sábado, 15 de outubro de 2022

O livro de Ester e o risco da anacronia* bíblica

 


O início do livro de Ester nos leva a pensar o quão prejudicial é, para quem vive no século XXI, fazer uma leitura superficial ou fundamentalista da Bíblia e trazer para o tempo atual, tão diferente daquele do Antigo Testamento, vivências e preconceitos que são próprios daquela sociedade.

Informa o texto que o rei Assuero ofereceu um banquete para todos os príncipes e seus servidores, bem como para os nobres e prefeitos de províncias, durante 180 dias. E, como era bondoso, ou para causar essa impressão no povo, ofereceu também um banquete de 7 dias para a plebe. A intenção era somente uma, no dizer de hoje, ostentar as riquezas de seu reino.

Pois bem, no texto bíblico, a rainha Vasti também quis ter o mesmo privilégio e organizou um banquete somente para mulheres, mas como a vida da mulher sempre foi difícil, principalmente nos tempos antigos, o rei a chamou para exibir sua beleza diante de todos, como se fosse um troféu. É importante mencionar que a narrativa informa que essa ordem se deu no sétimo dia de banquete, quando "o rei estava mais alegre por causa do vinho" (Est 1,9). A recusa da mulher provocou a ira do rei, que convocou os sábios para orientá-lo sobre como proceder em relação a ela.

O sábio Manucá, por sua vez, respondeu, dizendo: “‘A rainha Vasti ofendeu não só ao rei, mas a todos os príncipes e povos que vivem em todas as províncias do rei Assuero. Pois a sua atitude chegará a todas as mulheres, fazendo que elas desrespeitem seus maridos’, justificando-se assim: o rei Assuero mandou que a rainha Vasti se apresentasse a ele e ela recusou-se’” (Est 1,16b-17). Manucá concluiu que todas as esposas dos príncipes persas e medos fariam da mesma forma que Vasti e ainda instruiu o rei a promulgar um decreto para que Vasti nunca mais se aproximasse dele e que ele pudesse escolher outra mulher “melhor do que ela” (1,19). O final da então “ex-rainha” não sabemos ao certo, pois não há essa informação no livro bíblico, mas é possível deduzir pela leitura que não foi nem um pouco agradável.

O texto segue dizendo que a proposta agradou o rei, que enviou cartas a todas as províncias “recordando que os maridos são os príncipes e chefes em suas casas e que devem manter submissas as suas mulheres” (1,22). Depois disto, há o longo e rigoroso processo do rei para escolha da nova rainha.

A leitura desse trecho inicial chama muito mais a atenção do que o fato de Ester, uma mulher hebreia, ter sido escolhida rainha e ter libertado o seu povo em um momento de grande perseguição.

O que vemos no início do texto é um claro exemplo de uma sociedade que se apoia somente em homens, na qual as mulheres não têm voz, não podem desfrutar de algo natural para eles. O rei deu um banquete de 180 dias para os ricos e 7 dias para os pobres e a rainha não pôde reunir algumas mulheres para também celebrar, pois este a chamou somente para ostentar para todos a beleza que ele havia conquistado. Ele queria apenas exibi-la como um objeto de posse e ela foi punida por somente dizer “não” a essa atitude.

Nos tempos atuais, encontramos pessoas que sentem como que uma necessidade de ostentar e postar, compartilhar e viralizar na internet todas as suas riquezas, seja para que outras pessoas se curvem a elas, seja almejando um respeito maior, ou ainda apenas para se sentirem superiores.

No texto sagrado, vemos a figura do rei nessa posição. Vendo que era uma desonra muito grande, ele procura um sábio que o instrui a promulgar uma lei que aumenta ainda mais a superioridade de todos os homens sobre todas as mulheres por supor que todas as outras fariam o mesmo aos seus maridos.

Com a nossa mentalidade do século XXI, diríamos que se todas as mulheres do reino fizessem o mesmo que Vasti, estariam no seu direito, pois homens e mulheres foram criados por Deus para se complementar e se ajudar, não para a superioridade de um sobre o outro. Porém, essa não é a visão do Antigo Testamento. E esse é um grande erro que se comete ao tentar utilizar o texto sagrado para explicar e justificar nossos preconceitos. Sabemos que, ao longo dos livros, vemos leis e decretos que subjugam a imagem da mulher e que foi uma grande novidade para o povo o modo como Jesus se tratou as mulheres e com elas se relacionou. Ele se aproximou de várias, tornando-as suas amigas e discípulas; conforme a tradição, sua mãe, Maria, foi uma das que esteve presente na gêneses da igreja primitiva junto com os apóstolos.

Hoje, as mulheres não são e não devem aceitar serem tratadas como artigos de exibição, objetos e caprichos para agradar os homens. Mas essa conquista não veio apenas com o passar dos tempos, ela surgiu por meio de muito suor e luta ao longo de muitos anos.

O rei sentiu-se ofendido apenas pelo fato de a rainha não ter concordado em se exibir na frente de todos para mostrar a soberania dele e, diz o texto sagrado, que foi aconselhado a encontrar uma mulher melhor, como se a mulher fosse apenas um objeto. Ele não objetificou apenas a rainha, mas a muitas outras mulheres que "foram preparadas" para estar em sua presença, inclusive Ester, a quem ele concedeu o título de rainha. Esta mesma, em determinada passagem, informou a seu tio Mardoqueu que fazia 30 dias que não era chamada à presença do rei, visto que havia uma lei que determinava a morte imediata de quem se aproximasse dele sem ter sido chamado, a menos que ele estendesse o seu cetro de ouro “salvando” essa pessoa. Ou seja, seu interesse era tão somente mostrar, ostentar a sua força. Depois de uma longa seleção entre moças virgens e formosas, como diz o texto, a campeã, Ester, nem podia desfrutar de seu privilégio aproximando-se do rei sem temer a morte.

Ao longo da história, sabemos que esse medo foi disseminado para que todas as mulheres temessem seus maridos, pais e até irmãos. Por mais que não saibamos ao certo como se deu toda a construção da narrativa do livro de Ester, podemos tomar Vasti e as outras mulheres não mencionadas como exemplo de toda a opressão imposta sobre as mulheres ao longo dos séculos.

Ester surge nesse contexto, para além daquela que vai salvar o povo judeu da morte, ela também é uma das que ousam desafiar a soberania masculina na história do Antigo Testamento, com sua inteligência e perspicácia, pois conseguiu que o rei não somente mudasse seus planos em prol de seu povo, como também mudasse, de alguma forma, a maneira como ele olhava para as mulheres, pois Vasti sofreu duras penas por ter recusado uma ordem sua, mas Ester ouviu do mesmo rei: “ainda que pedisses a metade do reino, ela te seria concedida” (Est 5,3).

Que nesse século XXI, saibamos olhar o texto sagrado com o olhar de quem tira dele o essencial para nossas vidas, sabendo que cada texto pertence ao seu tempo, para que não caiamos no “pecado do anacronismo”, que castiga tantas pessoas ainda hoje. 

 

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* Anacronismo: erro de cronologia que consiste em situar, em uma época, personalidades, acontecimentos, ideias e sentimentos ou estilos próprios de outra. Dicionário Michaelis. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/anacronismo/ Acesso em 15/10/2022.

 

Por Rosilene Souza, graduada em Letras pela Universidade Federal do Ceará e membro do grupo Mulheres da Palavra - formado por leigas do Instituto Religioso Nova Jerusalém.


segunda-feira, 25 de julho de 2022

A REVELAÇÃO NO ANTIGO TESTAMENTO

 

Não existe um termo técnico para fazer essa designação, mas ela é entendida como a intervenção de Deus na história do povo de Israel por iniciativa do próprio Deus.

Ele se revela através da sua palavra. O povo de Israel é o povo da escuta da palavra, a Palavra de YHWH. “É com sua palavra que Deus introduz progressivamente o homem ao conhecimento de seu ser íntimo, até o dom supremo de sua Palavra feita carne” (LATOURELLE; FISICHELLA,1994, p. 818).

No Antigo Testamento, vemos as etapas pelas quais a revelação foi perpassando pela história do povo. O ambiente oriental é marcado por várias expressões para adentrar o mistério dos deuses. Essas expressões, que designavam magia, adivinhação, sonhos, foram sendo purificadas e dando lugar à experiência da Palavra a partir dos profetas. Deus se revela ao seu povo, escuta seu clamor e faz uma Aliança com ele. Agora o povo pertence a Deus. Dois marcos na história do povo de Israel que confirmam essa experiência da palavra são: a libertação do Egito e a libertação do Exílio. 

A revelação é progressiva, se dá ao longo da história. Em suas etapas, encontramos a revelação aos patriarcas/matriarcas, a mosaica, a profética e a sapiencial. Cada uma com sua especificidade, mas tendo como objeto, em todas as etapas, a revelação do próprio Deus e do seu desígnio de salvação para o ser humano.

Na primeira etapa, que começa com Abraão e Sara, “a revelação divina se faz mistério de encontro pessoal do Deus vivo com o homem. Nela Deus não somente se dá a conhecer como, além de disso, chama o homem e o convida a escutar e obedecer com uma disponibilidade ativa” (AREÑAS, 2001, p. 88).

Em seguida, na aliança mosaica, se dá a experiência da revelação do nome de Deus e o evento da libertação dos hebreus do Egito. Deus faz Aliança com seu povo e lhe dá as “dez palavras”, a Lei. O povo deve servir e adorar o Deus único e verdadeiro, deve ter a sua palavra em seu íntimo nessa relação de amor e liberdade.

Com o profetismo, vem uma nova etapa da revelação. O profeta é o mediador, que escuta a Palavra de Deus e a transmite ao povo. “O profeta tem consciência de não ter procurado esta palavra, de que esta não vem dele, mas de Deus. Se recebeu esta palavra, é para transmiti-la, para torná-la pública, para anunciá-la” (LATOURELLE; FISICHELLA, 1994, p. 820). A palavra é dinâmica e vai acontecendo na história do povo. Este vai tomando consciência da intervenção divina nos acontecimentos.

Diferentemente da questão histórica e do profetismo, apresenta-se a literatura sapiencial, a qual mostra como Deus se revelou ao ser humano e como este compreende que “a sabedoria se identifica plenamente com a palavra de Deus, criadora e reveladora (Sb 7-9)” (AREÑAS, 2001, p. 92). O livro dos Salmos assume essa perspectiva, fato que interfere, a partir de então, no modo de Israel orar a Deus.

Na revelação no Antigo Testamento, vemos como característica presente a relação pessoal com o Deus vivo e verdadeiro, diferente dos ídolos. Uma relação de alguém que fala com alguém que escuta e responde. A Aliança que Deus faz com o povo garante a fidelidade divina, apesar da infidelidade humana, numa relação na qual Deus tem a iniciativa do encontro com o ser humano. Também é característica marcante o fato de a Palavra de Deus dá unidade à economia da revelação. A Palavra confronta o ser humano a tomar uma posição, quer seja de adesão quer seja de recusa.

Diante de todo esse percurso da revelação no Antigo Testamento, lembramos a sua importância para os cristãos, pois a revelação a Israel prepara e anuncia a vinda do messias. A revelação não se encerra no Antigo Testamento, mas prossegue para a Nova Aliança.

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LATOURELLE, R. – FISICHELLA, R. (Dir.). Dicionário de Teologia Fundamental. Verbete “Revelação: III – Revelação Veterotestamentária”. Petrópolis: Vozes; Aparecida: Santuário, 1994.

ARENAS, R. O. Jesus, epifania do amor do Pai. Teologia da revelação. São Paulo: Loyola, 2001.

 

Ir Edmara Ferreira de Lima é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação em biblioteconomia pela UFC, é aluna do bacharelado em teologia na Universidade Católica de Pernambuco.

 

sábado, 28 de maio de 2022

A SABEDORIA E O ENSINAMENTO ÉTICO EM ISRAEL

 


RESUMO


A literatura sapiencial é uma coleção de escritos que apresenta orientações práticas sobre diversos temas, ensina como se portar em situações variadas, comporta normas de convivência familiar, social etc. Os evangelhos alertam sobre o uso e o lugar que o dinheiro deve ter na vida do ser humano. Provocam, por exemplo, a reflexão sobre a quem se deve servir: a Deus ou ao dinheiro? (Mt 6,24). Para responder a essa questão, buscar-se-á, na literatura sapiencial, os antecedentes da perspectiva evangélica. Desse modo, a proposta deste trabalho é revisitar alguns textos presentes nos livros sapienciais de Provérbios, Qohelet e Sirácida em uma busca por orientações práticas sobre a utilização dos bens e a valorização das pessoas em relação à sua posse. Geralmente, se analisa a situação social dos membros do povo de Israel no Antigo Testamento e a atuação dos profetas como a consciência crítica da sociedade israelita. Pretende-se, portanto, ouvir os sábios de Israel e demonstrar que seu ensinamento sobre a situação do pobre e do rico, sobre as desigualdades sociais e sobre o uso correto dos bens chegou ao movimento de Jesus e pode colaborar com a formação dos homens e mulheres dos tempos atuais.

 

PALAVRAS-CHAVE: Sábio. Sabedoria. Bens. Pobres. Ricos.

 

Introdução


O termo “sabedoria” é a tradução do hebraico Hokmah e tem vários significados: destreza, habilidade, perícia, sagacidade, talento, sensatez, prudência, juízo, razão. A palavra “sábio”, por sua vez, traduz o termo hebraico hakam, remetendo a alguém capaz de discernir a ordem que rege o mundo natural e as relações sociais, na busca pela verdadeira felicidade, o viver bem.

A sabedoria era transmitida no âmbito familiar, dos pais aos filhos, desde os tempos mais antigos (Pr 4,1-5). Com a instauração da monarquia, a sabedoria migrou do clã e adentrou a corte. Surgiu então a função do escriba, que tinha como principal atividade documentar acontecimentos do reino, cuidar da contabilidade, preparar os futuros escribas e educar os jovens aristocratas que trabalharão nos serviços burocráticos da realeza (CERESKO, 2004, p. 25). Nesse período da monarquia, serão compiladas as tradições relativas à sabedoria, processo que teve início com o reinado de Davi, consolidando-se com Salomão e que atingiu seu cume no período pós-exílico,

A forma literária característica dos escritos sapienciais é o gênero provérbios, tradução do termo hebraico mashal, que comporta uma variedade de significados, como: comparação, ditos, palavra poderosa, enigma, fábula etc. Todos eles buscam uma compreensão da situação apresentada por meio da comparação ou analogia (CERESKO, 2004, p. 41). São ensinamentos profundos transmitidos de maneira sintética e instigante.

A sabedoria, até então circunscrita à tradição oral, passa a compor obras escritas que servirão de guia para a formação dos futuros escribas e dos jovens aristocratas. Tais obras reúnem as tradições recolhidas em Israel, como também tradições sapienciais das nações vizinhas de Israel. No livro dos Provérbios, temos a contribuição direta, através de ditos, dos sábios estrangeiros. Podemos afirmar que Israel bebeu da fonte comum da sabedoria do mundo oriental.

A reflexão sobre a sabedoria foi relida dentro da fé de Israel, não se limitando a uma observação das leis e à busca pelo princípio ordenador do cosmo. Os seus representantes aplicaram-lhe um princípio de fé, o temor do Senhor. O verdadeiro sábio é aquele que busca a Deus através da observância da Torá[1]. O sábio é aquele que procura discernir e se ajustar à vontade de Deus presente nos ensinamentos de sua Palavra. Segundo Ceresko, o escriba-sábio reivindicava uma autoridade igual à do sacerdote e do profeta na revelação da vontade e da palavra divina (CERESKO, 2004, p. 28.).

O escriba-sábio era um funcionário da corte, exercia suas funções de forma a agradar seus chefes, os poderosos da realeza. Apesar disso, estava inserido em uma tradição de fé marcada pela ação libertadora de Javé, numa preocupação constante pela justiça e dignidade do seu povo. Por isso, vemos emergir, nos escritos sapienciais, temas ligados à justiça social, relações trabalhistas justas, preocupação com os pobres e com a aquisição, o uso e o acúmulo dos bens.

   

1. Literatura Sapiencial


Os livros sapienciais apresentam reflexões sobre temas diversos e relevantes para o povo em seu cotidiano, pois disso se ocupava a sabedoria em Israel. A sabedoria era um tema corrente na literatura do Mundo Antigo. No Oriente, desde o Egito até a Mesopotâmia, encontramos reflexões acerca desse assunto. O verdadeiro sábio é aquele que conhece a arte do bem viver e a repassa para os seus contemporâneos. Essa arte advém da observação da natureza e da descoberta da ordem natural que rege a criação, perpassada por grandes mistérios. O sábio é alguém que tem conhecimento prático das questões importantes da vida, tem uma longa experiência e tem a preocupação de transmiti-la aos mais jovens.

A sabedoria era um atributo exigido principalmente aos reis, na arte de governar. Por isso, temos na história de Israel a figura de Salomão, conhecido como o rei sábio por excelência. Além de serem sábios, os reis deveriam cercar-se de conselheiros sábios que os ajudassem a governar com justiça, retidão e, acima de tudo, sabedoria.

Para Asensio, é possível falar de escolas em Israel pelo menos a partir do séc.II, pois no Sirácida temos uma menção explícita em 51,23: “Aproximais-vos de mim ignorantes, entrai para a escola” (1994, p. 60). Vejamos agora como essa sabedoria vai atuar na construção de uma formação ética da população de Israel por meio dos ensinamentos dos sábios recolhidos pela Literatura sapiencial.

 

2. A literatura sapiencial e a questão dos bens em Israel


A Literatura sapiencial compreende os livros chamados sapienciais: Jó, Provérbios, Qohelet, Sirácida e Sabedoria, e os livros poéticos: Salmos, Cântico dos Cânticos. Em nosso trabalho, priorizamos Provérbios, Eclesiastes e Sirácida, por encontrarmos neles certa sistematização ética. Acompanhemos, portanto, como o conhecimento da sabedoria foi transmitido através dos Livros Sapienciais, Provérbios, Qohelet ou Eclesiastes e Sirácida ou Eclesiástico, sobretudo, a forma como eles tratam os temas relacionados ao dinheiro.

Partimos do pressuposto de que nesses livros os escribas-sábios estavam transmitindo a tradição sapiencial de Israel e das nações vizinhas. Através deles, ensinavam aos jovens aristocratas a maneira correta de se portar em diversas situações, das mais simples às mais complexas. Um dado importante é que essa formação em preparação para os cargos futuros não estava restrita a temas administrativos, jurídicos e militares, mas comportava uma profunda solidificação das tradições religiosas de Israel.

Antes de exercer qualquer função, um membro do povo de Deus, não podia nunca esquecer que pertencia ao povo escolhido, com o qual Deus fez Aliança. Portanto, todo comportamento está subordinado aos mandamentos de Deus, suas orientações práticas contidas nos códigos legislativos: Decálogo (Ex 20,1-21; Dt 5,1-22), Código da Aliança (Ex 19,22–23,19), Código Deuteronômico (Dt 12–26) e Código de Santidade (Lv 17–26). Tais normas e prescrições regem todas as áreas da vida de um israelita: relações familiares, matrimoniais, comerciais, escravos, dívidas, sacrifícios, divórcio, propriedades, herança etc.

 

2.1. Provérbios


À primeira vista, parece que nos encontramos em meio ao caos, com a repetição de temas nas várias coleções de provérbios reunidas na obra. Em meio a tanta desordem, o compilador dos Provérbios tenta organizar essa confusão, ordenando a vida com orientações práticas.

Através dos ditos e instruções, os jovens discípulos aprendem por meio de uma pedagogia libertadora a discernir as fontes do sofrimento e da infelicidade humana (CERESKO, 2004, p. 58). O melhor caminho para alcançar a felicidade é a sabedoria, ela é melhor que ouro e prata e adquiri-la deve ser o objetivo de vida dos jovens (16,16; 3,13s; 8,1-21). A sabedoria é o bem mais precioso e necessário que o jovem deve almejar. Ele não deve se preocupar em acumular riquezas desonestas (13,11; 15,16s; 21,6s). E a melhor maneira de fortalecer o caráter dos discípulos é reafirmar os valores dos laços familiares, o respeito aos pais e suas tradições (19,26).

O livro nos oferece um trecho que define bem o comportamento a ser adotado em toda e qualquer circunstância: o pedido a Deus pelo equilíbrio:

 

Duas coisas eu te pedi; não mas negues antes de eu morrer: afasta de mim a mentira; não me dês nem riqueza e nem pobreza, concede-me o meu pedaço de pão; não seja eu saciado, e te renegue, dizendo: “Quem é Iahweh?” Não seja eu necessitado e roube e blasfeme o nome de meu Deus (30,7-9).

 

Esse programa de vida fundamenta-se em ter somente o essencial, nem mais nem menos. Adotar essa postura em relação aos bens traz consequências diretas em todos os aspectos da existência do discípulo, tem incidências em todas as suas relações. Ele não se define pela quantidade de bens que possui, não está subjugado pelo ter. Nas relações interpessoais, não há, nem deve haver, uma objetivação do ser humano para alcançar poder, status, dinheiro etc.

Não há uma preocupação com o acúmulo, pois, deve-se ter o necessário para a sobrevivência, quanto à utilização dos bens, eles estão a serviço do bem individual e coletivo (11,24.28; 21,6s). Pode-se, então, olhar o outro, especialmente o pobre, com compaixão, atenção às suas necessidades, percebendo seus sofrimentos e tentando minorá-los (14,21.31).

 

2.2. Qohelet

Esse não é um nome e sim um título, quer dizer aquele que reúne, tanto pessoas a seu redor como ditos, obras. É um livro bastante intrigante, que já foi acusado de ser um tratado pessimista e, anacronicamente, até chamado de niilista. O autor parece derrubar todas as bases de sustentação da vida do povo, um chamado à reflexão das coisas que são verdadeiramente importantes na existência humana. Essa obra é provavelmente do período pós-exílico, durante a dominação lágida[2] sobre o povo de Deus. Para Ceresko, o autor responde às crises econômica, religiosa e política, como pastor compassivo orientando os seus compatriotas a um rigoroso ascetismo (2004, p. 102). Por outro lado, ataca os fundamentos da chamada “sabedoria” dos opressores.

Como Provérbios, Qohelet também ensina o desapego aos bens terrestres. Para ele, tudo é vaidade, a palavra hebraica hebel, aqui traduzida por “vaidade” significa sopro, fumaça. Na poesia hebraica, ela está associada à fragilidade humana, ao transitório, passageiro. Tudo aquilo em que o ser humano se firma esvai-se no ar, ao sabor do vento. Ele submete os alicerces da felicidade humana ao crivo da transitoriedade, põe tudo abaixo, destrói todas as certezas. Tudo é vão, é vazio e sem sentido. O trabalho, obra das mãos humanas também se mostra inconsistente, não conduz o indivíduo a felicidade. As riquezas advindas desse trabalho também não proporcionam realização plena. A própria sabedoria é colocada à prova. Em que consiste a felicidade, comer e beber? O que nos restará ainda nessa aventura inglória que é a vida humana?

Qohelet nos oferece algumas pistas. O sábio caminha de olhos abertos, caminha na luz, não anda nas trevas (2,13s). Tem a capacidade de trilhar os caminhos da justiça, da retidão, reconhecendo a centralidade da opção por Deus e suas consequências (12,13). A verdadeira felicidade consiste em reconhecer a bondade de Deus, recebendo dele o necessário para viver com tranquilidade e harmonia através da sabedoria, do conhecimento e da alegria (2,26; 9,7ss).

O autor observa a opressão, praticada pelos ricos, aos pobres, a quem não há quem console. Ele valoriza a solidariedade, o companheirismo para ajudar a suportar as agruras do existir (4,9-12). Em vários momentos, Qohelet alerta-nos sobre a incoerência da existência humana e propõe uma sátira ao dinheiro que não garante nenhuma segurança em nossa trajetória terrena. A vida constitui-se em um grande e insondável mistério, ao qual devemos inclinar-nos em adoração diante do Criador: “Lembra-te do teu criador nos dias da tua mocidade, (...) antes que o pó volte à terra de onde veio e o sopro volte a Deus que o concedeu” (12,1.6s).

 

2.3. Sirácida


No Sirácida, nós nos encontramos diante de uma monumental obra da literatura sapiencial, única no Antigo Testamento a trazer a assinatura do seu autor, Jesus Ben Sira (51,30). Foi traduzida para o grego, pelo seu neto, com o intuito de difundir os ensinamentos do avô. O Sirácida viveu durante o período da dominação grega do território de Israel. Os judeus eram pressionados, em princípio de forma sutil e depois de maneira mais veemente, a adotar os costumes da cultura grega. É dentro dessa situação que devemos situar esse livro. O autor está dialogando com a cultura grega, ao mesmo tempo em que mostra aos seus compatriotas o valor de sua própria cultura enraizada na experiência de fé do seu povo.

Estamos mais uma vez diante de um panorama de dominação e opressão por parte de nações estrangeiras, é necessário fortalecer as relações familiares, mostrar aos jovens os verdadeiros valores humanos. É possível que o autor tenha tido acesso ao livro dos Provérbios, ele ampliou e deu aos ditos uma melhor ordenação em vistas a um ensinamento mais aprofundado e didático. O livro inicia propondo o verdadeiro princípio da sabedoria que é o temor do Senhor e principia um itinerário de conselhos práticos para vida cotidiana, são conselhos sobre família, amizade e oração (CERESKO, 2004, p. 135).

Numa cultura que incentivava o acúmulo de riquezas, o autor valoriza a amizade como um tesouro de valor incalculável. Insiste na compaixão aos pobres e na obrigação de ajudá-los (29,22s; 31,4). Para o Sirácida, a honra de um homem, não está em seus bens, o motivo de um homem ser honrado é o temor do Senhor (10,19-24). O rico é louvado por suas atitudes para com os necessitados (31,8-10), é criticado por sua avareza, por possuir bens e não usufruir deles, guardá-los para que outros se regalem é fazer o mal a si mesmo. O autor adverte aos seus discípulos sobre o valor da caridade para com os pobres, orienta-os a não desviar o olhar de suas necessidades, a não negar o cumprimento ao pobre (4,1-10).

Lembrando que o Sirácida está instruindo os jovens da classe abastada, recordando-lhes que cuidar dos desvalidos é ser considerado filho de Deus. Ao insistir sobre a importância da esmola, defende que dá-las é acumular um tesouro junto de Deus (29,8-13). Numa época em que muitos sofriam com a expropriação de seus bens, endividados e sem ter como se desvencilhar, perdem suas terras, tendo que entregar seus filhos e filhas à escravidão. O autor incentiva seus irmãos a socorrer, por meio do empréstimo, a esses desafortunados (29,1-7). Ele também valoriza aqueles que oferecem fiança (29,14-20). Todas essas orientações visam ajudar seus compatriotas a saírem da situação de penúria em que muitos se encontravam. Essas instruções revelam que valores devem ser cultivados pelo povo de Israel: solidariedade, respeito e auxílio aos pobres em suas dificuldades. A riqueza não é um bem em si, antes, deve estar a serviço da restituição da dignidade aos oprimidos e desfavorecidos.

 

Considerações finais


Nosso objetivo ao abordar os ensinamentos éticos presentes na literatura sapiencial, especificamente em Provérbios, Qohelet e Sirácida era perceber que a preocupação com o bem-estar de cada membro do povo de Israel, em todas as dimensões da sua existência, não era uma atribuição exclusiva dos profetas. Todas as correntes religiosas que atuaram na história de Israel tiveram uma preocupação ética. Isso se deve à sua experiência fundante, a libertação da escravidão do Egito e a Aliança firmada entre Deus e o povo no Sinai. O Deus que livrou Israel das mãos dos opressores não permite que seu povo retorne à escravidão.

Ser livre significa ter sua dignidade humana assegurada, não se deixar explorar, nem pelos estrangeiros, nem pelos compatriotas; não se deixar escravizar pelos bens, mas utilizá-los de modo que eles sejam instrumento de libertação para si e para os seus irmãos de fé. Significa ser senhor dos bens e não escravo deles, como orienta Jesus nos Evangelhos. Por isso, todos os dias o Senhor nos pergunta: onde está o teu irmão? Como você tem cuidado dele? Qual o bem mais precioso que possuis? Qual o bem maior da tua vida? Com o quê ou com quem você gasta ou investe seu tempo? O que é mais importante ter um Bem ou acumular bens? Eram essas as perguntas que perpassaram todas as orientações contidas nos escritos que examinamos.

 

Referências

ASENSIO, V. M. Libros sapienciales y otros escritos.  Navarra: Editorial Verbo Divino, 1994.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2000.

CERESKO, A. A sabedoria no Antigo Testamento: espiritualidade libertadora. Tradução Adail Ubirajara Sobral, Maria Stela Gonçalves, São Paulo: Paulinas, 2004 (Coleção Bíblia e Sociologia)

ZIENER, G. A Sabedoria do Oriente Antigo como Ciência da vida. Nova compreensão e crítica de Israel à sabedoria. In.: SCHREINER, J. Palavra e Mensagem do Antigo Testamento. 2ed. São Paulo: Teológica, 2004. p.333-349.

ZENGER, E. O. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2003.



[1] Torá é como se nomeia o conjunto de livros que formam o Pentateuco (Gn, Ex, Lv, Nm e Dt) na Bíblia Hebraica, pode também denominar as escrituras consideradas sagradas pelo povo de Israel, o Antigo Testamento para os cristãos.

[2] Dominação grega que governou no Egito e também na Palestina no séc.III, eles infringiam ao povo uma exploração econômica por meio de impostos cobrados anualmente em somas fixas pagas em moeda corrente.


Ir. Luciene Lima Gonçalves, membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, é doutoranda em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020).  É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007). E-mail: lucienelima324@gmail.com