terça-feira, 4 de agosto de 2020

O Sofrimento humano no livro de Jó: teologia em tempos de pandemia


Vivemos em tempos difíceis, tempo de isolamento social, devido à pandemia do novo coronavírus. Pandemia essa que faz aflorar várias doenças em nossa sociedade, nos campos físico, psicológico, econômico e social. Foi pensando nisso que preparamos esta reflexão sobre o sofrimento na Bíblia. O que o texto sagrado tem a nos dizer a respeito do sofrimento? A Bíblia inteira é permeada de acontecimentos que fazem parte da realidade humana de qualquer tempo e lugar. Acontecimentos vivenciados muitas vezes por pessoas que sofreram, que passaram por experiências traumáticas em todos os aspectos da vida. Pessoas que se parecem contigo, comigo, pessoas que não são diferentes de nós.

Portanto, a Bíblia é um livro que destaca o sofrimento entre as experiências existenciais vivenciadas pela humanidade. Os tipos de sofrimento são vários, como por exemplo, o perigo da morte (Is 38,1-3); a morte dos filhos (1Sm 19,1); a falta de descendência (Gn 15,2; 30,1, 1Sm 1,6-10); a perseguição (Jr 18,18)... Até hoje esses sofrimentos ainda são uma incógnita, ainda há uma dificuldade em compreendê-los. Porque o justo sofre e os maus prosperam? (Ecl 4,1-3).

Ainda hoje, quando alguém está sofrendo, qual a primeira pergunta que passa em sua mente? "Por que estou sofrendo?" Ou "por que sofro?" Na verdade, o que se está perguntando é sobre a causa do sofrimento. Mas a pergunta não deveria ser essa. O correto seria o “para que estou sofrendo?” Qual o sentido do sofrendo em minha vida? Só assim, a dor e o sofrimento tomam outra dimensão. O “para que” ajuda a encontrar um propósito do sofrimento e, portanto, o sofredor será capaz de sair dessa situação mais humano e mais amadurecido.

Desde o segundo milênio a.C. a temática da dor já estava presente na obra dos antigos sábios de remotas civilizações, como babilônicas e egípcias. Isso significa que o ser humano desde sempre se preocupou em encontrar uma resposta para o sofrimento e ainda hoje procura saber o porquê da dor, do sofrimento, mas não encontrou uma resposta satisfatória para essa questão.

Na Bíblia, de modo particular, há um livro que faz referência ao sofrimento de uma pessoa. Esse personagem representa o sofrimento do seu tempo, e a dor de todos nós. Esse personagem bíblico fez uma experiência profunda da dor em sua vida. Essa pessoa é Jó. Para compreendermos um pouco a dor de Jó, que pode ser também a minha, a nossa dor, precisamos ter uma conversa na tenda com Jó para ouvir suas palavras, suas dores e seus gritos. Talvez, por suas chagas, sejamos curados de toda vã sabedoria e de nossas certezas inquestionáveis.

Jó é o representante da dor do gênero humano. Seu sofrimento é uma realidade concreta que desafia até mesmo a sua experiência religiosa. Jó é um homem que renuncia pôr sua confiança nos bens terrenos. Confessa sua própria miséria. Sofre inocentemente a incompreensão e o abandono de seus amigos. Mas continua unido a Deus, apesar do sofrimento. Continua esperando sempre no Senhor!

Jó é um dos livros do Antigo Testamento que se dedica à temática do sofrimento humano. Afinal, quem é Jó? É um homem justo, que sofre sem culpa e é provado por diversos sofrimentos: perde seus bens, os filhos morrem (1–2), a esposa não o compreende, os amigos o acusa. ]

No decorrer da obra, menciona-se que Jó tinha três amigos, e esses três amigos não falam corretamente sobre Deus, não o apoiam, nem o animam, simplesmente o criticam e o acusam por estar sofrendo (3–24), querem convencer Jó de que se ele está sofrendo deve ter feito algo grave e está sendo castigado por Deus. Sabemos que, por trás dessa afirmação está a concepção do sofrimento como castigo (pena) pela culpa. Por trás dessa expressão há uma visão tradicional da justiça de Deus, representada pelos três amigos, que é a Teologia da Retribuição. Esse tipo de teologia compreendia Iahweh como um Deus justiceiro que retribui a cada pessoa segundo o cumprimento da Lei divina. Para essa teologia, se a pessoa cumpria a Lei de Deus, recebia a Bênção, isto é, riquezas, vida longa, saúde, descendência e honra. Para quem descumprisse a Lei havia o castigo, isto é, pobreza, morte prematura, doenças, esterilidade e desonra etc. Portanto, se alguém estava sofrendo era porque estava pagando por alguma infração da Lei. Por trás de tudo isso estava presente a Teologia da Retribuição.

Até o Exílio da Babilônia, a Teologia da Retribuição entendia o castigo ou a recompensa como algo coletivo, direcionado a toda comunidade ou à família. Dizia-se que as consequências dos atos das pessoas eram hereditárias. Temos vários exemplos disso: (Ex 20,5; 34,7; Jr 32, 18; Lm 5,7; Ez 18,2). “Nossos pais pecaram: já não existem; quanto a nós, carregamos as suas faltas” (Lm 5,7). O profeta Ezequiel, percebendo que o povo não considerava justo pagar pelos pecados de seus antepassados, reelaborou a ideia da responsabilidade coletiva e defendeu a responsabilidade pessoal. Cada pessoa é responsável pelos seus atos (Ez 18).

No livro de Jó, esse modo de pensar está bem presente. Jó era rico e passou a ser pobre (1,14-17.20-21). Jó tinha saúde e passou a sofrer em meio a terríveis doenças (2,5-8). Mas Jó não concorda com a suposição que esteja sendo castigado como descumpridor da Lei. Por isso, por mais que seja reconhecido como paciente e resignado, Jó fica indignado e até se revolta contra essa manipulação, segundo a qual Deus não passava de um carrasco, justiceiro, vingador e castigador. Existe ainda hoje essa concepção? Convido-te a refletir sobre essa realidade.

Eis uma questão: se Deus é todo amor, é puro amor, como a dor e o sofrimento podem ser castigos de Deus? No livro do profeta Ezequiel se afirma: “Não quero a morte do pecador, e sim, que ele se converta e viva”(Ez 18,23). Então, se crermos que a religião e a fé se baseiam nisso, no “toma lá dá cá”, deixa de ser uma religião gratuita, deixa de ser uma fé baseada na graça de Deus, baseada na compaixão, na misericórdia e no amor gratuito de Deus.

Quem de fato, faz a experiência do Deus vivo é Jó, o pobre, o doente, tomado pelos sofrimentos e dores, aquele que é desmoralizado e acusado como pecador. Não os amigos de Jó, que o acusam, estes não fizeram experiência com Deus, estes conhecem Deus só de ouvir falar.

Portanto, esse Jó pode ser eu, pode ser tu, ou até mesmo tua família, que diante de uma pandemia tão desastrosa, como a que estamos enfrentando. Neste contexto somos convidados pela Palavra de Deus a fazer uma experiência com esse Deus, cheio de compaixão, que está ao nosso lado porque nos ama muito. O sofrimento nos faz mais vulneráveis, mais flexíveis, mais humildes, e mais humanos, e ainda nos ajuda a nos encontrarmos com o Deus da vida

Essa realidade apresentada pelo autor do livro de Jó tem a pretensão de nos levar a refletir sobre o sofrimento, como uma experiência humana universal. O sofrimento, seja ele consequência da pobreza, da falta de emprego, da falta de perspectiva de futuro, da morte prematura de entes queridos ou de uma doença, é uma experiência comum a todos os povos em todas as épocas. Faz parte do cotidiano de inúmeras pessoas em todo mundo.

O livro de Jó termina humildemente com uma experiência profunda! No encontro de Jó com Deus e na retratação dos amigos, Jó afirma: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem” (42,5).

A dor e o sofrimento fazem sua obra e deixam uma quantidade imensa de recados dependurados nas paredes da nossa memória. Restará a cada um(a) fazer desses recados um trauma ou uma experiência de Deus. Deus está ao teu lado, mas tu quem decides.

Jesus Cristo fez essa experiência em favor dos sofredores (as) deste mundo, dos marginalizados, dos excluídos, de te, e abdicou de todos os privilégios divinos e humanos (como vemos em Fl 2,5-11) e assumiu a condição de crucificado, e, ao final, saiu vitorioso! O sofrimento, a dor e a morte foram vencidas com sua Ressurreição. Em Jesus, somos vencedores.

Todo cristão precisa sair de si, abrir mão de ideias preconcebidas e solidarizar-se com o que sofre e, imerso nessa situação, fazer a experiência de Deus e levar quem sofre a fazê-la também.

Confesso, é difícil ter uma palavra conclusiva sobre o tema da dor e do sofrimento. No final dessa conversa, na tenda com Jó, em vez de uma resposta fechada de uma conclusão, é melhor então fazer uma profissão de fé naquele que “armou sua tenda entre nós”, Jesus Cristo (Jo 1,1ss).

“Vivemos um tempo novo, um tempo de graça, um tempo propício e oportuno para criar, um tempo para experimentar a compaixão e a solidariedade. Vivemos um grande momento para descobrir o amor de Deus e nos amarmos”. (Dom José Tolentino Mendonça). Precisamos pôr em prática o nosso escutar a Deus, a nós mesmos, o irmão (ã), e a natureza, para, assim, sermos sinais do novo do qual todos possam se beneficiar.



Bibliografia

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985
TILESSE, Caetano Minette de. O Sofrimento na Bíblia. Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, v. 23, n. 1-3, 2006.
MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Bíblia: história, curiosidades e contradições. Petrópolis: Vozes, 2015.
Mendonça, José Tolentino. Espiritualidade cristã em tempo de isolamento social, In: https://youtu.be/8oQYr43YNlg. Acesso em 04.08.2020



Ir. Rita Paixão Albuquerque é membro do Instituto Nova Jerusalém. Graduada em Teologia e Pós-graduada em Psicologia da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza.