidade a qual pertence.
1 A Igreja e a consciência do pecado
É no mínimo instigador perceber que os pecados são mencionados quase sempre em contextos litúrgicos. Precisamos distinguir “o pecado” e “pecados”. O primeiro refere-se à condição humana refletida em sua globalidade e como tal teve todo um desenvolvimento doutrinal que não será abordado aqui, pois não é esse o objetivo deste escrito. O segundo, objeto próprio deste estudo, refere-se às situações concretas de nosso dia-a-dia, às nossas ações livres. Tem haver com nossas escolhas e deliberações e aí repousa o cerne da questão. A Igreja aí surpreende.
Constantemente, mesmo entre membros comprometidos acusa-se a Igreja de acentuar demasiadamente o pecado, gerando assim cristãos excessivamente escrupulosos. Lembramos que um pouco disso se deu na Idade Média com relação ao desenvolvimento da doutrina do “Pecado Original” e a discussão sobre a justificação provinda da Reforma e não aos pecados nomeados “mortais” ou “veniais”. Esses sim tratados na teologia moral. Mesmo estes são tematizados enquanto reiteram um afastamento da vontade salvífica de Deus por parte do ser humano. Devemos constatar estarrecidos que não é bem como pensávamos.
2 A recitação do Confiteor
Minha tese é que a omissão se constitui como falta grave e talvez a mais grave, sendo terreno propício a outros erros. Mas ela aparece somente na confissão sacramental da penitência e mesmo assim em último lugar, como podemos observar:
"Confesso a Deus todo-poderoso e a vós irmãos e irmãs, que eu pequei tantas vezes por pensamentos e palavras, atos e omissões: por minha culpa, minha tão grande culpa. E peço a Virgem Maria, aos anjos e santos, e a vós, irmãos e irmãs que rogueis por mim a Deus. Amém"
Esse é o texto atual, mas essa oração de confissão conheceu uma história distinta até 1962. O Missal Romano trazia uma fórmula um pouco diversificada, mais longa e o termo “omissões” não aparece. A omissão é acrescida à oração e colocada como par dos “atos” na revisão do Rito Romano posteriormente.[2]
Demasiadas vezes recitamos essa confissão sem levar bastante a sério o que pronunciamos. Quando o fazemos, reconhecemos que “deixamos de fazer um bem porque assim o decidimos”. Considerando que “pecar” é, segundo o testemunho bíblico, errar o alvo e “omitir” é decidir não agir em favor de outrem para o bem[3], creio ser razoável julgar mais sério o segundo caso.
Mas, não é assim tão simples. Tal reflexão poderia parecer estranha ao pensamento hodierno. Não é ela também carregada de peso? Não acentua muito o aspecto do pecado em detrimento da Boa Nova trazida pelo Cristo? Refletir sobre a omissão enquanto pecado, buscando afirmar uma severidade não testemunhada claramente na História da Teologia não é, no fundo, seguir na contra mão do pensamento teológico moderno? Esperamos ter as respostas a essas questões ao final do nosso percurso. Analisemos agora o sacrifício pelo pecado segundo o testemunho bíblico presente no Livro do Levítico.
3 Levítico e os sacrifícios pelo pecado (hatta΄t)
Do mesmo modo que o Confiteor, a omissão não aparece de modo claro e inequívoco. Aliás, o termo como tal não aparece no testemunho escriturístico do sacrifício levítico. Os sacrifícios no livro do Levítico são amplos e entre eles importa ressaltar o hattat e o asham. Por quê? Porque para os israelitas, os sacrifícios tinham que ser acompanhados pela intenção (kavanah) de voltar ao bom caminho. Isso supõe uma consciência moral do pecado enquanto erro do alvo. Nisso reside o problema da interpretação dos textos bíblicos.
A distinção entre hattat (sacrifício pelo pecado) e asham (sacrifício pelo delito) teve interpretações diversas. O primeiro parece ser mais amplo e abrange desde as faltas involuntárias contra algum preceito da Lei até o caso específico da omissão de um testemunho (Lv).
Partindo desse pressuposto Willi-Plein[4] estuda os sacrifícios num horizonte que ela denomina “perturbação da ordem” estabelecida na criação. Ela chega à conclusão que o hattat não tem nenhum aspecto moral. A moralidade, segundo ela, aparece no asham, tanto que é neste segundo que se segue a ordem de um ressarcimento.
Já René de Vaux[5] conclui que os dois são muito próximos e o sentido dado a eles é diverso desde a Patrística, chegando a conclusões diametralmente opostas entre os autores.
“Fílon pensava que o hattat expiava as faltas involuntárias contra o próximo, o asham as faltas involuntárias contra Deus e toas as faltas voluntárias. Segundo Josefo, a distinção seria entre os pecados cometidos sem testemunhas e os pecados cometidos diante de testemunhas. Origenes tirava a diferença da gravidade do pecado: o hattat para as faltas que mereciam a morte, o asham para as faltas que não a mereciam. Santo Agostinho define o peccatum como um de pecado de comissão, o delictum como um pecado de omissão, ou bem o primeiro como uma falta voluntária, o segundo como uma falta involuntária.”
Há ainda autores que defendem a distinção entre hattat e asham como sendo da ordem da relação entre as faltas cometidas contra a divindade e contra o próximo. Seja como for não há um consenso em relação ao acento tipicamente moral destes sacrifícios.
À guisa de conclusão
Não encontramos nada, na história da teologia, que comprove uma acentuação dada à omissão enquanto pecado. Apesar das divergências a respeito da interpretação do texto bíblico, a idéia de fundo da Escritura e da confissão expressa no Confiteor é: mesmo o que deixamos de fazer tem conseqüências e somos responsáveis por elas. Se há responsabilidade, há uma moralidade implícita que não pode ser ignorada.
Não é nossa intenção acrescentar pesos a cargas já pesadas, mas a responsabilidade pelas conseqüências do que deixamos de fazer é um dado inalienável para quem tem consciência da essência da vida cristã, uma vida em prol do próximo, como foi a vida de Jesus, uma pró-existência. Nesse sentido e só nesse podemos afirmar com o Pe. Caetano o peso da omissão. É dentro do contexto de uma vida totalmente entregue em benefício de outrem que a omissão pode aparecer de forma tão danosa e preocupante.
Não esqueçamos que Jesus ao aplicar a chamada “regra de ouro” faz uma inversão na mesma. Não mais é expressa na negativa e sim positivamente: “Tudo quanto, pois, quereis que os homens vos façam, assim fazei-o vós também a eles;” (Mt 7,12). Não se trata de cumprir simplesmente a Lei, mas viver segundo o espírito da Lei; não visa primeiramente coibir e sim promover a vida plena, a vida em comunhão de justiça com Deus e os irmãos.
Notas:
* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1] Pe. Gaetan Minette de Tillesse, sacerdote belga, exegeta renomado e radicado no Brasil há mais de trinta anos e fundador do Instituto Religioso Nova Jerusalém.
[2] Vincenzo RAFFA, Mistagogia della Messa: dalla storia e dalla teologia alla pastorale pratica. Roma: Colizioni liturgiche, 2003, p. 227-236.
[3] Segundo o dicionário Houaiss: ato ou efeito de omitir (-se); ato ou efeito de não mencionar (algo ou alguém), de deixar de dizer, escrever ou fazer (algo); Rubrica: termo jurídico: ato ou efeito de não fazer o que moral ou juridicamente se deveria fazer, e de que resulta, ou pode resultar, prejuízo para terceiros ou para a sociedade.
[4] Ina WILLI-PLEIN. Sacrifício e culto no Israel do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2001, p. 91-104.
[5] René de VAUX. Les Sacrifices de L'Ancien Testament. Paris: J. Gabalda e Cie, 1964 (Les Cahiers de la Revue Biblique), p. 82-100.
[6] Id. p. 88-89.
Nenhum comentário:
Postar um comentário