quinta-feira, 18 de março de 2021

Ide a José, homem justo com um coração de Pai

 

A origem de Jesus Cristo foi assim: Maria, sua mãe, estava desposada com José e, antes de viverem juntos, ela ficou grávida pela ação do Espírito Santo. José, seu marido, era justo e, não querendo denunciá-la, resolveu abandonar Maria, em segredo. Enquanto José pensava nisso, eis que o anjo do Senhor lhe apareceu, em sonho, e lhe disse: “José, Filho de Davi, não tenhas medo de receber Maria como tua esposa, porque ela concebeu pela ação do Espírito Santo. Ela dará à luz um filho, e tu lhe darás o nome de Jesus, pois ele vai salvar o seu povo dos seus pecados”. Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta: “Eis que a virgem conceberá e dará à luz um filho. Ele será chamado pelo nome de Emanuel, que significa: Deus está conosco”. Quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia ordenado, e acolheu sua esposa (Mt 1,18-24).


Esse trecho do Evangelho conforme Mateus, que é proclamado na liturgia de 18 de dezembro, narra como José lidou com a gravidez inesperada de Maria, com a qual estava desposado. É um relato tenso sobre a forma como ele responde a uma mudança inesperada em sua vida e no futuro dele com Maria e a criança que vai nascer.

Lidar com decepções ou problemas que surgem inesperadamente, como um acidente, uma demissão, uma doença, a morte de um ente querido ou a notícia ruim, é algo muito difícil para qualquer ser humano. Nossos sonhos para o futuro podem ser alterados para sempre quando algum acontecimento inesperado invade nossas vidas.

A narrativa mateana sobre o nascimento de Jesus nos lembra que Deus está conosco, não importa o que aconteça.


QUEM É JOSÉ?

As narrativas sobre a infância de Jesus no Evangelho de Mateus se concentram mais em José do que em Maria. Isso porque o Evangelho de Mateus foi direcionado para cristãos de ascendência judaica. Mateus quer demonstrar que Jesus é o messias da linhagem de Davi, prometido pelos profetas na Sagrada Escritura.

Em hebraico José (Yoseph), derivado da raiz YSP (adicionar, acrescentar). Foi isto que Raquel disse quando lhe nasceu seu primeiro filho e décimo primeiro de Jacó: “que o Senhor me acrescente mais um filho” (Gn 30,24). Mas essa raiz também significa “agregar”, por isso, o nome José também pode significar “aquele que agrega”. Existem muitos paralelos entre o esposo de Maria e o patriarca filho de Raquel e Jacó, um dos doze patriarcas que formaram as doze tribos do povo de Israel. Por isso, o Papa Francisco destaca na Patris corde que “São José constitui a dobradiça que une o Antigo e o Novo Testamento” (1).


- Maria estava desposada com José e, antes de viverem juntos

O casamento judaico consiste de duas etapas: a primeira fase é a ketubá ou contrato de casamento que estipula as responsabilidades mútuas de esposo e esposa (Mt 1,18a, Lc 1,27a, Is 7,14). Depois disto o esposo vai preparar a residência para a nova família. Nessa ocasião o esposo dizia: “Vou preparar-te um lugar na propriedade de meu pai” (Jo 14,2). A etapa da coabitação é marcada pela cerimônia de kedushim (santificação) (Mt 1,18). O amigo do esposo prepara a cerimônia (Jo 2,9-11; 3,29). Ele avisa que o tempo da espera terminou (Mt 25,7). Duas procissões são formadas, uma com a esposa e outra com o esposo (1Mac 9,37-39; Ct 3,6-11; Mt 25,1-13). No encontro dos esposos há uma festa (Mt 22,1-14). Após a ketubá qualquer infidelidade dos esposos é considerada adultério. Essa é a situação suposta no relato mateano.

José se encontra numa situação terrível, seus sonhos de um casamento e de uma família felizes foram frustrados pela incrível notícia de que Maria estava grávida. É intenção do evangelista que sintamos as emoções e os pensamentos que devem ter dominado José até ele decidir o que fazer.

José viveu um dilema: sua esposa apareceu grávida e não era dele: não tinha evidências para provar a inocência ou culpa de Maria. Mateus nos informa que José ficou pensando até tomar uma decisão.


- era justo e não querendo denunciá-la

Em vez de expor publicamente Maria à desgraça, pois ela seria apedrejada como adúltera, José decidiu divorciar-se dela discretamente sem mencionar o motivo.

A bondade (justiça) de José permitiu a intervenção oportuna de Deus. José não foi considerado um homem justo porque ele era um observador rigoroso da Lei (Dt 22,23-24), mas por seu ajustamento em relação à vontade de Deus, por sua bondade.

A única opção para ele era se divorciar de Maria, escrevendo uma carta de divórcio (Dt 24,1) sem divulgar o motivo. No entanto, ele não fez isso imediatamente; mas estava ainda cogitando pôr em prática sua decisão.


- o anjo do Senhor lhe apareceu

O nome do anjo não é especificado, Mateus afirma que é o anjo do Senhor, que no Antigo Testamento é frequentemente um representante de Deus ou uma forma de falar no próprio Deus ao se comunicar com um ser humano. Alguns exemplos do aparecimento do anjo do Senhor são a Agar (Gn 16, 7-14), a Abraão e Sara em Mambré (Gn 18,1), a Abraão no Monte Moriá (Gn 22,11-12.15), a Jacó (Gn 31,11;32,25), a Moisés (Ex 3, 2), a Josué (Js 5,13-15), a Gideão (Jz 6,22) e aos pais de Sansão (Jz 13,21-22). Novamente um eco da genealogia, José e Maria continuam a história do povo.

O anjo tranquiliza José dizendo que ele deve ir em frente e receber Maria como esposa, ou seja, deve desistir de divorciar-se dela. O anjo estava garantindo a José que ele poderia confiar em Maria.

Foi algo semelhante à interferência de Deus na vida de Abraão quando ele estava perto de sacrificar seu filho Isaque. Por isso Mateus colocou a genealogia de Jesus como introdução desse relato, ele quer que nos lembremos das histórias daqueles patriarcas e matriarcas. A história de José e de Maria é uma continuação das narrativas do povo da aliança.

O patriarca José, que viveu 700 anos antes, também era um homem casto e justo. Sua integridade moral é apresentada em Gn 39, quando ele vence o assédio da esposa de Potifar, seu amo. O patriarca José, sendo justo (bom) não se vingou de seus irmãos e nem os envergonhou publicamente quando eles foram ao Egito em busca de alimento. Em vez disso, ele os tratou bem e disse-lhes: “Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; porém Deus o tornou em bem, para fazer, como vedes agora, que se conserve muita gente em vida. Não temais, pois eu vos sustentarei a vós outros e a vossos filhos. Assim, os consolou e lhes falou ao coração” (Gn 50,20-21).

Era função do patriarca agregar, proteger, conduzir e cuidar da tribo. Temos aí novamente um paralelo entre o José do Antigo Testamento e o esposo de Maria. Inclusive o Papa Francisco destaca na Patris corde esse aspecto do papel que ambos exercem em relação ao cuidado. Diz o Papa que a confiança do povo em São José está contida na expressão “Ide ter com José; fazei o que ele vos disser (Gn 41, 55), uma referência às palavras do faraó do Egito quando o povo pedia pão em tempos de carestia e este lhe indicava que deveriam se dirigir àquele poderia suprir suas necessidades (1).


- em sonhos

Numerosas vezes na Bíblia, Deus se comunica com as pessoas por meio de sonhos. A Bíblia dá importância aos sonhos e à interpretação dos sonhos. O patriarca José também recebeu mensagens de Deus através de sonhos e também tinha o dom de interpretá-los. O sonho no qual seus irmãos se curvavam diante dele se tornou realidade. Sua interpretação do sonho de Faraó salvou o Egito e sua família de sete anos de fome.

O Evangelho conforme Mateus relata quatro sonhos de José, o esposo de Maria. O primeiro está no trecho que estamos refletindo (Mt 1, 20). O segundo está relatado logo depois que os magos partiram: o anjo do Senhor avisou a José para ir ao Egito (Mt 2, 13). O terceiro é narrado logo depois da morte de Herodes Magno quando o anjo diz a José para sair do Egito (Mt 2,19-20). No quarto sonho, José é avisado para não ir habitar na região da Judeia, mas da Galileia (Mt 2,23).


- Filho de Davi

A saudação do anjo chama a atenção: “José, filho de Davi”. O anjo enfatiza que José era da linhagem do Rei Davi, personagem mais destacado pela genealogia. Com essa saudação, o anjo preparou José para a parte seguinte da mensagem que iria transmitir. O povo da aliança estava esperando o messias que seria descendente do rei Davi conforme a profecia de 2 Sm 7, 12-16.

A expressão “Filho de Davi” foi usada várias vezes em referência a Jesus por pessoas que pediam sua misericórdia. Por exemplo, a mulher cananeia que pedia a cura de sua filha atormentada por um espírito impuro (Mt 15,22) e dois cegos pedindo a cura (Mt 20,30). O uso de “filho de Davi” pelo anjo ao saudar José significa que há uma conexão ancestral com Davi, de cuja linha o libertador viria.


- Não tenhas medo

José e Maria viviam numa época em uma sociedade que estava profundamente focada em
ideias de honra familiar. E se a esposa tivesse sido infiel aos compromissos do matrimônio, o esposo tinha o dever legal de assumir uma posição moralmente elevada e se mostrar livre da vergonha pública. E todos, legal e socialmente, ficariam do seu lado. Marcado por aquele contexto, José estava com medo do que as pessoas diriam a respeito dele. A vergonha pública, a má reputação o seguiria pelo resto de sua vida. Além disso, como ele poderia amar uma criança sabendo que não era seu pai? Todos esses receios devem ter passado pela cabeça de José.

Há outro agravante, porém. Aquela época era um tempo de terror. Um dos personagens principais daquele contexto era o rei Herodes Magno, um homem extremamente violento que não admitia nenhum questionamento a respeito da opressão que o império romano exercia sobre os povos. Qualquer atitude que fosse classificada como rebelião era combatida com grandes torturas e morte na cruz. Havia a pax romana que proibia qualquer desacordo entre as pessoas. As pessoas viviam aterrorizadas e se refugiavam nas promessas de Deus que enviaria um libertador nacional semelhante a Davi que combateu os filisteus ou a Moisés que venceu o faraó do Egito.

Mas o anjo disse a José que não deveria ter medo porque o que nela foi concebido procedia do Espírito Santo. Deus estava cumprindo suas promessas, o libertador estava chegando através de Maria.


- tu lhe darás o nome de Jesus

O nome Jesus significa literalmente “YHWH (o Senhor) é a salvação”. O anjo estava dizendo a José que o menino que iria nascer é Deus trazendo a salvação prometida. Não apenas uma libertação nacional contra o império romano e o poder de Herodes. De uma forma que José, e nem nós ainda conseguimos entender completamente, esse menino é Deus vindo fazer morada conosco como um de nós.

Portanto, o anjo esclareceu a missão de Jesus para José. Jesus, em hebraico é Yeshua', o mesmo que Josué, no Antigo Testamento, que conduziu os israelitas através do rio Jordão para a terra prometida derrotando os cananeus. Jesus salvaria o povo da escravidão do pecado e os conduziria através batismo à nova Jerusalém, a realidade celeste. Portanto, a libertação prometida por meio do redentor não era do imperador romano, como os líderes judeus contemporâneos esperavam do messias, mas de um inimigo maior que poderia impedir o povo de chegar a Deus.

O pai era o único que tinha o direito de nomear o menino Jesus no dia da circuncisão, o rito de iniciação à fé judaica. José lhe deu o nome de Jesus conforme as instruções do anjo e, dessa forma, o reconheceu como o filho legal. De acordo com o conceito da época, nomear um filho era reivindicar o filho como seu. A paternidade de Jesus pertence a Deus, o Pai, que designou o nome de Jesus para seu filho e pediu a seu pai adotivo José e sua mãe Maria que usassem esse nome no momento de sua circuncisão.


- para se cumprir o que o Senhor havia dito pelo profeta

Mateus está se referindo ao texto do profeta Isaías em 7,14. Um destaque deve ser dado ao
termo Emmanuel, que é um título e não um nome. No livro de Isaías há várias nomeações semelhantes para o messias: “o seu nome será: “Conselheiro admirável, Deus forte, Pai eterno, Príncipe da paz” (Is 9,5). Estes, incluindo “Emanuel”, não foram dados como nomes literais, mas como o título que especifica as características do Messias.


- quando acordou, José fez conforme o anjo do Senhor havia ordenado

O relato de Mateus está enfatizando que a história da salvação depende da obediência de José em meio a sua decepção, medo e incertezas. Três vezes no relato mateano sobre a infância de Jesus, José é visitado por um anjo que lhe diz para fazer algo e três vezes ele faz exatamente o que lhe foi dito para fazer. Ele é um personagem silencioso, não o ouvimos falar, ele é um homem de ação e faz o que precisa ser feito. Todos podemos nos beneficiar com o seu exemplo.


AS VIRTUDES DE JOSÉ

Podemos concluir nossa reflexão elencando algumas virtudes de José que transparecem no texto de Mateus. Elas são muito necessárias para nossa época:


- José era paciente

José foi paciente ao resolver o problema com Maria. Embora tivesse cogitado se divorciar em segredo, ele pensou muito a respeito. Uma reação imediata de José poderia ter levado Maria correr risco de morte e ele poderia ter perdido sua vocação como pai adotivo de Jesus. A ação imediata é boa em situações de emergência. Porém, quando há um conflito dentro de si ou na relação com os outros, a paciência por um tempo oportuno, com a confiança em Deus, nos ajudarão a uma melhor solução. Esperar um tempo razoável pode ser benéfico para obter ajuda de Deus ou de outras pessoas para resolver os problemas.


- José era um homem justo

Esse é o principal título que as Escrituras dão a José, além daquele com o qual o anjo o saudou “filho de Davi”.

Os anseios de José por um casamento feliz foram interrompidos pela notícia de que Maria estava grávida. O texto mateano destaca que José era “justo” no sentido de que ele se adequa ao que Deus espera do ser humano. Por isso, José decidiu encerrar o casamento discretamente. Este foi um ato nobre de sua parte, pois colocou em primeiro lugar salvar a honra da família de Maria e a vida dela em vez de cumprir rigorosamente a Lei. Isso é visto como algo justo pelo autor do evangelho. 
 
Aquele que prefere outro, aquele que mostra honra ao invés de “direitos” é o tipo de pessoa que precisamos nos tornar. José é justo porque seu agir é semelhante ao agir de Deus. José é uma pessoa segundo o coração de Deus. Ele era realmente um homem de Deus.


- José era atento

Não devemos esticar a passagem fazendo o texto dizer o que não era intenção do autor. No entanto, Mateus diz que José “pensava nisso”. Temos Maria como alguém que “meditava essas coisas em seu coração”. Mas, aqui, vemos que José também era um homem atento, um homem que refletia sobre os acontecimentos que estavam acima de sua compreensão e que o deixavam sem entender o agir de Deus. Não podemos entender a complexidade do agir de Deus a nosso respeito, não somos capazes disso, é preciso dar atenção aos acontecimentos com profundidade para discernirmos que decisão devemos tomar para fazer a vontade de Deus. É necessário ser uma pessoa atenta, meditar sobre como aplicar a Palavra de Deus às situações; considerar o leque de possibilidade de escolhas que Deus coloca diante de nós e considerar as consequências de cada alternativa de ação. Quantos de nós se orgulham da rapidez com que agem na vida? No trabalho, no lazer, nos relacionamentos, nas decisões...


PERGUNTAS PARA REFLEXÃO

1. Se você calçasse as sandálias de José, como você teria reagido às notícias de Maria sobre a gravidez?

2. Você já teve uma experiência em que alguém lhe pediu para acreditar em algo que parecia “difícil de acreditar?” Como você reagiu a isto?

3. O que a decisão inicial de José nos diz sobre seu caráter?

4. Depois que o anjo do Senhor lhe apareceu em sonho, o que as ações de José revelaram sobre sua fé? 
 
 
 
Ir Aíla Luzia Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas) e Palavra Viva e Eficaz (Paulus).