segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Bíblia e Contemplação

O sentido etimológico da palavra contemplação é o ato de fixar o olhar em algo, em alguém, ou em si mesmo, com encantamento. Também pode ser o olhar atento ou embevecido. O ato de contemplar faz parte da cultura humana desde a antiguidade. Na Grécia, os grandes filósofos buscavam na contemplação da natureza a razão ou compreensão a respeito de tudo. Dessa atitude surgiram os grandes questionamentos sobre a existência dos seres e o sentido da vida. E as três perguntas essenciais ao ser humano: de onde viemos, quem somos e para onde iremos? Essas questões são, ainda hoje, pertinentes. As ciências humanas especificamente a filosofia, buscam encontrar respostas para essas questões. Contudo, para o cristão, por mais que a filosofia encontre respostas, ela não oferece sentido primeiro para a vida, porque este somente é possível dentro de um relacionamento amoroso com Deus. O cristão procura na sua fé o sentido de sua existência. Portanto, é precisamente na Sagrada Escritura que ele irá encontrar as respostas para guiar sua caminhada existencial.

É, pois, numa atitude de contemplação, não no sentido apenas de “olhar mais atentamente”, mas, no “mergulhar” nessa Palavra, que é Reveladora de Deus. (Sl 119,16), que o cristão, diferente do filósofo, vai olhar mais atentamente para a Escritura buscando perceber nela a Voz de Deus que lhe interpela. Contemplar segundo a experiência cristã significa saborear as coisas divinas, deixar-se conduzir por Deus (Sl 119,16; Sl 27,4;Sl 62,3; Sl 63,2).

As origens da contemplação na Igreja
A espiritualidade cristã encontra na contemplação uma forma de intimidade profunda e amorosa com o Deus vivo, mediante a fé. Essa experiência de Deus está presente na Igreja desde os seus primórdios. Os primeiros cristãos buscaram encontrar na Sagrada Escritura, através de uma leitura orante da Palavra, o alimento de sua fé, esperança e caridade. Essa forma de oração tornou-se conhecida como Lectio Divina. Essa expressão vem de Orígenes, o qual dizia que devemos ser como Rebeca: todos os dias voltar à fonte, que é a Escritura. E o que não conseguirmos por esforço próprio, devemos pedir em oração 
pois é absolutamente necessário rezar para poder compreender as coisas divinas
A Lectio divina é uma forma de oração que nos dispõe para o dom da contemplação. Não é o único modo de oração, mas, uma forma bastante eficaz e muito difundida na Igreja. A Lectio divina se tornou a espinha dorsal da vida religiosa. Desde o monaquismo do deserto a Palavra de Deus que era ouvida, lida, meditada e rezada, inspirou o surgimento e a organização das regras de Pacômio, Agostinho, Basílio e Bento. A sistematização da Lectio Divina em quatro degraus aconteceu no séc. XII. É atribuída a Guigo, um monge cartuxo, que escreveu a obra A escada dos monges, livro que apresenta quatro degraus espirituais: a leitura, meditação, a oração e a contemplação. São poucos os degraus, mas para o monge, atinge uma altura imensa, inacreditável, uma vez que liga céu e terra. A contemplação é, pois, a elevação da mente sobre si mesma que, suspensa em Deus, saboreia as alegrias da doçura eterna. Os mosteiros, naquela época, eram considerados centros de aprendizado e de espiritualidade para leigos e religiosos. Por meio deles, a comunidade mantinha contato com esse modo de oração que alimentava e fortalecia sua fé.

Os quatro passos da leitura orante
Lectio (leitura) – é a leitura feita com a disposição de escutar com fé a Palavra de Deus, é a leitura espiritual, é deixar-se conduzir pelo Espírito Santo. É predominante uma atitude de escuta.
Meditatio (meditação) - Após ouvir a palavra divina, temos o desejo intenso de uma maior aproximação, desejo de acolher essa palavra de amor em nossa vida, refletindo como melhor respondê-la.
Oratio (oração) – é o colóquio de amor entre Deus e o orante, é o falar com Deus. A palavra tendo penetrado no coração, dilata-o, toca-o de tal forma que o atrai para o Amor ardente de Deus.
Contemplatio (contemplação) - esse é o momento em que o orante sente-se inteiramente de Deus. Como o apóstolo Paulo disse já não sou eu quem vivo mais "é Cristo que vive em mim". Deixar Deus ser Deus em nós, agir em nós, porque por Ele "nos movermos e existirmos".
 
Através da leitura orante buscamos experimentar o que a própria Escritura nos diz
a Palavra está muito perto de ti na tua boca e no teu coração, para que a ponha em prática (Dt 30,4).
Ela está na boca pela leitura; no coração pela meditação e pela oração; na prática pela contemplação.
O objetivo da Lectio divina é o mesmo contido na Escritura
comunicar a sabedoria que leva à salvação pela fé em Jesus Cristo (2Tm 3,5).
A leitura orante é um modo de orar com a Bíblia de forma tão simples e fácil que nos conduz à contemplação, não se entende como foi esquecida por tanto tempo na Igreja. Como tinha sido praticada pelas ordens monásticas, os cristãos em geral não têm conhecimento dela. Esse esquecimento se deve ao fato de que houve um período da história da Igreja em que a leitura da Bíblia não era estimulada. Foi o período da história chamado pela Igreja de Contrarreforma ou Reforma Católica. A Lectio divina veio a ser estimulada a partir do Concílio Vaticano II, o qual trouxe ares de renovação a todos os setores da Igreja. Na oração de abertura do Concílio percebemos o desejo de reacender o fogo do amor divino em todos os fieis. A recomendação da Dei Verbum de que a Escritura deveria ser lida com espírito orante nos mostra seu retorno às fontes da oração cristã, a Lectio divina (DV.25): 
Lembrem-se, porém, que a leitura da Sagrada Escritura deve ser acompanhada pela oração a fim de que se estabeleça o colóquio entre Deus e o homem, pois ‘a Ele falamos quando rezamos; a Ele ouvimos quando lemos os divinos oráculos.
Com a redescoberta ou retorno à leitura orante da Bíblia temos também a volta da prática da contemplação. A experiência contemplativa parece ser um privilégio reservado apenas a uma elite cristã, os monges. No entanto, há muitos leigos que praticam esse modo de orar com a Palavra,  inclusive, há grupos em várias igrejas que promovem a Lectio divina. A contemplação é a meta final da Lectio divina, é um descanso em Deus, um olhar amoroso é cume ou síntese da oração. Para Santo Agostinho, através da leitura da Bíblia, Deus nos devolve o olhar da contemplação e nos ajuda a decifrar o mundo e a transformá-lo para que seja novamente Revelação de Deus, teofania. O cristão contemplativo não só medita a palavra, mas a realiza, não só a ouve, mas a coloca em prática. Não separa o dizer e o fazer. Como primeiro degrau é a leitura com a disposição de escutar, o silêncio torna-se indispensável para se conseguir progredir nos degraus da contemplação.

O silêncio como atitude fundamental da vida contemplativa
 Ouve, ó Israel: Iahweh nosso Deus é o Único Iahweh! Portanto amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força. Que estas palavras que hoje te ordeno estejam em teu coração! (Dt.6,4ss).
O texto acima é conhecido como credo de Israel, ou Shemá, aquilo que resume a fé e a atitude do fiel diante de Deus: a escuta da Palavra do Deus Único de Israel. O verbo Shemá em hebraico significa: ouvir, prestar atenção, dar ouvidos, entender, examinar, discernir. O Deus de Israel convida o seu povo e cada um de nós hoje a ter uma atitude silenciosa diante de sua presença santa. Estar em silêncio significa fazer calar em nós todas as vozes e ruídos interiores que podem nos impedir de ouvir a voz do Senhor e de conhecer sua vontade, atrapalhando nossa relação com Ele. A atitude de silêncio é entrega total de si mesmo, renúncia, abandono nas mãos do Pai, confiança plena em um Deus que nos acolhe em seus braços, como uma mãe que acalenta o filho e o ama. Silenciar diante de Deus significa deixar-se conduzir por seu amor inefável sabendo que, na sua presença, só resta ao ser humano calar-se diante do Mistério Divino, como fez Jó (42,5s).

A contemplação cristã
Contemplar a Deus é experimentá-lo na realidade de nossa vida. É experimentar a presença do Deus de Jesus, Misericordioso e Libertador, sabendo que estamos em suas mãos. Essa experiência nos é apresentada por Jesus nos Evangelhos. É pela leitura, meditação, oração que nos aproximamos e nos tornamos íntimos da Palavra de Deus, do Pai de Jesus e nos tornamos filhos no Filho. A contemplação cristã tem sua singularidade, ela é diferente da forma de contemplação humana ou religiosa, pois se refere a Cristo e a seu seguimento. Ser um cristão contemplativo significa seguir a Cristo e participar de sua contemplação ao Pai. Outro fator característico da contemplação cristã é que ela não é fruto do esforço humano através de exercícios de concentração como nas religiões orientais, mas, da ação do Espírito Santo orando em nós (Rm 8,26s).

A contemplação cristã não é etérea, incorpórea, ela é encarnada e comprometida, alimenta-se da vida, da ação e da fraternidade vivida em comunidade. A experiência do Deus de Jesus nos leva a destruir os falsos deuses, os ídolos que habitam em nós, é uma experiência purificadora, como foi para o povo de Israel em sua caminhada com Deus. Significa um caminho irreversível de morte do homem velho, egoísta, idólatra, para um renascer do homem novo que vive pelo Espírito. Quando a Palavra divina se encarna em nós, de tal forma que nos identificamos com ela pela contemplação, quando nos alimentamos com o livro que é doce na boca (Ez 3,3), ela chega até as entranhas. Tendo como Maria a palavra nas entranhas, escutando com os ouvidos e recebendo com o coração (Ez 3,10).

Contemplação e engajamento
O cristão mesmo quando reza sozinho, no lugar mais isolado, ele nunca está só. Quando ele ora, ora como Igreja, faz parte de um todo. Quanto mais cristão, mais contemplativo e quanto mais contemplativo mais comprometido e solidário com seus irmãos. Thomas Merton afirma:
A contemplação está fora de questão para os que não tentam cultivar a compaixão pelos outros
O evangelista João também nos fala das consequências da união com Deus: 
Nisto conhecemos o Amor: ele deu sua vida por nós. E nos também devemos dar a nossa vida pelos irmãos.(IJo 3,16)
Não pode haver diferença entre o Deus experimentado, amado em si mesmo e por si mesmo e o Deus que experimentamos na pessoa do irmão necessitado da nossa presença fraterna. Jesus que subia ao monte para orar e estar a sós com o Pai, contemplá-lo é o mesmo que se entrega ao serviço do Reino de Deus intensamente. (Mc 1,35ss). Na Ascensão, após Jesus ser elevado, os seus discípulos olhavam atentamente para o céu, quando surgiram dois homens vestidos de branco e perguntam: 
 Homens da Galiléia por que estais aí a olhar a para o céu? (At 1,11). 
Assim, todo cristão, após ter experimentado o Cristo Ressuscitado não pode ficar paralisado pela experiência, mas deve ir até os povoados e aldeias anunciando com a vida a salvação que já está em nosso meio.

Conclusão
Nos dias de hoje, temos necessidade de um tempo de silêncio dedicado a oração, de encontro com o Senhor, quando mergulharemos na sua Palavra e nos alimentaremos de sua presença. Esse tempo nos revigorará, nos preparando para todas as adversidades que nos esperam. Como cristãos, todos os dias precisamos responder com nosso testemunho as interrogações daqueles que clamam por Deus, que necessitam encontrá-lo através de nós. É nessa contemplação, nesse mergulhar em Deus e retornar a superfície de nossa existência, que traremos conosco o olhar amoroso de Deus por seus filhos.

Bibliografia

GALILEA, Segundo. O Caminho da espiritualidade: visão atual da renovação cristã. São Paulo: Paulinas, 1985.

GALILEA, Segundo. Contemplação e engajamento. São Paulo: Paulinas, 1976.

Hall, Thelma. Lectio Divina. São Paulo: Loyola, 2001.

A leitura orante da Bíblia. Coleção: Tua Palavra é vida. São Paulo: Loyola, 1990.

PASCUAL, Rafael. Contemplação. In: Dicionário Teológico da vida consagrada. São Paulo: Paulus. 1994. p. 296-299.

CONSTITUIÇÃO DOGMÁTICA DEI VERBUM SOBRE A REVELAÇÃO DIVINA.In: Compêndio do Vaticano II: Decretos, Declarações. Petrópolis: Vozes, 1996.

TERRA. João. Lectio Divina. Revista de Cultura Bíblica, n. 55, São Paulo: Loyola, 1990. p.96-102.
 

Ir. Luciene Lima Gonçalves, membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, é doutoranda em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020).  É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007). E-mail: lucienelima324@gmail.com


 



quinta-feira, 17 de setembro de 2020

A descendência feminina no livro do Gênesis

 

Recentemente a leitura e a reflexão do livro do Gênesis me fizeram procurar a voz das mulheres na narrativa. Aos poucos fui percebendo que há uma predominância masculina não somente nesse livro, mas em toda a Bíblia. Acredito que isso não seja novidade para nenhuma mulher bem informada. Porém, pela primeira vez consegui encontrar uma voz feminina no primeiro livro do Pentateuco. Apesar de toda a tradição bíblica nos fazer recordar a escolha de Deus por homens para a sua descendência no Antigo Testamento (o que nos lembra a escolha pelos patriarcas Abraão, Isaac e Jacó), foi importante perceber que há uma voz feminina, alguém com quem Deus fala diretamente, que o escuta, responde e também o obedece no Gênesis. E claramente não estou me referindo à Eva, a mãe dos viventes, aquela com quem Deus conversou e exortou depois do pecado original, não! Estou me referindo à Agar, a escrava de Abrão, depois chamado Abraão.

Acho interessante destacar a condição social dessa mulher. Ela era escrava e estava às ordens dos seus donos. Após engravidar de seu senhor por ideia da esposa dele, que era infértil segundo o texto bíblico, as duas acabaram se desentendendo e, como nas relações sociais permanece a lei do mais forte, Agar foi expulsa de casa grávida. Expulsa sem direito a nada, apesar de Abrão ser detentor de riquezas na época e Sarai ter afirmado que por meio da escrava daria um filho a seu marido, dando a entender que trataria o menino como se fosse seu. Acredito que para a época do texto bíblico e para as relações de escravidão ao longo da história da humanidade, o estranho seria se Agar tivesse saído com algum prêmio ou privilégio por seu "serviço" prestado. Agar era escrava.

Se for possível falar em privilégio para Agar, pensemos no que aconteceu depois. Diz o texto bíblico que o anjo do Senhor a encontrou junto à fonte do deserto. Ora, sabemos que no livro do Gênesis quando alguém encontra o anjo do Senhor encontra o próprio Deus. Pois bem, vemos na continuação do capítulo 16 que o anjo do Senhor fala diretamente com Agar. Inicialmente perguntou para onde iria, ao que ela respondeu com sinceridade: "estou fugindo de Sarai, minha senhora." (v. 8). Após mandá-la voltar para casa, lemos: "E o anjo do Senhor acrescentou: multiplicarei a tua descendência de tal forma que ninguém a poderá contar..." O anjo fala mais que isso, ele faz revelações sobre seu filho. Mas fiquemos com esse trecho, que talvez seja o mais forte de todo o capítulo. Deus afirma que vai multiplicar a descendência de Agar, a mesma promessa que faz para Abrão em vários momentos do livro bíblico.

Fiquei pensando se houve alguma outra mulher a quem Deus fez essa promessa no Pentateuco. A descendência é um privilégio masculino ao longo de toda a Bíblia. Por isso vemos que o mais importante é mencionar o homem. A mulher fica em segundo plano e um mesmo homem pode ter filhos com várias mulheres, basta observarmos os homens do primeiro livro bíblico para constatarmos essa afirmação. Abraão casa com Sara, mas concebe também com a escrava egípcia, depois casa com Cetura (Gn 25,1), com quem teve outros filhos; Esaú, filho de Isaac e Rebeca, também casa com duas mulheres, Ada e Oolibama (Gn 36,1-2); já Jacó, seu irmão, casa-se com duas irmãs, Lia e Raquel, e ainda concebe com as escravas das duas, Zelfa e Bala (Gn 29,30). Como sabemos não foi o próprio Jacó quem escolheu o casamento dessa maneira, pois foi enganado pelo sogro e depois suas mulheres que propuseram as escravas para a concepção dos filhos, mas é interessante observar que somente o homem poderia ter esse triste destino de ser enganado e poder se unir a mais de uma mulher ao mesmo tempo. À mulher esperava-se que obedecesse ao pai quando jovem e depois de casada, ao marido, e também era preceito que fossem capazes de gerar filhos para a descendência masculina, caso não engravidassem eram condenadas a viver a vergonha pública. Por isso elas procuravam encontrar subterfúgios para dar essa descendência aos seus esposos.

Mas continuando a reflexão, podemos afirmar que encontramos no capítulo 16 pela primeira vez no texto bíblico, ainda que de forma tímida, a menção a respeito de uma descendência feminina.

Após essa leitura, por um tempo tentei imaginar o motivo de ter sido justamente uma escrava a "escolhida" para essa promessa de Deus. Os mais tradicionais dirão que foi em referência a Abraão, afinal o filho da escrava era também filho dele e Deus já havia mencionado o assunto com esse senhor em outros capítulos. Porém, algo me diz que havia mais que isso. Se foi mesmo por Abraão, então por que o próprio anjo não mencionou o personagem na conversa com Agar? Pensar sobre essa cena me fez pensar que talvez a própria condição dessa mulher tenha sido propícia para essa mensagem do anjo de Deus. Agar, por ser uma escrava em fuga, não tinha quem respondesse legalmente por sua vida. Ela, diferente de Sara, era uma mulher que não vivia atrás de um semblante masculino por justamente não haver nenhum homem que a amparasse; ela teria que se amparar sozinha. Talvez o infortúnio de Agar tenha justamente facilitado a cena que lemos no capítulo 16. Por não ter um homem que a representasse, é o próprio Deus quem fala com ela.

Após essa reflexão, fiquei pensando se não poderia ter sido também de uma escriba feminina a voz que falou nesse trecho. Talvez uma mulher como que disfarçada de homem a escrever dando voz a outras mulheres apagadas ao longo da história. Talvez seja muita fantasia da minha cabeça. O mais importante é ficar com a mensagem principal do texto bíblico: até mesmo uma escrava pode ser escolhida por Deus, mesmo em tempos tão distantes. Talvez isso, já no primeiro livro bíblico, demonstre o que foi percebido mais claramente somente a partir da vida de Jesus e dos ensinamentos dos apóstolos: Deus não faz acepção de pessoas. (Dt 10,17; At 10,34; Rm 2,11; Ef 6,9). 


Por Rosilene Souza, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e membro do grupo Mulheres da Palavra - formado por leigas do Instituto Religioso Nova Jerusalém.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

O Sofrimento humano no livro de Jó: teologia em tempos de pandemia


Vivemos em tempos difíceis, tempo de isolamento social, devido à pandemia do novo coronavírus. Pandemia essa que faz aflorar várias doenças em nossa sociedade, nos campos físico, psicológico, econômico e social. Foi pensando nisso que preparamos esta reflexão sobre o sofrimento na Bíblia. O que o texto sagrado tem a nos dizer a respeito do sofrimento? A Bíblia inteira é permeada de acontecimentos que fazem parte da realidade humana de qualquer tempo e lugar. Acontecimentos vivenciados muitas vezes por pessoas que sofreram, que passaram por experiências traumáticas em todos os aspectos da vida. Pessoas que se parecem contigo, comigo, pessoas que não são diferentes de nós.

Portanto, a Bíblia é um livro que destaca o sofrimento entre as experiências existenciais vivenciadas pela humanidade. Os tipos de sofrimento são vários, como por exemplo, o perigo da morte (Is 38,1-3); a morte dos filhos (1Sm 19,1); a falta de descendência (Gn 15,2; 30,1, 1Sm 1,6-10); a perseguição (Jr 18,18)... Até hoje esses sofrimentos ainda são uma incógnita, ainda há uma dificuldade em compreendê-los. Porque o justo sofre e os maus prosperam? (Ecl 4,1-3).

Ainda hoje, quando alguém está sofrendo, qual a primeira pergunta que passa em sua mente? "Por que estou sofrendo?" Ou "por que sofro?" Na verdade, o que se está perguntando é sobre a causa do sofrimento. Mas a pergunta não deveria ser essa. O correto seria o “para que estou sofrendo?” Qual o sentido do sofrendo em minha vida? Só assim, a dor e o sofrimento tomam outra dimensão. O “para que” ajuda a encontrar um propósito do sofrimento e, portanto, o sofredor será capaz de sair dessa situação mais humano e mais amadurecido.

Desde o segundo milênio a.C. a temática da dor já estava presente na obra dos antigos sábios de remotas civilizações, como babilônicas e egípcias. Isso significa que o ser humano desde sempre se preocupou em encontrar uma resposta para o sofrimento e ainda hoje procura saber o porquê da dor, do sofrimento, mas não encontrou uma resposta satisfatória para essa questão.

Na Bíblia, de modo particular, há um livro que faz referência ao sofrimento de uma pessoa. Esse personagem representa o sofrimento do seu tempo, e a dor de todos nós. Esse personagem bíblico fez uma experiência profunda da dor em sua vida. Essa pessoa é Jó. Para compreendermos um pouco a dor de Jó, que pode ser também a minha, a nossa dor, precisamos ter uma conversa na tenda com Jó para ouvir suas palavras, suas dores e seus gritos. Talvez, por suas chagas, sejamos curados de toda vã sabedoria e de nossas certezas inquestionáveis.

Jó é o representante da dor do gênero humano. Seu sofrimento é uma realidade concreta que desafia até mesmo a sua experiência religiosa. Jó é um homem que renuncia pôr sua confiança nos bens terrenos. Confessa sua própria miséria. Sofre inocentemente a incompreensão e o abandono de seus amigos. Mas continua unido a Deus, apesar do sofrimento. Continua esperando sempre no Senhor!

Jó é um dos livros do Antigo Testamento que se dedica à temática do sofrimento humano. Afinal, quem é Jó? É um homem justo, que sofre sem culpa e é provado por diversos sofrimentos: perde seus bens, os filhos morrem (1–2), a esposa não o compreende, os amigos o acusa. ]

No decorrer da obra, menciona-se que Jó tinha três amigos, e esses três amigos não falam corretamente sobre Deus, não o apoiam, nem o animam, simplesmente o criticam e o acusam por estar sofrendo (3–24), querem convencer Jó de que se ele está sofrendo deve ter feito algo grave e está sendo castigado por Deus. Sabemos que, por trás dessa afirmação está a concepção do sofrimento como castigo (pena) pela culpa. Por trás dessa expressão há uma visão tradicional da justiça de Deus, representada pelos três amigos, que é a Teologia da Retribuição. Esse tipo de teologia compreendia Iahweh como um Deus justiceiro que retribui a cada pessoa segundo o cumprimento da Lei divina. Para essa teologia, se a pessoa cumpria a Lei de Deus, recebia a Bênção, isto é, riquezas, vida longa, saúde, descendência e honra. Para quem descumprisse a Lei havia o castigo, isto é, pobreza, morte prematura, doenças, esterilidade e desonra etc. Portanto, se alguém estava sofrendo era porque estava pagando por alguma infração da Lei. Por trás de tudo isso estava presente a Teologia da Retribuição.

Até o Exílio da Babilônia, a Teologia da Retribuição entendia o castigo ou a recompensa como algo coletivo, direcionado a toda comunidade ou à família. Dizia-se que as consequências dos atos das pessoas eram hereditárias. Temos vários exemplos disso: (Ex 20,5; 34,7; Jr 32, 18; Lm 5,7; Ez 18,2). “Nossos pais pecaram: já não existem; quanto a nós, carregamos as suas faltas” (Lm 5,7). O profeta Ezequiel, percebendo que o povo não considerava justo pagar pelos pecados de seus antepassados, reelaborou a ideia da responsabilidade coletiva e defendeu a responsabilidade pessoal. Cada pessoa é responsável pelos seus atos (Ez 18).

No livro de Jó, esse modo de pensar está bem presente. Jó era rico e passou a ser pobre (1,14-17.20-21). Jó tinha saúde e passou a sofrer em meio a terríveis doenças (2,5-8). Mas Jó não concorda com a suposição que esteja sendo castigado como descumpridor da Lei. Por isso, por mais que seja reconhecido como paciente e resignado, Jó fica indignado e até se revolta contra essa manipulação, segundo a qual Deus não passava de um carrasco, justiceiro, vingador e castigador. Existe ainda hoje essa concepção? Convido-te a refletir sobre essa realidade.

Eis uma questão: se Deus é todo amor, é puro amor, como a dor e o sofrimento podem ser castigos de Deus? No livro do profeta Ezequiel se afirma: “Não quero a morte do pecador, e sim, que ele se converta e viva”(Ez 18,23). Então, se crermos que a religião e a fé se baseiam nisso, no “toma lá dá cá”, deixa de ser uma religião gratuita, deixa de ser uma fé baseada na graça de Deus, baseada na compaixão, na misericórdia e no amor gratuito de Deus.

Quem de fato, faz a experiência do Deus vivo é Jó, o pobre, o doente, tomado pelos sofrimentos e dores, aquele que é desmoralizado e acusado como pecador. Não os amigos de Jó, que o acusam, estes não fizeram experiência com Deus, estes conhecem Deus só de ouvir falar.

Portanto, esse Jó pode ser eu, pode ser tu, ou até mesmo tua família, que diante de uma pandemia tão desastrosa, como a que estamos enfrentando. Neste contexto somos convidados pela Palavra de Deus a fazer uma experiência com esse Deus, cheio de compaixão, que está ao nosso lado porque nos ama muito. O sofrimento nos faz mais vulneráveis, mais flexíveis, mais humildes, e mais humanos, e ainda nos ajuda a nos encontrarmos com o Deus da vida

Essa realidade apresentada pelo autor do livro de Jó tem a pretensão de nos levar a refletir sobre o sofrimento, como uma experiência humana universal. O sofrimento, seja ele consequência da pobreza, da falta de emprego, da falta de perspectiva de futuro, da morte prematura de entes queridos ou de uma doença, é uma experiência comum a todos os povos em todas as épocas. Faz parte do cotidiano de inúmeras pessoas em todo mundo.

O livro de Jó termina humildemente com uma experiência profunda! No encontro de Jó com Deus e na retratação dos amigos, Jó afirma: “Eu te conhecia só de ouvir, mas agora meus olhos te veem” (42,5).

A dor e o sofrimento fazem sua obra e deixam uma quantidade imensa de recados dependurados nas paredes da nossa memória. Restará a cada um(a) fazer desses recados um trauma ou uma experiência de Deus. Deus está ao teu lado, mas tu quem decides.

Jesus Cristo fez essa experiência em favor dos sofredores (as) deste mundo, dos marginalizados, dos excluídos, de te, e abdicou de todos os privilégios divinos e humanos (como vemos em Fl 2,5-11) e assumiu a condição de crucificado, e, ao final, saiu vitorioso! O sofrimento, a dor e a morte foram vencidas com sua Ressurreição. Em Jesus, somos vencedores.

Todo cristão precisa sair de si, abrir mão de ideias preconcebidas e solidarizar-se com o que sofre e, imerso nessa situação, fazer a experiência de Deus e levar quem sofre a fazê-la também.

Confesso, é difícil ter uma palavra conclusiva sobre o tema da dor e do sofrimento. No final dessa conversa, na tenda com Jó, em vez de uma resposta fechada de uma conclusão, é melhor então fazer uma profissão de fé naquele que “armou sua tenda entre nós”, Jesus Cristo (Jo 1,1ss).

“Vivemos um tempo novo, um tempo de graça, um tempo propício e oportuno para criar, um tempo para experimentar a compaixão e a solidariedade. Vivemos um grande momento para descobrir o amor de Deus e nos amarmos”. (Dom José Tolentino Mendonça). Precisamos pôr em prática o nosso escutar a Deus, a nós mesmos, o irmão (ã), e a natureza, para, assim, sermos sinais do novo do qual todos possam se beneficiar.



Bibliografia

Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 1985
TILESSE, Caetano Minette de. O Sofrimento na Bíblia. Revista Bíblica Brasileira, Fortaleza, v. 23, n. 1-3, 2006.
MIRANDA, Evaristo Eduardo de. Bíblia: história, curiosidades e contradições. Petrópolis: Vozes, 2015.
Mendonça, José Tolentino. Espiritualidade cristã em tempo de isolamento social, In: https://youtu.be/8oQYr43YNlg. Acesso em 04.08.2020



Ir. Rita Paixão Albuquerque é membro do Instituto Nova Jerusalém. Graduada em Teologia e Pós-graduada em Psicologia da Religião pela Faculdade Católica de Fortaleza.