sexta-feira, 30 de setembro de 2011

TRABALHAR NA VINHA DO SENHOR

Roteiro Homilético para o XXVII Domingo Comum - A (02 de outubro)

 Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

O tema da vinha é predominante na liturgia de hoje. Trata-se de parábola comum ao Antigo e ao Novo Testamentos da qual primeiro os profetas e, depois, Jesus se serviram para falar do amor de Deus e da ingratidão do ser humano. Na primeira leitura, Isaías descreve a história de Israel como a história da vinha que o Senhor plantou e à qual deu condições para que produzisse bons frutos. O evangelho resume a metáfora de Isaías e a desenvolve, falando de outros imensos benefícios feitos por Deus, primeiramente o envio dos profetas e, enfim, o envio do Filho como prova suprema de amor. A segunda leitura pode ser tomada como um convite à gratidão para com Deus e como compromisso de nossa parte para darmos abundantes frutos de boas obras.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 21,33-43): Entregarão os frutos no tempo certo

Numa releitura do texto de Isaías, o evangelho de hoje vem acentuar a importância dos líderes religiosos no exercício de sua missão na comunidade: cuidar da vinha.

O cultivo da vinha exige muita dedicação, porque ela representa frequentemente os escolhidos de Deus, que são muito valiosos para ele. O dono da vinha esteve distante até o tempo em que ela deveria dar frutos e a confiou a “empregados”. Jesus está dizendo a seus interlocutores que eles são apenas servos de Deus, que a função deles é entregar os frutos para o verdadeiro dono, mas eles quiseram fazer as coisas do jeito deles.

Os servos quiseram a parte que pertencia a Deus. Mas somente o Senhor tem a última palavra na condução do povo. E somente a Deus pertence o louvor, não aos líderes religiosos. Então a liderança religiosa já não estará com aquele grupo; caberá a quem fizer a vinha produzir frutos para Deus.

Essa realidade criticada pelo evangelho está presente na Igreja em todos os tempos, porque o ser humano é sempre tentado a usurpar o lugar de Deus. Para aprendermos a assumir nosso papel na liderança da comunidade, basta olhar para Jesus, que não se apegou a seu ser igual a Deus, mas assumiu a condição de servo (cf. Fl 2,6-7). E ele é o herdeiro da vinha. Por isso, Jesus é o caminho a ser seguido não somente pelos líderes religiosos, mas por todos os cristãos que queiram realizar na sua vida a vocação humana e cristã: ser para Deus. Se realizarmos essa vocação, certamente a vinha do Senhor dará muitos frutos no seu tempo.

2. I leitura (Is 5,1-7): Esperava que produzisse uvas boas

O poeta canta em versos a história de amor entre seu Amigo e a vinha. Primeiramente destaca o cuidado que seu Amigo teve para com ela: preparou a terra, plantou mudas selecionadas; deu-lhe proteção permanente com vigias, construindo uma torre; evitou que as uvas se estragassem, fazendo um tanque de amassar uvas. Esses cuidados fizeram dela uma “vinha preciosa” (Jr 2,21). Contudo a vinha não correspondeu às expectativas de seu proprietário. Para Isaías, a vinha é Israel e Judá, a totalidade do povo de Deus. Que expectativas não foram correspondidas? O exercício da justiça e do direito.

O poeta afirma que seu Amigo, o proprietário da vinha, identificado com o Senhor dos exércitos, convoca os moradores de Jerusalém para julgar a vinha. O proprietário faz duas perguntas: a primeira sobre as próprias atividades, e a segunda sobre a produção da vinha. No final, o proprietário dá uma sentença, anunciando o que fará. E suas atividades para com a vinha serão o oposto dos cuidados iniciais. O ápice é o v. 7, no qual estão em contraste as expectativas de Deus e a resposta negativa do povo.

A vinha não produz os frutos esperados, o povo não realiza obras que agradam a Deus, especificamente a justiça e o direito. Essas palavras da primeira leitura são bem atuais; hoje elas se dirigem a nós que somos povo de Deus em Jesus Cristo.

3. II leitura (Fl 4,6-9): Ocupai-vos com tudo o que é bom

O texto da segunda leitura traça um itinerário para que o cristão possa ter uma práxis que seja fruto de seu relacionamento com Deus.

Primeiramente diz: “Não vos preocupeis com coisa alguma”. Isso não significa ser irresponsáveis nas tarefas, nas atribuições, nas profissões, nos relacionamentos familiares etc., e sim que as preocupações com o cotidiano não devem tomar demasiado espaço em nossa vida. Quanto mais se confia em Deus, tanto mais os pensamentos ficam livres de aflições e ansiedades (cf. Mt 6,25 e 1Tm 5,8).

Se alguma situação se torna muito difícil para nós, então devemos nos reportar a Deus com orações e súplicas. A palavra “súplica”, no idioma em que o texto foi escrito, denota o sentido de algo do qual necessitamos muito, de alguma coisa vital para nós. Mas as orações e súplicas devem estar unidas à ação de graças, porque devemos agradecer a Deus antes mesmo de receber a resposta dos nossos pedidos. Talvez Deus não realize exatamente o que esperamos, mas sabemos que ele sempre responde às nossas orações e por isso devemos agradecer imediatamente.

Em seguida, após depositarmos nossas dificuldades nas mãos de Deus, então já não estaremos tão estressados como antes e poderemos saborear “a paz que supera todo entendimento” (v. 7). Sentimos paz não porque a situação foi resolvida, mas porque ela já não nos sufoca – afinal, somos a vinha bem cuidada de Deus. E como nossa mente já não está sobrecarregada com preocupações e ansiedades, então podemos nos ocupar com o que é essencial (v. 8): levar uma vida exemplar no mundo (dar testemunho), sendo verdadeiros, sabendo respeitar a dignidade do outro, sendo amáveis, sendo puros, enfim, praticando as virtudes.

Paulo termina dizendo que esse comportamento os filipenses aprenderam observando o modo como ele, Paulo, se comportava. Quem dera as pessoas pudessem também aprender essas coisas pelo testemunho dos cristãos. Então o mundo inteiro seria uma vinha que produz frutos agradáveis para Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Também para os membros da Igreja valem as palavras de Isaías e de Jesus; por isso a homilia deve evitar estabelecer contraposição entre Israel e Igreja, para não deixar os cristãos numa posição muito confortável. Se a vinha, que é a vida de cada fiel na Igreja, não der frutos, Jesus dirá hoje as mesmas palavras que dirigiu aos líderes religiosos da sua época.

Estamos iniciando o mês missionário, e todo batizado deve ser “vinha do Senhor”, dar frutos e evitar o comodismo que freia a missão. Esta não deve ser entendida como atividade individual e fruto de recursos e capacidades humanas, mas sempre como colaboração com a obra missionária de Cristo, pois ele é a origem e fonte de toda atividade missionária na Igreja.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

 * Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

ENSINA-ME, SENHOR, OS TEUS CAMINHOS (Sl 25,4)

Roteiro Homilético para o XXVI Domingo Comum - A (25 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

Os textos de hoje nos mostram que o reino de Deus entra em diálogo com o ser humano para que este possa distinguir entre o modo como se dá a ação divina e a maneira humana de proceder. O ser humano é uma tarefa, ele nunca vai estar terminado; sua existência no mundo é um constante fazer-se e refazer-se baseado nas decisões tomadas com livre arbítrio.

Quem é bom pode deixar o caminho do bem, e quem é perverso pode abandonar a vereda do mal. Por isso, Deus está constantemente chamando o ser humano para que deixe os caminhos tortuosos e diga um “sim” consciente e maduro que seja realmente “sim”. Para isso, Deus envia mediadores, na tentativa de chegar ao coração humano.

Contudo, as pessoas podem recusar o chamado de Deus, fazer pouco caso de sua proposta ou até mesmo ser hostis com os mediadores que ele envia. É sobretudo por orgulho que opõem obstáculos à própria salvação. Por isso, exorta-nos o apóstolo: “Tende em vós os mesmos sentimentos de Cristo”.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 21,28-32): João ensinou o caminho da justiça e não acreditaram nele

Jesus, para nos instruir sobre nossas próprias escolhas, conta-nos a parábola dos dois filhos que mudaram de atitude. Deus nos fez livres. A salvação que ele nos oferece é puro dom. Cabe a nós responder “sim” ou “não” a esse convite. O livre-arbítrio possibilita ao ser humano acolher em sua vida o bom ou o mau caminho. Há sempre a possibilidade de mudar de rumo. É isso o que nos mostra o texto. Ambos os irmãos mudaram de rumo. Um fez a vontade do pai e o outro não.

Estar no rumo certo não é sinônimo de segurança, pois podemos ser facilmente levados para outro caminho se não nos mantivermos atentos ao chamado constante de Deus. Por isso a necessidade constante de conversão, porque não estamos prontos. E os que se acham “santos” são muito facilmente propensos ao erro, mais do que os que têm firme consciência das próprias limitações. Os “santos” acabam afogando-se na sua soberba e se fecham à graça divina. Ao contrário, os pecadores são mais abertos para acolher a graça, pois confiam apenas na misericórdia de Deus.

Fazer a vontade de Deus é muito mais acolhê-lo na vida diária do que proclamar discursos vazios, destituídos de testemunho de vida. Deus nos chama constantemente a viver seu amor na doação total de nossa vida ao irmão. Deve-se viver esse chamado nos atos cotidianos, nas relações interpessoais, nas próprias escolhas. Fazendo assim, caminha-se na justiça e no testemunho fidedigno do reino de Deus.

2. I leitura (Ez 18,25-28): Deus ensina o caminho aos pecadores

O texto começa com uma estranheza: “o caminho do Senhor não é direito” (v. 25). Pensava-se dessa forma porque Deus não fazia o que se esperava, a saber: recompensar o “justo” e castigar os “injustos”. Esse modo diferente de Deus proceder irritava as pessoas tidas como santas naquela época.

Por meio do profeta, Deus toma a palavra e põe as intenções humanas às claras: os caminhos humanos é que são tortuosos, mas, apesar disso, Deus continua chamando, respeitando o livre-arbítrio e perdoando a cada um de seus filhos.

Em primeiro lugar, Deus se dirige aos tidos por justos. O que se pode dizer de uma pessoa realmente justa? Como pode ser qualificada uma pessoa convertida? Aquele que aparentemente é santo e irrepreensível e comete atos que fazem transparecer grande maldade no coração pode ser considerado justo ou convertido? Segundo o texto que foi proclamado, a pessoa que se qualifica assim não é verdadeiramente justa, e Deus, que tudo vê, considera os atos de iniquidade dela, e não sua suposta justiça externa.

Outros são tidos por pecadores, hereges, infiéis, gentinha de má conduta. A estes Deus convida à conversão e, caso tenham abertura para acolher o perdão divino, é-lhes assegurado que não serão considerados os atos praticados numa vida desregrada, muitas vezes afetada por condicionamentos sociais, religiosos e psicológicos.

Enfim, o texto bíblico exorta todos à conversão, e a todos está destinado o perdão de Deus.

3. II leitura (Fl 2,1-11): O esvaziamento de Cristo nos ensina o caminho para Deus

O apóstolo Paulo pede aos filipenses que tenham os mesmos sentimentos de Cristo (v. 5). Com isso, ele espera resolver o problema daquela comunidade: egoísmo e arrogância (v. 3) e dissensões internas que ameaçavam o amor, a unidade e o companheirismo. Mas quais seriam os sentimentos de Cristo que o apóstolo deseja inculcar nos filipenses?

Para definir bem de que se trata, Paulo usa o termo “esvaziamento” ou “abaixamento”, que significa privar-se de poder ou abdicar de um direito que se possui. Cristo não se apegou à sua condição divina nem usou dos privilégios dela em favor de si mesmo, mas assumiu a existência humana como servo.

O abaixamento de Cristo não é apenas tornar-se humano, mas, além disso, tornar-se servo.

Isso caracteriza a totalidade da vida de Jesus, que assumiu as limitações humanas e esteve à mercê de nosso egoísmo e violência, responsáveis pela sua morte terrível na cruz. Porque, acima de tudo, ele quis atender ao bem-estar e aos interesses dos outros em vez de ter interesses egocêntricos.

Esse modo de viver de Jesus nos ensina o caminho para Deus. É descendo a escada da humildade que ascendemos ao reino definitivo. Esses critérios são diferentes dos critérios humanos, mas são o único e legítimo caminho para a verdadeira humanização e para Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O momento atual é marcado por uma religiosidade intimista e subjetiva de relacionamento vertical: o indivíduo e Deus. Isso traz como consequência a ideologia da prosperidade: “Eu não cometo pecados escandalosos e, em troca, Deus me abençoa com o que quero”. Esse tipo de religiosidade suscita a ideia de um Deus castigador que está contra os “maus” e recompensa os “bons”. As leituras de hoje mostram que tal pensamento é tortuoso e não representa os critérios de Deus. Por isso é bom destacar na homilia a gratuidade, o cuidado com os mais fracos, a tolerância e o diálogo que constroem comunidade.

Hoje é o dia da Bíblia, palavra de Deus, “luz para os passos, lâmpada para o caminho” (Sl 119,105). Esta data não deve passar sem algum destaque na comunidade. Há um clamor uníssono para que a palavra de Deus seja o centro da vida e da missão da Igreja. Este dia é ótima oportunidade para que sejam iniciados (ou melhorados) eventos que destaquem a centralidade da palavra de Deus em toda a Igreja, começando pelas comunidades mais simples e pequenas até atingir o mundo inteiro.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

MEUS CAMINHOS NÃO SÃO OS VOSSOS (Is 55,8)

Roteiro Homilético para o XXV Domingo Comum - Ano A (18 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL
As leituras de hoje exortam-nos a tomar cuidado para não reduzir Deus aos critérios humanos, por melhor que eles sejam. Deus ultrapassa tudo o que se pode pensar ou dizer sobre ele. Muitas vezes seus planos se tornam incompreensíveis ao ser humano. Quando isso acontece, resta-nos perseverar na fidelidade sem mudar de caminho, a exemplo de Jesus, que disse: “Pai, afasta de mim este cálice, contudo não se faça a minha vontade, mas, sim, a tua” (cf. Mt 26,39).

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 20,1-16a): “Os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos”.

O texto situa-se no “sermão sobre a comunidade”. Jesus continua instruindo seus seguidores sobre como se comportar no mundo.

O reino dos céus é aqui comparado ao proprietário que contratou vários trabalhadores para sua vinha, em horários diferentes. No final, paga a todos igualmente, começando pelos últimos, contratados à tardinha, até os primeiros, contratados de manhã.

A maneira como o patrão trata seus operários nos chama a atenção para a gratuidade com que Deus nos acolhe em seu reino. Não é segundo os critérios humanos que Deus age em favor da humanidade. A estranheza das palavras de Jesus nessa parábola deve nos chamar a atenção para nossa maneira de julgar a Deus ou de atribuir-lhe atitudes especificamente humanas.

Geralmente o ser humano quer recompensa por suas boas ações. E, quando não se sente recompensado, acha que Deus é injusto, ou não o ama, ou esqueceu-se dele. Costuma-se até dizer: “Por que Deus não atende às minhas preces? Sou tão dedicado, tenho tanta fé!”.

Mas a maneira de Deus agir não se iguala à nossa. Ele é absolutamente livre para agir como quiser. E essa liberdade é pontuada por seu amor incondicional e sua generosidade inestimável. Deus nos ama e deu-nos mais do que ousamos pedir. Deu-nos a vida. Deu-nos a si mesmo no seu Filho. Deu-nos a eternidade ao seu lado.

Por isso, o reino dos céus não se apresenta como recompensa por nossos méritos pessoais. É puro dom de Deus, que nos chama gratuitamente a participar da vida plena. Cabe a nós acolhê-lo como dom ou ficar numa atitude mesquinha de sempre esperar recompensas por méritos prévios. Isso não é cristianismo, não é gratuidade. Isso não é resposta amorosa a Deus.

2. I leitura (Is 55,6-9): Que o perverso deixe o seu caminho

O texto da primeira leitura é uma oferta de perdão, de paz e de felicidade para os pecadores. Em primeiro lugar, assegura que as orações e o arrependimento serão acolhidos por Deus: “buscai o Senhor... invocai-o... deixe o mau caminho... converta-se... que o Senhor se compadecerá” (v. 6-7).

Deus não é como o ser humano, seus pensamentos são totalmente diferentes. Deus é infinitamente fiel: não desiste de seus filhos, não cessa de ofertar-lhes sua misericórdia sem limites. Ao contrário, o ser humano desiste de Deus, trilha outros caminhos bem diferentes daqueles que são propostos pelo Senhor.

“Deixe o perverso o seu caminho, o iníquo, os seus pensamentos; converta-se ao Senhor... volte-se para o nosso Deus” (v. 7).

Em primeiro lugar, arrepender-se é mudar de caminho, de atitudes, é tomar outros tipos de decisões, fazer outras escolhas. Mas não é só isso: há que mudar também os pensamentos, ou seja, transformar-se internamente, mudando de mentalidade em relação ao mundo, às pessoas e às situações; mudar de ideia a respeito de si mesmo, mudar até mesmo as concepções sobre Deus e sobre seus caminhos, porque o Senhor sempre estará muito além do que se pode dizer e pensar a respeito dele.

Converter-se é mudar de mente e voltar aos caminhos do Senhor. Mas voltar a ele não porque houve total compreensão do seu projeto, e sim porque ele é soberano e misericordioso. A vida humana só tem sentido no relacionamento com Deus, e, quando seus caminhos são difíceis de entender e de trilhar, resta, acima de tudo, perseverar na fidelidade.

3. II leitura (Fl 1,20c-24.27a): Meu viver é Cristo

Grande exemplo de perseverança, mesmo que os planos de Deus se tornem incompreensíveis, é-nos dado na leitura da epístola aos Filipenses.

O cristão vive unicamente para Deus, não em função de recompensas por méritos pessoais. Qualquer que seja a situação, boa ou ruim, deve perseverar no bem e na busca de agradar unicamente a Deus, seguindo em frente sem hesitar. O cristão não deve desanimar nunca, mesmo se, depois de repetidos esforços, sentir-se fracassado ou mesmo perseguido, como o apóstolo Paulo. É necessário confiar somente em Deus, pois só ele pode dar eficácia à atividade humana. Mesmo sem entender o que acontece consigo, o cristão deve viver de modo digno do evangelho (v. 27).

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Não considerar a parábola no plano da justiça social, mas respeitar a estranheza das palavras de Jesus, que tem por objetivo nos conscientizar de que o reino de Deus não se baseia em mérito-recompensa, mas é puro dom. O próximo domingo será o dia da Bíblia; é bom destacar a importância do itinerário do povo de Deus, comparando-o ao daqueles trabalhadores das primeiras horas. Os hebreus foram os primeiros a responder “sim” ao apelo do dono da vinha. As demais nações herdaram desse povo as alianças, as promessas, a história e principalmente o Messias. Sejamos gratos a Deus e a Israel, nosso irmão mais velho, fatigado pelo dia inteiro de trabalho.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

PERDOAI-NOS, SENHOR, COMO NÓS PERDOAMOS A QUEM NOS OFENDE


Roteiro Homilético para o XXIV Domingo Comum - Ano A (11 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL
O tema da liturgia de hoje é o perdão. A oração que Jesus ensinou a seus discípulos traz o imperativo do perdão mútuo ao mesmo tempo que nos assegura o perdão divino. O pedido “perdoai-nos como nós perdoamos” não limita a ação de Deus em relação às nossas faltas, mas nos introduz na dinâmica divina de perdoar sempre. É porque Deus tem misericórdia de nós que devemos ter misericórdia de nossos semelhantes. Deus nos perdoou primeiro, e nós correspondemos a tão grande dom perdoando nosso próximo da maneira que nosso Pai nos perdoa. O mal deve ser vencido com a bondade ilimitada, que se manifesta incansavelmente no perdão. As leituras de hoje mostram que, se o mal é intensamente prolífero, deve o bem ser muito mais.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 18,21-35): Perdoai sempre

Pedro estava convicto de que tinha feito boa proposta a Jesus sobre o exercício do perdão. No entanto, Jesus eleva esse valor ao máximo possível. Se observarmos o texto de Gn 4,24, veremos que estão em jogo também esses números, só que no contexto da vingança.

No Antigo Testamento, a atitude de um descendente de Caim, Lamec, que se propõe vingar até setenta vezes sete, dá margem a uma corrente sem freios de violência. A atitude de Lamec é tão contrária ao ensinamento de Jesus quanto a atitude do servo é contrária à do patrão. A parábola quer ensinar que a morte de Jesus, segundo os critérios de Lamec, careceria de vingança infinita por parte de Deus. No entanto, o Pai, representado pelo patrão, não vingou seu Filho, mas perdoou infinitamente (setenta vezes sete). E com isso pôs fim à corrente de violência por meio do perdão.

Com isso se quer ensinar que somente o perdão, ato divino que somos chamados a praticar, pode pôr fim à violência. Como membros do corpo de Cristo, nossa atitude diante das ofensas sofridas é perdoar sempre, pois não há ofensa maior do que aquela realizada por nós a Deus: a morte do Herdeiro amado. Mas o Pai transformou essa ofensa em perdão e salvação.

Perdoar sempre não quer dizer passividade ou omissão diante do erro e da injustiça, mas sim não guardar mágoa ou rancor, tampouco sentimentos de vingança. Somente pelo perdão, fruto do amor, podemos construir um mundo mais pacífico, fraterno e amoroso.

2. I leitura (Eclo 27,33–28,9): Perdoa a ofensa de teu próximo

Esse texto bíblico do Antigo Testamento (nas edições católicas, não consta da bíblia hebraica) representa um avanço na maneira pela qual as pessoas lidavam antigamente com as ofensas. O autor pede que se renuncie à vingança, afirmando que somente as pessoas afastadas de Deus é que nutrem a ira, o desejo de vingança no coração.

Quem tem um relacionamento mais íntimo com o Senhor deveria cultivar um espírito de misericórdia, já que a proximidade com Deus revela tanto as faltas do ser humano quanto o perdão divino.

A consciência de que todos têm necessidade da misericórdia de Deus deveria tornar as pessoas mais religiosas e mais dispostas a perdoar. Infelizmente nem sempre é isso que se vê.

O texto bíblico pede que a pessoa rancorosa pense na morte e perdoe as ofensas recebidas. “Pensar na morte” não significa “pensar num castigo eterno”, mas conscientizar-se de que a morte iguala a todos nós. Todos morremos, e isso significa que ninguém é melhor que o outro e todos nós somos muito mais devedores de Deus do que de uns para com os outros.

3. II leitura (Rm 14,7-9): Pertencemos ao Senhor

Frequentemente as mágoas e os rancores surgem da intolerância com o diferente. Algumas pessoas não suportam que outras pensem e vivam a religião, a missão, a profissão ou outras situações humanas de modo distinto. Há uma tentativa de uniformizar as opiniões. Geralmente se confunde unidade com uniformidade. Estar no mesmo grupo ou equipe e pensar ou agir de modo diferente é motivo para ser tachado de rebelde, de falta de espírito comunitário etc. Nessas situações é necessário discernimento, e o apóstolo Paulo nos dá uma pista para não criarmos ressentimentos por causa da pluralidade: “Ninguém vive para si mesmo... é para o Senhor que vivemos”. Aqueles que pensam e agem diferentemente de mim fazem-no por causa do Senhor ou para exaltar a si mesmos? E eu, quando penso que determinados pensamentos e atitudes das outras pessoas estão errados, é por causa do Senhor que penso assim ou é para exaltar a mim mesmo?

Cristo é o Senhor, nós pertencemos a ele; portanto, não devemos criar guerra em vez de bons relacionamentos somente porque alguém que caminha conosco dá passos diferentes e observa outras coisas no caminho.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Levar a comunidade a uma reflexão sobre o perdão e a tolerância. Estamos seguindo Lamec ou Jesus? Estamos empenhados em construir pontes ou em edificar muros entre as pessoas? É necessário sondar o próprio coração, perceber se ali estão aninhadas intolerâncias, ressentimentos, aversão ao “diferente”. Maturidade afetiva exige autoconhecimento bem como um coração livre daquela mesquinha estreiteza do ser humano, o qual, embora constantemente necessitado de misericórdia, por vezes se mostra incapaz de perdoar ofensas insignificantes.

Neste mês dedicado à Bíblia, deixemos que a palavra de Deus penetre até nos recônditos mais profundos de nosso ser e nos transforme em verdadeiros irmãos de Jesus e filhos de Deus.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

NÃO FECHEIS OS CORAÇÕES

Roteiro Homilético para o XXIII Domingo Comum - Ano A (4 de setembro)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

I. INTRODUÇÃO GERAL

Iniciamos o mês da Bíblia com o tema da correção fraterna. Em todas as leituras de hoje, a palavra de Deus vem insistir que somos responsáveis uns pelos outros e devemos ser um suporte para os fracos, indecisos, tíbios, apáticos na fé e no seguimento de Jesus.

Pouquíssimas pessoas têm coragem de advertir alguém que está errado. É mais fácil condenar, humilhar, fofocar ou ser indiferente. Mas a Bíblia afirma e reafirma a responsabilidade de uns para com os outros. Deus nos pedirá contas da vida de nossos irmãos e irmãs. Por isso, hoje, quando ouvirmos a sua voz, não endureçamos nosso coração.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 18,15-20): Se ele te ouvir, terás ganho teu irmão

O texto do evangelho de hoje situa-se no contexto do “sermão sobre a comunidade”, cujos textos são direcionados especificamente para orientar a vida na Igreja. E um tema muito precioso para o Evangelho de Mateus é a correção fraterna, essencial para o crescimento pessoal do cristão na comunidade.

O evangelho nos orienta no delicado passo da correção fraterna. Primeiramente devemos tomar consciência de que o ato de corrigir o irmão é nossa responsabilidade. O texto é claro: “Vai!” É um imperativo que nos interpela. A não realização desse mandato significa erro grave, pois nos omitimos diante do erro do outro, deixando que um membro do corpo de Cristo permaneça no engano.

O texto nos apresenta a preocupação com o retorno à comunidade de quem se desligou pelo pecado. Por isso são empregados todos os recursos para a volta do irmão. É uma correção feita com respeito e amor. São oferecidas várias oportunidades para a conscientização sobre o erro. Primeiramente a exortação pessoal, para preservá-lo de constrangimento diante da comunidade. Depois, a exortação diante de algumas testemunhas; por fim, diante da comunidade, para que o irmão obstinado em sua má conduta reconheça, perante a autoridade da Igreja, a situação em que ele mesmo se colocou.

Todo esse procedimento nos ajuda a perceber o papel mediador da Igreja para ajudar um membro a sair do erro. Isso porque não caminhamos sozinhos, mas fazemos parte de um corpo, necessitamos uns dos outros para viver nossa fé.

Se levarmos a sério nossa responsabilidade para com nosso irmão, nossa ação de exortá-lo, de encaminhá-lo para o rumo certo, proporcionar-nos-á ganhar um irmão na caminhada de fé. Nossa maior preocupação deverá ser não apontar os erros dos nossos irmãos na comunidade, mas reconduzi-los de volta à comunhão com Deus expressa na comunidade crente. Se fizermos isso, certamente a Igreja desempenhará bem seu papel de mediação da boa-nova de Jesus Cristo.

2. I leitura (Ez 33,7-9): Perdoa ao teu irmão

O profeta é não apenas o porta-voz de Deus, mas também uma sentinela para o povo. A sentinela era alguém que estava de prontidão, que permanecia acordado enquanto todos dormiam. Era alguém que percebia a aproximação de um inimigo ou de um viajante noturno aos portões da aldeia. Esse simbolismo nos ajuda a ver nossa responsabilidade perante as pessoas com as quais convivemos em casa, no trabalho, na vizinhança, nos círculos de amizade, na Igreja. Devemos estar atentos aos outros: perceber se estão em perigo, se correm algum risco de pôr a si mesmo ou outras pessoas em perigo.

A expressão bíblica “exigir o preço do sangue” significa ser responsável pelo outro. Deus exige que não sejamos omissos, que não deixemos as pessoas seguir para um precipício sem alertá-las – com bondade e compaixão, sem condenar nem humilhar – sobre a necessidade de mudança de atitude.

Em todo caso, deve-se respeitar o livre-arbítrio de quem é adulto e responsável pelos próprios atos, mas somente depois de ter sido tentado tudo o que é humanamente possível para o bem do próximo.

3. II leitura (Rm 13,8-10): Quem ama o próximo cumpriu toda a Lei

Os preceitos da Lei de Deus sobre as relações humanas culminam no amor mútuo. O “amor não pratica o mal contra o próximo” e também não quer o mal para os outros. O fato de alguém não fazer nenhum ato de maldade não significa que possa ficar confortável, dizendo a si mesmo: “Não roubei, não matei, logo sou bom para meu próximo”. Quem não pratica o mal, mas se omite ou negligencia a responsabilidade pelo outro, não ama verdadeiramente o seu próximo. Responsáveis que somos por nossos semelhantes, não devemos ficar no comodismo, mas ajudá-los a ser alguém melhor.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

É oportuno lembrar serem vários os motivos da omissão, os quais geralmente envolvem medo ou frieza de coração. Temos receio de advertir alguém e ser repelidos, perder a popularidade ou ser tachados de intransigentes. Por isso é mais fácil “lavar as mãos”, como fez Pilatos, e dizer: “Eu não tenho nada a ver com isso”. Não deixemos que nosso coração fique endurecido diante do clamor silencioso de quem está envolvido numa teia de erros e não consegue sair sozinho dessa armadilha. É mais fácil julgar-se superior, murmurar, fofocar, condenar quem caiu ou está em perigo de queda.

Comecemos este mês da Bíblia formando uma consciência de “povo de Deus”, todos unidos como irmãos e irmãs da mesma família, responsáveis uns pelos outros. Se alguém se desviou do caminho, vamos ao seu encontro e insistamos para que retorne. E, caso não queira nos ouvir, não desistamos: oremos para que Deus mesmo o reconduza. Somente não endureçamos nosso coração.

(Texto publicado originalmente em Revista Vida Pastoral n. 280 de setembro-outubro de 2011).

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.