terça-feira, 7 de junho de 2011

“RECEBEI O ESPÍRITO SANTO”

Rita Gomes, NJ*

1. Introdução
Em nosso tempo o fascínio pelo sagrado como fuga de uma realidade fragmentada nos leva a perceber uma distorção da compreensão de Deus e de sua ação em nossa história que se revela através de Jesus Cristo, bem como uma ideia estranha da ação do Espírito Santo. Esse passou da imagem singela da pomba sem papel muito claro ao fazedor do impossível, de portentos e milagres. Do esquecimento passou ao primeiro plano de modo confuso. Qual Espírito e qual seu lugar e missão na vida da Igreja? A resposta a esta e a outras dúvidas buscamos no testemunho escriturístico e na liturgia da Igreja.

2 Conhecendo os textos
A primeira leitura nos fala a ação do Espírito Santo sobre a Igreja nascente para formar o novo povo de Deus na unidade. A segunda leitura indica a ação do mesmo Espírito para sustentá-la na diversidade criativa. Já o evangelho nos dá a chave de compreensão das leituras anteriores ao revelar-nos a relação de continuidade de ação entre o Filho e o Espírito em vista da Igreja.

2.1 Espírito Santo – dom do Crucificado-Ressuscitado
O evangelho de hoje nos recorda a continuidade relacional entre Jesus o Cristo, o Espírito e a Igreja. A primeira afirmação evangélica é que o Ressuscitado, doador do Espírito, é o mesmo que foi crucificado. Tal afirmação é marcada pela demonstração que Jesus faz de suas mãos e de seu lado. Ao fazer isto recorda as chagas dos cravos e o ferimento de lança infligido pelo soldado. A sequência da narrativa é simples, após recordar que foi enviado por Deus doa o Espírito aos discípulos. Jesus foi enviado por Deus e auxiliado em toda sua obra pelo Espírito que se torna agora o dom do Crucifidado-Ressuscitado para a Igreja. Ao enviar o Espírito sobre os apóstolos se confirma a continuidade de uma relação de amizade, de aliança de Deus com a humanidade selada pelo Cristo no Espírito. É o Espírito que agora sustenta e inspira a Igreja em sua ação.

2.2 Um só Espírito - um só povo
Dois pontos merecem atenção na primeira leitura. O primeiro é a unicidade do Espírito. Um só é o Espírito que pousa, mas se distribui sobre todos como línguas de fogo. O segundo é o dom da unidade linguística. A relação de unidade que marca a presença do Espírito sobre a Igreja é marcada na segunda leitura pela compreensão por todos, independentemente da língua materna de cada ouvinte, da mensagem transmitida pelos apóstolos. Essa comunhão espiritual se torna ainda mais compreensível pelo contraste com a leitura da “torre de babel” (Gn 11,1-9) em que a diversidade de línguas marca a divisão, já que ninguém se entende, entre povos separados. Aqui há a formação do povo de Deus que não é demarcado pela língua falada e pela origem geográfica, mas pelo Espírito que os une. A identidade do novo povo de Deus vem da conformação ao Cristo pelo dom do Espírito.

2.3 Um só corpo
Enquanto na primeira leitura vemos a ação do Espírito sobre a Igreja nascente em relação aos outros povos e culturas, a segunda alerta-nos para a compreensão da ação do Espírito no interior mesmo do povo de Deus. O Espírito não é só unidade, mas também diversidade. Paulo lembra a unidade de origem dos dons (o Espírito) e a diversidade de manifestação (carismas). A comunhão não significa unidade indiferenciada, mas cooperação mútua, uma vez que somos um único corpo. No fim, a origem última é Deus, por Cristo no Espírito. Um só e mesmo Espírito opera tudo em todos. Embora não use uma terminologia trinitária evoluída, o pensamento trinitário se apresenta claramente, pois Paulo fala dos três: Espírito, Senhor, Deus correspondendo ao Espírito Santo, Jesus (o Filho) e o Pai.

3 A palavra se faz celebração
A Páscoa enquanto compreende vida-morte-ressurreição de Jesus Cristo completa seu ciclo com o Pentecostes. Em todo o Mistério Pascal nos é dado conhecer a ação salvadora de Jesus Cristo, enviado do Pai, movida pela força do Espírito. É pelo Espírito que podemos confessá-lo nosso Messias-Salvador. Após sua morte e ressurreição nos dá seu Espírito para continuarmos sua missão, fazermos o Reino de Deus presente. O importante a marcar aqui é a pessoa do Espírito Santo. Na Escritura encontramos ao menos três referências ao Espírito que são dignas de nota: Espírito de Deus (mais comum no AT), Espírito de Cristo e Espírito Santo (NT). A primeira referência marca o Espírito do Pai que sustenta e move seu Messias e o Espírito de Cristo, o dom do Ressuscitado para a Igreja. Mas, não se trata de outro espírito. Para expressar a identidade do Espírito do Pai e do Filho, Xabier Pikaza recorre ao esquema calcedoniano[1] das duas naturezas do Cristo (humana e divina). Assim, o espírito do Pai que se autodoa a Jesus, fazendo-o surgir como seu Filho e o espírito de Jesus, o Filho, que se entrega ao Pai, são um e o mesmo[2]. Esse mesmo Espírito é enviado pelo Filho em Pentecostes à Igreja. Assim com a solenidade de Pentecostes celebramos plenamente o mistério de nossa salvação. Em Jesus somos feitos filhos no Filho, fazemos parte da vida divina.

4. A palavra fala-nos hoje
Longe de querer negar o “poder” do Espírito Santo para operar milagres e prodígios em nosso meio, queremos ressaltar que não é próprio da revelação de Deus em Jesus Cristo, uma ação portentosa. Jesus nos revelou o Deus que é trino, Pai- Filho – Espírito Santo não numa exaltação, mas num agir discreto e passando pela cruz. O poder de Deus se revela no amor e na misericórdia diária que faz com que todo aquele que é movido pelo Espírito não viva só para si, mas em vista da vida para o outro. O Espírito testemunha o messianismo do crucificado e impulsiona a Igreja a seguir o mesmo caminho de humildade e potência amorosa.



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* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará - ITEP, atual Faculdade Católica de Fortaleza – FACAF. Possui ainda graduação e mestrado em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE. É membro da Comissão de Publicações do Vicariato Pastoral da Arquidiocese de Belo Horizonte. O texto que aqui se encontra foi publicado no Caderno "Homilias e Sugestões" da referida comissão com algumas modificações.

[1] Referência ao IV Concílio Ecumênico realizado no ano 451 em Calcedônia.

[2] Pikaza, Xabier. El Espíritu Santo y Jesús: Delimitación del Espírito Santo y relaciones entre Pneumatología y Cristología. Salamanca: Secretariado Trinitario, 1982, p. 43.

domingo, 5 de junho de 2011

O Espírito Santo e Maria

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

“Concebido pelo Espírito Santo e nascido da Virgem Maria” é uma das afirmações da profissão de fé cristã quando trata sobre a Encarnação.

Quando estávamos em preparação para o Jubileu da Encarnação, na expectativa do ano 2000, tivemos um ano dedicado a uma catequese sobre o Espírito Santo em 1998.

O enfoque da celebração do terceiro milênio foi o da concepção e nascimento de Jesus Cristo tornada possível pelo poder do Espírito Santo e pela cooperação da Virgem Maria. A concentração numa “reciclagem” catequética sobre o Espírito Santo deveria constituir também uma devoção mariana mais sólida, mais vinculada ao seu papel em relação a Jesus e em relação ao Espírito Santo.

O Espírito Santo é o guardião da esperança no coração humano, por isso houve uma especial atenção à virtude teologal da esperança em 1998. Nas Escrituras, Maria é a mulher dócil à voz do Espírito, a mulher que esperou contra toda esperança. Em Maria, a Igreja vê “um sinal da esperança segura” (LG 68), ela foi “plasmada pelo Espírito Santo e formada nova criatura” (LG 56). Enfim, a Igreja deve ser aquilo que Maria é. E enquanto peregrina neste mundo a Igreja tem Maria como um sinal “até que chegue o Dia do Senhor” (LG 68).

Há dois textos nas Sagradas Escrituras que tratam diretamente sobre o Espírito Santo e Maria:

a) Mt 1,18-20
As circunstâncias do nascimento de Jesus é uma ação do Espírito Santo sobre Maria (v.18), “o que nela foi gerado vem do Espírito Santo” (v.20). Há um testemunho do narrador (v.18) e um testemunho do céu (v.20) de que Maria está sob a ação do Espírito Santo para que Jesus venha a nascer. A justiça de José ou a inocência de Maria são aspectos secundários. O mais importante é a docilidade de ambos à ação do Espírito Santo. No caso de Maria há uma colaboração, ela corre risco de ser morta. O casal é um testemunho para a Igreja: deixar-se guiar e colaborar, mesmo que isso exija a morte ou a mudança de mente (conversão).

b) Lc 1,35
Primeiramente, menciona-se a descida do Espírito Santo sobre Maria. Isso nos remete a Ex 3,8 quando se afirma que Deus desceu para livrar o seu povo do faraó e para fazê-lo subir à terra prometida. Depois é dito que “o poder do Altíssimo” cobrirá Maria. Isso está vinculado com a criação, quando o Espírito pairava sobre as águas (Gn 1,2). O Espírito cobrirá Maria com sua sombra, isto nos remete à nuvem (shekiná) no deserto cobrindo a Tenda do Encontro (Nm 9,15).

No evento de Pentecostes o Espírito Santo permanece Deus misterioso ou escondido (Is 45,15) e assim ele permanecerá ao longo de toda a história da Igreja e do mundo. Pode-se dizer que ele está escondido na sombra de Cristo. Ele é o Deus escondido que trabalha em silêncio e no interior. A narrativa sobre o Pentecostes em At 2,1-13 indica que quando se trata do Espírito Santo há somente a observação dos efeitos de sua presença e de sua ação em nós e no mundo. O mesmo efeito pode causar estupefação em uns (2,12) e zombaria em outros (2,13).

Na tradição religiosa de Israel, o Pentecostes era originalmente a festa dos primeiros frutos da colheita (Ex 34,22). O Antigo Testamento dá instruções detalhadas para a celebração do Pentecostes (Lv 23,15; Nm 28,26-31), que mais tarde tornou-se também a festa da renovação da aliança (2 Cr 15,10-3). A narrativa sobre Pentecostes em At 2,1-13 está vinculada ao relato sobre a comunidade dos reunida no Cenáculo onde todos unânimes “perseveravam na oração com algumas mulheres, entre as quais Maria, a mãe de Jesus” (At 1, 14). Uma leitura cuidadosa de Atos nos diz que havia homens e mulheres, e o momento do Pentecostes representado apenas pelos doze ou pelos doze e Maria omite um importante ensinamento sobre a manifestação do Espírito na Igreja. Isso significa que, no Novo Testamento, a festa da colheita torna-se a festa da “nova colheita” do Espírito Santo, o fruto da semente lançada por Cristo.

O texto da anunciação tem uma correlação com o texto sobre o Cenáculo e Pentecostes. Na anunciação Deus dá o seu Espírito a Maria a qual não é apenas a imagem (Abbild = reflexo) mas também a imagem típica (Urbild=protótipo) da Igreja. Em Pentecostes acontece com a Igreja o que aconteceu com Maria na anunciação e por isso a Igreja torna-se fecunda, gera o Cristo para as nações através do anúncio do evangelho em todos os idiomas.

Em 1974 o Papa Paulo VI escreveu um documento (Marialis Cultus (MC)) sobre a devoção a Maria, que continua a ser a norma para a devoção mariana entre os católicos. Depois de normatizar a devoção mariana em função de Cristo, o Papa destaca em dois números (MC 26 e 27) relaciona a mesma devoção em relação ao Espírito Santo. Isso significa primeiramente que não pode haver culto a Maria em si mesma.

No número 26 o Papa começa afirmando que “a intervenção santificadora do Espírito no caso da Virgem de Nazaré foi um momento culminante da sua ação na história de Salvação”. E, em seguida, lembra que Maria “se torna habitação permanente do mesmo Espírito”. Isto é, em Maria se diz o mesmo que se dizia para a arca da aliança [1].



“O mesmo verbo exprime a posição da nuvem sobre o tabernáculo e a do Altíssimo sobre Maria”. O tabernáculo fica cheio da glória, Maria fica cheia da presença do Filho de Deus.




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[1] MARTINS TERRA, João Evangelista. Releitura Judaica e cristã da Bíblia, São Paulo: Loyola, 1988, p. 24-25.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.