domingo, 29 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NA 4 (final)

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

Agora, nos propomos a estudar a maneira como Mateus utilizou as fontes veterotestamentária para inserir a parábola dos Vinhateiros dentro de seu projeto teológico e, mais especificamente, dentro do tema da rejeição/aceitação presente no bloco literário (Mt 21,23–22,14). Para tanto, faremos uma abordagem semântica de alguns termos:

- VINHA [11]
Tanto Is 5,2, quanto Mc 12,1 e Mt 21,33 atestam os cuidados que o Amado (Mc diz que é um homem, Mt afirma que é um homem chefe de casa) teve com a vinha: preparou a terra (Is); protegeu-a contra animais selvagens cercando-a com uma sebe (Mc e Mt); evitou que as uvas se estragassem, cavando um lagar (Is, Mc e Mt); e deu-lhe proteção permanente com vigias, construindo uma torre (Is, Mc e Mt). Esses cuidados fizeram dela uma “vinha preciosa” (Jr 2,21). Contudo a vinha não correspondeu às expectativas de seu proprietário. Para Isaias, a vinha é Israel e Judá (Is 5,7). Que expectativas não foram correspondidas? O exercício da justiça e do direito (Is) e a acolhida dos enviados (Mc, Mt e Lc).

No texto de Is 5,1-7, o profeta afirma que o Amado (v. 1b-2), identificado com o Senhor dos Exércitos (5,7), convoca os moradores de Jerusalém para julgar a sua vinha (5,3) [12]. O proprietário faz duas perguntas: a primeira, sobre suas atividades e a segunda, sobre a produção da vinha (5,4). Ele mesmo deu a sentença, anunciando o que fará, e suas atividades destrutivas (Is 5,5-6) serão o oposto dos cuidados iniciais (5,2). O ápice é o v. 7 no qual o profeta contrasta as expectativas positivas de Deus e as atividades do povo.

Mateus é, entre os sinóticos, quem melhor enfatiza o julgamento dos Vinhateiros, pois na versão mateana, os próprios interlocutores responderam à questão posta por Jesus: eles declararam que os vinhateiros eram vilões e mereciam morrer.

Além disso, com a sentença de Jesus, eles reconheceram, na parábola, a história de seu conflito com o Nazareno. A parábola é chave interpretativa para uma a história de desobediência à vontade de Deus, cujo clímax se mostra agora na rejeição ao Filho.

- FRUTOS [13]
A expressão produzir frutos (Mt 21,43) não aparece ingenuamente nesse versículo, mas é uma descrição do comportamento correto, e faz elo com Is 5,2.4b, quando por três vezes se diz que o Amado esperava a produção de uvas boas, mas a vinha produziu uvas amargas, bravas. Essa orientação ética seria um desenvolvimento do comportamento destacado em Is 5,7: esperava-se o direito e a justiça e em contraposição foi produzido transgressão e clamor. O texto de Mt 21,41 insinua que os frutos não foram entregues ao dono da Vinha. E por fim, Mt 21, 43 afirma que a vinha não produziu frutos quando estava com os arrendatários.

Em Mateus ainda temos duas diferenças em relação a Marcos: (a) a totalidade (Mt 21,34), e não uma parte (Mc 12,2) dos frutos, deve ser dada ao proprietário; (b) o filho foi morto fora (Mt 21,39; cf. Hb 13,12; Jo 19,20b; Lv 21,14-16) e não dentro da vinha (Mc 12,8).

- ETHNOS
A expressão “um éthnos que produza os frutos dele” (Mt 21,43) aparece apenas em Mateus. Conforme os estudos de Saldarini [14], o termo éthnos significa bando, classe, nação, gente, pessoas que vivem juntas, companhia militar, grupo de camaradas, província, associação mercantil e os outros em oposição ao nosso grupo.

A maioria das edições da bíblia em português traduz o grego éthnos pelo termo nação. Partindo desse tipo de tradução, muitos concluem que Israel foi substituído por outra nação, a Igreja gentílica. Contudo, esse tipo de interpretação traz alguns problemas. Em primeiro lugar, os cristãos não podem ser considerados como nação. Também “não há nenhuma menção implícita ou explícita aos gentios”. E quem rejeita o herdeiro não é a vinha (Israel), mas os vinhateiros, os líderes que “repudiam e matam continuamente os profetas e também conspiram para matar o Filho”[15].

A interpretação mais correta é que o grupo rejeitado na parábola seja o dos principais sacerdotes e anciãos do povo. Estes são reprovados porque não agem segundo a vontade de Deus para que a vinha produza frutos. A parábola pressupõe que a vinha é fecunda, mas os vinhateiros se apropriam indevidamente dos frutos em vez de entregar a produção ao proprietário. A vinha (Israel) foi mal administrada e tem que passar para outros administradores [16].

O grupo que produz frutos é a Comunidade dos seguidores de Jesus, principalmente aquela da qual Mateus faz parte e que é composta, em sua maioria, de judeu-cristãos. O grupo que produz frutos é um subgrupo que faz parte da vinha (Israel). “A vinha, Israel, permanece a mesma; subgrupos dentro de Israel são acusados ou louvados... a parábola dos vinhateiros é uma crítica aos líderes de Israel e não a Israel” [17].

- PEDRA
Em Mt 21,42 temos a citação do Sl 118, 22-23. Esse salmo[18] foi composto para ser cantado na solene liturgia de ação de graças que terminava com a entrada no Templo, na festa das Tendas. Essa festa destacava a reconstrução de Jerusalém (Ne 8,13-18; 12,27-43) e comparava Israel a uma pedra que as nações tinham rejeitado e que Deus a utilizava para a construção de seu Reino. Agora que os líderes do povo de Israel rejeitavam o enviado de Deus, Jesus mesmo é a pedra rejeitada e por isso se torna escândalo, palavra grega que significa “pedra que faz tropeçar”. Dessa forma, podemos entender essa afirmação “todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços” (Mt 21,44a).

Mas também é dito que “aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó” (Mt 21,44b). Para compreender melhor essa afirmação é necessário recorrer a Dn 2,44-45. Nesse texto de Daniel, o sábio identifica a pedra que desce do monte, no sonho de Nabucodonosor, com um reino suscitado por Deus que jamais será destruído e que esmagará os demais reinos [19]. O Reino dos Céus, inaugurado por Jesus, é a pedra que cai sobre aqueles que rejeitam o enviado de Deus.

- REINO
O texto de Mt 21,43, com a afirmação “vos será tirado o Reino de Deus e será dado a outro grupo (éthnos) que produza frutos”, parece contrário a Dn 2,44: “um reino que jamais passará a outro povo (LXX: éthnos)”. Contudo, essa contradição não passa de um problema de tradução.

O Reino significa a soberania da vontade de Deus sobre o ser humano inserido em estruturas históricas, sociais, políticas, econômicas, culturais, etc. Portanto, isto não depende da pertença a uma etnia. Por isso, o Reino é dado a quem produz frutos de justiça, seja judeu ou gentio. Para a comunidade de Mateus, Jesus é a autobasileia, ou personificação do Reino, pois na vida dele a vontade de Deus foi sempre soberana. Não acolher o dom que é Jesus significa rejeitar a pedra angular do Reino[20].

A autoridade dos interlocutores de Jesus nesse texto de Mateus foi subtraída porque: (1) não acolheram os mensageiros de Deus, (2) não produziram frutos de justiça para Deus e (3) rejeitaram a autobasileia, Jesus. Perderam a autoridade sobre o povo “por causa de seu mau procedimento” e foram substituídos pelos líderes da comunidade de Mateus, “um grupo (éthnos) de líderes que ouve Deus e pode guiar corretamente ‘as ovelhas perdidas da casa de Israel’ (10,6)”[21]. Então, trata-se de uma justificação da autoridade da comunidade de Mateus perante a autoridade dos fariseus e não de uma rejeição de Israel por parte Deus. A comunidade de Mateus necessita justificar para os fariseus a autoridade que está reclamando para si mesma. Isto porque nessa época eram os fariseus as autoridades constituídas sobre o povo.

CONCLUSÃO
A Palavra nos exorta sobre algo que aconteceu com os fariseus da época de Mateus e que pode se repetir, tanto na História da Igreja, quanto na consciência de cada cristão: a rejeição aos enviados de Deus e à sua vontade soberana. A eleição por parte de Deus exige uma resposta pessoal e um engajamento de vida, é importante que a pregação provoque um julgamento da Assembléia sobre si mesma, como aconteceu na parábola.

É necessário também que se destaque um aspecto fundamental, isto é, que uma Igreja acomodada é uma figueira sem frutos (Mt 21,19) de justiça. Novos problemas exigem novas acentuações da fé, como fez a Igreja de Mateus, e a novidade da resposta, a tais problemas, pode trazer confrontos e desconfianças entre estruturas hierárquicas antigas e novas.

Acima de tudo é necessários permanecer fiel e perseverante. Estar consciente que a rejeição a Deus é um processo gradual que culmina sempre na Cruz, ontem e hoje. E que se rejeitamos Deus é porque sua vontade não corresponde aos nossos esquemas sempre forjadores de ídolos silenciadores de nossa consciência pecaminosa.

Enquanto houver acusações mútuas embasadas numa hermenêutica anti-semita dos textos bíblicos não será possível uma verdadeira manifestação de amor como pede a NA 4. Depois de 40 anos dessa Declaração do Concílio Vaticano II poucos passos foram dados para um abraço honesto entre judeus e cristãos. Muitas vezes por falta de uma boa tradução da Escritura. Outras vezes porque a dureza de coração impede de se reconhecer no outro um enviado de Deus.

Oremos para que Deus nos livre de fundamentar na Escritura uma atitude de anulação de nosso semelhante como pressuposto para afirmação de nós mesmo:

Onde está o clamor, onde estão as lágrimas
que eu deveria derramar na presença de Deus?


Eu nunca produzi senão frutos de morte,
porque não me enxertei em vós, Senhor!...
grandeza incomensurável!...


De onde trazes, ó árvore, estes frutos de vida,
sendo por ti mesma estéril e morta?


Da mesma árvore da vida o trazes!


Pois se não estivesses enxertada nela,
nenhum fruto poderias produzir por virtude tua,
porque nada és.

Catarina de Sena [22]

______________
[11] Os principais textos do AT que identificam Israel com a vinha são: Sl 80, 9-17; Is 5,1-7; Os 10,1; Ez 19,10-14.
[12] WEREN, W.J.C. “The Use of Is 5, 1-7 in the Parable of the Tenants (Mark 12,1-12; Matthew 21,33-46)”, Biblica 79 (1998) 1-26.
[13] No AT e no NT o termo “frutos” significa “obras”, “práxis que agrada a Deus”.
[14] SALDARINI, A. J. A Comunidade judaico-cristã de Mateus, São Paulo: Paulinas, 2000, p. 104-112.
[15] Ibidem, p. 105, notas 58 e 59.
[16] Este sentido também é comum ao episódio da figueira (Mt 21,18-19). Jesus esperou encontrar frutos e decepcionou-se. Os líderes do povo, daquela geração, não fizeram as obras que agradam a Deus.
[17] Ibidem, p. 109.
[18] Na opinião de alguns estudiosos, a citação do Salmo 118, 22-23 na parábola dos Vinhateiros é uma acréscimo redacional em Mc 12,10 // Mt 21,42 // Lc 20,17. Mas se for assim, a parábola perde sua chave eclesiológica, ou seja, não se refere em nada à comunidade cristã. Cf. CIPRIANI, S. “Significato Cristologico o anche Eclesiologico nella Citazione del Salmo 118,22-23 al Termine della Parabola dei Vignaiolli Omicidi”, Asprenas 26/3 (1979) 235-249.
[19] Veja a expressão: “aquele sobre quem ela [a pedra] cair será reduzido a pó” (Mt 21,44b//Lc 20,18b). Mc fala apenas da pedra rejeitada (Cristo) pelos construtores.
[20] RODRÍGUES CARMONA, Evangelio de Mateo, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2006, p. 190.
[21] SALDARINI, op. cit., p. 112.
[22] Preghiere ed Elevazioni, Roma: Ferrari, 1920, p. 113.


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

quinta-feira, 19 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NOSTRA AETATE 4 (continuação)

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

O contexto literário da parábola dos vinhateiros

Antes de iniciarmos o estudo sobre o conflito de Jesus com a sinagoga, tomando como referência a parábola dos vinhateiros, consideramos o bloco narrativo de Mt 21,23 – 22,14 no qual esta se encontra
inserida.

Em Mt 21,23 encontramos a pergunta dirigida a Jesus pelos principais sacerdotes e anciãos do povo [6] sobre a legitimidade de sua autoridade em relação ao episódio no Templo de Jerusalém (Mt 21,12-17). Mas, em vez de responder-lhes, Jesus endereça-lhes uma contra pergunta sobre a origem do batismo de João (Mt 21,25). A resposta dos principais sacerdotes e anciãos significa uma confissão de recusa em aderir à proposta João Batista e como não atenderam ao apelo do Profeta, não puderam compreender a missão de Jesus. Então, o tema destacado até aqui é que os principais sacerdotes e anciãos do povo – grupo que rejeitou os dois enviados de Deus – perderam a autoridade de cobrar explicações de Jesus sobre sua atitude no Templo de Jerusalém.

O texto imediatamente posterior a essa controvérsia é a parábola dos Dois Filhos (Mt 21,28-31).Através desta o evangelista insiste em mostrar que os principais sacerdotes e anciãos de Jerusalém não cumpriram o chamado do Senhor, não mudaram de atitude nem pelo testemunho de João Batista, nem quando viram os pecadores se converterem (Mt 21,31-32). Esse bloco narrativo aponta, então, para uma transferência no exercício da autoridade: dos líderes do povo que recusaram o enviado de Deus, Jesus, para aqueles que o acolhem.

A rejeição/aceitação de Jesus é a unidade temática de Mt 21,23 – 22,14. Esse tema permanece nas narrativas posteriores à parábola dos Vinhateiros. No texto da fonte Q [7] (Mt 22,2-3. 5.8-10//Lc 14,16-24) há uma parábola com os seguintes elementos comuns: um anfitrião (Lc: um homem, Mt: um rei) convidou seus concidadãos para um festim (Mt: núpcias do filho), os convidados não lhe deram atenção, o anfitrião ofendido os substituiu por outros (Lc: pobres e marginalizados; Mt: maus e bons). O tema dessa parábola é o mesmo dos textos anteriores no capítulo 21, os líderes do povo foram desatenciosos, enquanto os gentios e os míseros, os “maus e bons”, aceitaram o convite.

O texto de Mt 21,33-46

Passando a considerar o texto que nos propomos estudar, notamos que a narrativa sobre os Vinhateiros pertence aos três evangelhos sinóticos. É relatada por Lucas (20,9-19) de forma mais simples que nos outros evangelhos. Refere-se três vezes ao envio de um servo, depois disso é a vez do filho. Marcos (12,1-12) menciona três envios de um servo a cada vez sendo que a violência com que são tratados aumenta progressivamente, depois se fala de muitos outros emissários, dos quais alguns foram golpeados e outros mortos.

Para Carmona[8], o texto sobre os vinhateiros é mais uma alegoria que uma parábola, na qual cada elemento da narrativa tem um significado: o proprietário é Deus, a vinha é Israel (o povo escolhido), os servos são os profetas enviados ao longo da história, o herdeiro é Jesus (cume da Revelação e morto fora dos muros de Jerusalém), os vinhateiros são os líderes do povo que rejeitaram Jesus e merecem que a vinha lhes seja tirada e dada a quem entregue os frutos a seu tempo (Sl 1,3).

No evangelho apócrifo de Tomé[9], log. 65, temos o seguinte texto:
Disse Jesus: Um homem de bem possuía uma vinha. Arrendou-a para alguns trabalhadores para que a cultivassem e, no tempo da vindima, lhe dessem as uvas. Mandou seu servo para que recebesse dos agricultores o fruto da vinha. Estes agarraram o servo e o espancaram: pouco faltou para que o matassem. O servo foi contar ao senhor o que tinha acontecido. Este pensou: eles,talvez, não o tenham reconhecido. E mandou outro servo. Os agricultores voltaram a espancá-lo. Então, o Senhor mandou o próprio filho, dizendo: ao menos, hão de respeitá-lo. Ao saberem que se tratava do herdeiro da vinha, os agricultores agarram-no e o mataram. Quem tem ouvidos, ouça!
Podemos supor que talvez o apócrifo tenha conhecido a forma mais primitiva e original[10] da parábola e que os evangelhos canônicos, em vista do projeto teológico de cada autor, tenham acrescentado alguns pormenores e explicações.


No texto de Mateus fala-se de duas missões em que os servos são espancados, mortos e apedrejados. A terceira missão é a do filho. Isso significa que a pregação de cada evangelista privilegiou alguns aspectos em detrimento de outros.

(continua)
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[6] Conselho de líderes do povo.
[7] Fonte comum a Mt e Lc.
[8] RODRÍGUES CARMONA, A. Evangelio de Mateo, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2006, p. 190.
[9] ROHDEN, H. (trad). O quinto Evangelho: a mensagem de Cristo segundo Tomé, São Paulo: Alvorada (s.d).
[10] SNODGRASS, K. R. “The Parable of the Wicked Husbandmen. Is the Gospel of Thomas Version the Original?”, New Testament Studies 21 (1975), 142-144.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NOSTRA AETATE 4 [1]

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

Publicado em Convergência (CRB), Rio de Janeiro, v. 44, n. 420, p. 215-225, 2009.

No tempo em que Mateus redigia o evangelho estava acontecendo uma forte tensão entre os seguidores de Jesus e a Sinagoga. A destruição do Templo de Jerusalém deu início ao chamado judaísmo formativo, com o fim da pluralidade dos grupos religiosos judaicos e a tentativa de certa uniformidade na interpretação das Escrituras. Conseqüência disso foi o estabelecimento da autoridade dos rabinos (Mestres da Torah) em substituição ao Sinédrio. Isso significava uma supremacia do antigo grupo dos fariseus sobre o povo judeu [2].

Nessa tensão entre o grupo dos seguidores de Jesus e a Sinagoga, a comunidade de Mateus sentia-se como “ovelhas entre lobos” (Mt 10,16), até mesmo os familiares dos cristãos os colocavam em situações desagradáveis (Mt 10,21-24.34-36). Talvez os seguidores do Caminho[3] já tivessem sido expulsos da sinagoga (Mt 10,17) e eram acusados de não seguir as “tradições dos antigos” (Mt 15,2). Tudo isso fazia com que os cristãos se sentissem cansados e tentados a abandonar a fé (Mt 24,9s).

Para mostrar a seus contemporâneos que não deviam inquietar-se com os fariseus, Mateus escreveu as controvérsias entre Jesus e os líderes religiosos de Jerusalém. Dessa forma, exortava a comunidade a não imitar o modo de ser dos adversários, ou seja, a evitar todo rigor exagerado com Lei e também a não ambicionar nenhum privilégio ou poder (Mt 18,1-35)[4]. Os cristãos deveriam assumir o modo de ser de Jesus, refazendo o caminho do Messias e atualizando a missão do Mestre até que ele venha. A maneira de viver de Jesus é, pois, a condição e o critério para ser discípulo, como Mateus fez questão de mostrar (especialmente em 6,19–7,23 e 16,24-28).

As Parábolas em Mateus

Para exemplificar como deve ser um verdadeiro discípulo do Reino, Mateus narra as Parábolas de Jesus. Dessa forma, o seguidor do Messias terá claro o critério sob o qual deve pautar sua vida.

O verbo grego parabállo denota a idéia de “lançar ao longo de” ou “por junto a si”. O substantivo parábola quer traduzir o termo hebraico mashal, que reagrupa grande variedade de formas literárias como a sentença sapiencial, o enigma e outras. Todas elas têm como objetivo exprimir uma verdade através da linguagem figurada, método utilizado, principalmente pelos mestres orientais, para transmitir uma mensagem predispondo o ouvinte para a reflexão.

Desde os tempos da Igreja primitiva, denominou-se “parábolas” aqueles ensinamentos de Jesus, em linguagem figurada, que falavam a respeito de verdades espirituais profundas, a partir de exemplos tirados da natureza ou da vida social, econômica e religiosa de seu tempo. Dessa forma, Jesus provocava seus contemporâneos a descobrirem o dinamismo do Reino de Deus e os orientava a viver de acordo com o projeto salvífico do Pai.

Não podemos, hoje, recriar a situação histórica na qual uma parábola foi contada por Jesus, pois os evangelistas criaram diversos contextos literários para a mesma parábola tendo em vista o projeto teológico específico de cada um [5]. Cada contexto literário, entretanto, respeitou o propósito original de Jesus ao contá-las. Dessa forma, a mensagem das parábolas nos Evangelhos passa a servir de critério de avaliação para a práxis dos leitores em quaisquer tempos e lugares.

A narrativa de Mt afirma que Jesus falou muitas coisas em parábolas (13,3). Considerando Mt 13 em sua totalidade, se percebe o objetivo principal de indicar como o Reino dos Céus vai se consumando no dinamismo da história universal até a sua plenitude. À pergunta dos dis-

– Parábolas para orientar a vida na Comunidade (Mt 18,12-14.23-25): manifestam que na comunidade de Mateus alguns lutavam pelo poder, outros eram ocasiões de escândalos, havia intolerantes e obstinados em não perdoar e, os “pequeninos” eram desprezados ou haviam se extraviado.

– Parábolas para orientar no conflito com a Sinagoga (Mt 11,16-19; 20,1-16; 21,28-32. 33-45; 22,1-14; 24,45-51): mostram como os líderes da Sinagoga estavam falhando em sua missão de guiar o povo já que rejeitaram o Messias.

– Parábolas para orientar sobre a vigilância (Mt 25,1-13.14-30): exortam a comunidade dos seguidores de Jesus, em todos os tempos, a permanecer firme, construindo na história o Reino dos Céus, conservando-se firme e alerta para que na Parusia se manifeste em plenitude o que já é vivido agora.

(continua)
__________
Notas
[1] NOSTRA AETATE, Declaração sobre as Relações da Igreja com as Religiões não-cristãs, in COMPÊNDIO DO VATICANO II, Petrópolis: Vozes, 1996: “Por isso não pode a Igreja esquecer que por meio daquele povo, com o qual em sua indizível misericórdia Deus se dignou estabelecer a Antiga Aliança, ela recebeu a Revelação do Antigo Testamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira, na qual como ramos de zambujeiro foram enxertados os Povos. Pois crê a Igreja que Cristo, nossa Paz, mediante a cruz, reconciliou os Judeus e os Povos e a ambos unificou em Si mesmo... Se bem que os principais dos Judeus, com seus seguidores, insistiram na morte de Cristo, aquilo contudo que se perpetrou na Sua Paixão não pode indistintamente ser imputado a todos os Judeus que então viviam, nem aos de hoje. Os Judeus não devem ser apresentados nem como condenados por Deus, nem como amaldiçoados, como se isso decorresse das Sagradas Escrituras. Haja por isso cuidado, da parte de todos, para que, tanto na catequese como na pregação da Palavra de Deus, não se ensine algo que não se coadune com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo. Além disso, a Igreja, que reprova toda a perseguição contra quaisquer homens, lembrada do comum patrimônio com os judeus, não por motivos políticos, mas impelida pelo santo amor evangélico, lamenta os ódios, as perseguições, as manifestações anti-semíticas, em qualquer tempo e por qualquer pessoa dirigidas contra os Judeus. De resto, a Igreja sempre teve e tem por bem ensinar que Cristo por causa dos pecados de todos os homens, sofreu voluntariamete e por imenso amor se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação. Cabe pois à Igreja pregadora, anunciar a cruz de Cristo como sinal do amor universal de Deus e fonte de toda a graça.”

[2] OVERMAN J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: o mundo social da comunidade de Mateus, São Paulo: Loyola, 1997, tradução de Cecília Camargo Bartalotti, Bíblica Loyola no. 20.

[3] Assim se chamavam os primeiros cristãos (At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). O termo “cristão”será usado neste artigo para evitar ambiguidades e facilitar a compreensão.

[4] O que Mt critica é o legalismo farisaico. Contudo, nem todo fariseu era legalista. Em geral esse grupo era muito respeitado pelo povo por sua sabedoria e piedade. Infelizmente o termo “fariseu” tornou-se sinônimo de “hipócrita”. Esse tipo de generalização denota preconceito e foi, muitas vezes, causa de antisemitismo.

[5] Veja, por exemplo, a parábola dos Odres e o Vinho (Mt 9,17; Mc 2,22 e Lc 5,37), que em Mt vem antes da cura da mulher com fluxo de sangue e em Mc e Lc é anterior ao episódio das espigas colhidas no sábado. Sendo que Lc acrescenta à parábola uma afirmação sobre a preferência pelo vinho velho (Lc 5,8) que não consta em Mt e Mc.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

sábado, 14 de maio de 2011

A autoridade da Palavra na missão profética de Elias: análise narrativa de 1 RS 17,1-24

Rita Gomes,NJ*

1 Localização do texto no Livro dos Reis

Os livros dos Reis, grosso modo, relatam os atos e fatos ocorridos com os reis do Israel unido e posteriormente dividido, Israel (Reino do Norte) e Judá (Reino do Sul). O Ciclo de Elias e Eliseu é inserido no meio sem prévio aviso. A inserção da tradição de Elias e Eliseu é facilmente identificável e se a retiramos, a leitura das façanhas reais segue tranquilamente.

De Elias sabe-se apenas o revelado por suas palavras e ações no texto. O narrador não oferece nenhuma informação quanto ao nascimento, crescimento e vocação profética. Contudo, Elias entra em ação como figura já conhecida. O “Ciclo de Elias e Eliseu” corresponde aos capítulos de 1Rs 17,1—19,21; 21; 2Rs 1—2.

A localização da tradição de Elias na parte referente à realeza é compreensível, pois, é feita em vista da teologia deuteronomista. Embora relate as proezas das cortes, o interesse é a palavra profética proferida contra a infidelidade dos monarcas, que perpassa toda obra. O arco narrativo da obra deuteronomista vai de Josué a 2 Reis. Em grandes linhas podemos dizer que a tese deuteronomista é a seguinte: Israel chega à terra da promessa, toma posse e por causa de sua infidelidade, perde-a e é exilado.

Os profetas foram aqueles que durante todo o período da realeza alertaram, denunciaram, convocaram a fidelidade para com o Senhor. Entre muitos outros, estava Elias. Este não fazia parte dos chamados, profetas escritores, mas é de suma importância na história bíblica. É com base, nesse horizonte de fundo que nos aproximaremos do Ciclo de Elias e mais particularmente de 1 Rs 17.

2 Delimitação do texto

1.1 Limite anterior – nossa perícope de trabalho (1Rs 17,1-24) é precedida pelo anúncio da subida de Acab, filho de Amri, ao trono do Reino do Norte. Este teve um reinado longo, vinte e dois anos e, segundo o juízo de valor expresso pelo autor deuteronomista, “irritou o Senhor mais que todos os outros que o precederam” (1Rs 16,33). A atuação profética de Elias é basicamente em contraposição a esse rei. Por isso, o corte e a inserção do Ciclo de Elias e Eliseu, exatamente nesse lugar. Há uma lógica no trabalho do material existente e que é retomado pelo Dtr.

1.2 Limite posterior – o texto analisado aqui abre uma seqüência narrativa sobre o tema da seca que se estende de 1Rs 17,1 “com o anúncio” a 1Rs 18,46 “com o fim da seca”. Aqui trabalharemos apenas o capítulo 17 de 1 Rs.

3 Análise narrativa [1]

Nosso texto, pelo dito acima, é um composto de narrativas episódicas, unificado pelo movimento da palavra, seja do profeta, seja do Senhor. A unidade interna é delimitada pelos versículos 1 e 24 e entre eles os episódios se ligam seja pela figura de Elias, seja pela temática do alimento: Elias em Karit (v. 2-7); Elias em Sarepta (v. 8-16) e o filho da viúva (v. 17-23). Visualizemos o texto segundo o esquema narrativo abaixo:

Exposição: v. 1: Elias anuncia a Acab o período de seca;
Ação: v. 2-7:O Senhor envia Elias a Karit
Clímax: v. 8-16: O Senhor envia Elias a Sarepta
Desfecho: v. 17-24: A volta à vida do filho da viúva

A apresentação do capítulo é esquemática e os traços do deuteronomista aparecem claramente nos pares de versículos: 4.6; 14.16, onde encontramos o esquema “promessa” – “cumprimento”. A divisão também é facilmente identificável porque se repetem frases introdutórias ou conectivos tipicamente redacionais, como “Veio-lhe a palavra do Senhor, dizendo” (v. 2); “Então, lhe veio o palavra do Senhor, dizendo” (v. 8) e de modo diverso o v. 17 se inicia com “Depois disto”.

3.1 Exposição:
1Elias, o tishbita, habitante de Guilead, disse a Acab: Certo como vive o Senhor, o Deus de Israel, a quem sirvo: não haverá nestes anos nem orvalho nem chuva, a não ser se a minha palavra o ordenar.
O horizonte de fundo dessa narrativa é o culto baalista, do qual se contaminou o rei Acab devido a sua união com Jezabel. Para Acab o senhor da natureza, portanto da chuva, era baal. Elias anuncia que é Yhwh o senhor da natureza. Contudo, o profeta, mesmo falando em nome de Yhwh, condiciona o retorno da chuva a uma palavra sua. Para Acab Elias está entrando num espaço que não lhe pertence. Esse era o campo de Baal.
A questão da autoridade aparece de modo claro: tanto a autoridade do profeta, enquanto portavoz de Iahweh, como a do próprio Deus em relação à criação. Será verdadeira a palavra do profeta?

No versículo se expõe o anúncio da seca e embora passe em silêncio as necessidades, a fome e a sede, esse é o cenário que se vislumbra com as palavras proferidas por Elias. A penúria em todos os âmbitos é a conseqüência natural da seca. O profeta também será atingido por ela, como ele se sairá? A seqüência da narrativa nos leva a outro espaço e tempo em que a ação vai responder as questões suscitadas inicialmente. Vejamos a outra cena.

3.2 Ação:
2A palavra do Senhor veio a Elias: 3Vai-te daqui: dirige-te para o oriente e esconde-te na torrente de Karit, a leste do Jordão. 4Assim poderás beber da torrente, e eu ordenei aos corvos que te alimentem. 5Ele partiu, e agiu conforme a palavra do Senhor; foi morar na torrente de Karit, a leste do Jordão. 6Os corvos lhe traziam pão e carne de manhã, pão e carne à tarde; e ele bebia na torrente. 7Ao fim de certo tempo, a torrente secou, porque não mais chovera na região.

O movimento da ação como um todo revela a obediência do profeta à palavra do Senhor que lhe vêm. Após o anúncio da estiagem feito a Acab, o Senhor envia o profeta à torrente de Karit, a leste do Jordão. Por que esse lugar determinado? Por que é importante situar ao leste do Jordão? A localização da fonte diz muito. Esta fica em Israel, mas como estavam seguindo Baal não percebiam. Cometiam o erro denunciado por Jeremias, trocavam a fonte de água viva por cisternas rachadas (Jr 2,13).

O versículo 4 diz claramente que Elias poderá beber da torrente. Estaria o profeta escondido? De modo que necessitasse ficar próximo a uma torrente e não ter que arriscar a vida atrás de suprimentos?

Diz-nos o v. 5 que ele partiu e agiu conforme a palavra do Senhor. Mas a narrativa passa em silêncio total o que fez o profeta nesse período. Informa-nos apenas que “conforme a palavra do Senhor”, ele bebeu da corrente e foi alimentado por corvos, que levavam pão e carne pela manhã e tarde.
A preocupação do narrador com a comida, a falta e o suprimento desta, aponta para o extraordinário alimento dado ao profeta. A este o Senhor alimenta e sacia segundo sua palavra (v. 4-6).

Há manuscritos que trocando a vocalização do termo hebraico[2] lêem “árabes” em vez de corvos. Este tipo de recurso livra o profeta de comer um alimento impuro e coloca esse texto dentro de uma corrente que lê a providência divina em favor de Israel via estrangeiros[3].

Também a providência do alimento e da água faz alusão ao maná mandado por Deus no deserto e água da rocha e dessalinizada (Ex 16,1ss; Nm 11; Ex 15,22-27; 17; Nm 20,1-13 ). Elias é de certo modo equiparado com Moisés[4]. Sua experiência e de fidelidade a Deus são parecidas, embora narradas de modo muito diverso. Seja como for, importa ao narrador mostrar que a providência do alimento é em última instância devida a Yhwh somente.

Fecha-se esse primeiro episódio com a informação de que a torrente secou. Não sabemos o tempo exato, mas podemos inferir que significa a nível redacional um período suficientemente longo para fazer uma torrente secar. Esse fato dá azo para que a cena tenha continuidade.

3.3 Clímax:
8Veio-lhe então a palavra do Senhor: 9Levanta-te, vai para Sarepta, que pertence a Sídon, e ali habitarás; ordenei a uma viúva daquele lugar que te sustente. 10Ele se levantou, partiu para Sarepta e alcançou a entrada da cidade. Havia lá uma mulher, uma viúva, que apanhava lenha. Chamou-a e disse: Por favor, vai buscar-me um pouco d’água num cântaro, para que eu beba! 11Ela foi buscá-la. Ele chamou-a e disse: Traze também, pois, um pedaço de pão em tua mão! 12Ela respondeu: Certo como vive o Senhor, teu Deus! Não tenho nada preparado, tenho apenas um punhado de farinha na vasilha e um pouco de óleo na jarra; quando apanhar alguns pedaços de lenha, voltarei à casa e prepararei esses alimentos para mim e o meu filho; comeremos e depois morreremos. 13Elias lhe disse: Não temas! Volta e faze o que disseste; somente faze antes para mim, com o que tens, um pequeno bolo e traze-o; em seguida prepararás o alimento para ti e o teu filho. 14Pois assim fala o Senhor, o Deus de Israel: A vasilha de farinha não se esvaziará, a jarra de óleo não se esgotará, até o dia em que o Senhor fizer chover sobre a superfície do solo. 15Ela foi embora e fez como Elias havia dito; comeram ela, ele e sua família durante dias. 16A vasilha de farinha não se esvaziou e a jarra de óleo não se esgotou, segundo a palavra do Senhor anunciada por intermédio de Elias.
Novamente a palavra do Senhor vem ao encontro do profeta e o envia a outro lugar. Agora a Sarepta em Sídon. Tecnicamente este seria o mundo de Baal, onde reinava impávido e sereno. Isto revela que Yhwh é Senhor de tudo. E mais uma vez, Elias sem expressar a menor resistência ou dúvida obedece e vai.

Segundo a narrativa o Senhor ordenara a uma viúva que o sustentasse. Estranha informação! As viúvas, juntamente com os órfãos e os estrangeiros, eram responsabilidade dos reis e de quem pudesse socorrê-los. Era, sobretudo para com essas pessoas que o rei devia expressar o direito, praticar a justiça, segundo a Lei. Nessa perícope é uma viúva que vai sustentar o profeta, mediante uma ordem do Senhor.

Nessa cena reúnem-se sob a proteção de Yhwh as três categorias representadas: o estrangeiro Elias, a viúva e o órfão. Elias aparece como o estrangeiro, já que está fora de Israel. Mas, quanto à fé a viúva é a estrangeira, pois certamente adorava ao deus do lugar. Ao pedido de Elias ela responde: certo como vive o Senhor teu Deus... Na concepção da viúva Yhwh é deus, mas não o seu deus.

O que se passa entre o profeta e a viúva à porta da cidade é interessante. Elias pede água para beber. Ele pede aquilo que falta (v. 10). Isto serve para mostrar que a quem é fiel nada falta porque Deus não deixa faltar. E o surpreendente acontece, a viúva faz o que lhe dissera o profeta. Yhwh tem poder em Israel e fora dele.

3.4 Desfecho:
17Eis o que sucedeu após estes acontecimentos: o filho daquela mulher, dona da casa, adoeceu. Sua moléstia foi tão violenta que já nem sequer respirava. 18A mulher disse a Elias: Que há entre mim e ti, homem de Deus? Vieste à minha casa para lembrar-me o meu pecado e fazer meu filho morrer. 19Respondeu-lhe ele: Dá-me teu filho! Tomou-o dos braços da mulher, levou-o para o quarto de cima, onde morava, e deitou-o em sua cama. 20Depois invocou o Senhor, dizendo: Senhor, meu Deus, quereis afligir até essa viúva, para cuja casa vim como migrante, a ponto de matar-lhe o filho? 21Elias estendeu-se três vezes sobre o menino e invocou o Senhor, dizendo: Senhor, meu Deus, que a respiração deste menino volte a ele! 22O Senhor ouviu a voz de Elias, e a respiração do menino lhe voltou, e ele viveu. 23Elias tomou o menino, desceu com ele do quarto de cima e deu-o à sua mãe. Elias disse: Olha! Teu filho está vivo. 24A mulher disse a Elias: Sim, agora sei que és um homem de Deus e que a palavra do Senhor está verdadeiramente em tua boca.
O tema da vida e da morte se coloca. Quem afinal é o senhor da vida: Baal ou Yhwh? A terceira cena nos coloca diante de duas posturas distintas frente à fé javista. Tanto o profeta Elias quanto a viúva são confrontados com seu modo de vivenciar a fé e a verdadeira fé.

A viúva ao colocar a responsabilidade da doença e morte do filho na presença de Elias em sua casa revela sua compreensão de fé, fundamentada na retribuição. A presença do profeta atrai o olhar de Deus para seu pecado e consequentemente, o castigo.

Diante de tal fato, Elias que até então demonstra sua total confiança e adesão incondicional ao Senhor, coloca-se diante de Deus de modo queixoso. Ele não compreende como o Senhor possa tratar assim quem só lhe fez bem, quem o socorreu. Elias também está baseado na retribuição. Ambos são confrontados com a realidade da fé: a gratuidade do Deus da vida. O Senhor é Deus, por isso, o único que tem realmente poder sobre a vida e a morte e que não se deixa encerrar nas concepções humanas estreitas.

A ação transformadora pode ser detectada nos seguintes pontos: Início: morte, fome, miséria; o rei que não segue a Yhwh inteiramente, que não pratica o direito, não reconhece o Deus da vida. Não podemos esquecer que o rei é o “lugar-tenente” de Yhwh, tem a obrigação de ser fiel, de lhe obedecer e revela-se um incrédulo. Fim: vida, ressurreição do menino, abundância de comida, renovação da fé do profeta, profissão de fé da viúva estrangeira.

4 Personagens
Nessa exposição apresentam-se ao leitor dois personagens principais: Elias e a viúva de Sarepta; uma vez que o rei Acab é apenas citado, constituindo assim um personagem secundário a exemplo do filho da viúva.

Nada é revelado de Acab nessa perícope, é como se ele não estivesse presente na cena, ouvindo o oráculo vaticinado pelo profeta. Ele fora apresentado pouco antes, fora do ciclo de Elias, como um rei injusto, o pior até então. No entanto, nesse momento não dialoga com o profeta, não entra em conflito. Poderíamos nos perguntar se o narrador realmente pensava num diálogo entre os dois frente a frente? É provável que não. Interessa ao narrador a palavra proferida pelo profeta e as conseqüências dessa palavra.

Elias é o profeta do Senhor e se revela como tal; faz já no início sua profissão de fé Naquele em nome de quem fala. A personalidade do profeta será conhecida ao longo de sua atividade profética. Nossa análise como um todo gira ao redor da pessoa e da ação de Elias. Ele é fiel à Yhwh, um verdadeiro ouvinte que prontamente faz o que Iahweh lhe ordena. É extremamente dócil à voz divina. Revela uma confiança tal na providência divina que não ousa questionar “o como” se encaminharão as coisas, simplesmente obedece.

Um único momento revela não a dúvida, mas a incompreensão de Elias frente aos acontecimentos. Elias é levado a dar um novo passo em sua fé. É conduzido ao conhecimento de Deus que não é circunscrito em seu modelo retributivo.

A viúva tem muito a nos revelar. Não se diz seu nome, não importa. Sua ação é que importa. É uma estrangeira que obedece primeiramente à palavra de Elias sem questionar. Obedece a uma ordem de Yhwh mesmo sem ser javista e depois num crescendo narrativo, vemos fazer sua profissão de fé.

5 Focalização e Temporalidade

Quanto à focalização nossa perícope demarca-se como segue:
Focalização zero: v. 1-4.7-9.16-17.
Focalização externa: v. 5-6.10-15.18-24.
Quanto à temporalidade, o tempo narrado não é demarcado na narrativa da perícope trabalhada. Sabe-se pelo contexto, o tempo do rei Acab, que se refere ao século oitavo antes da era cristã. Informam-nos ainda outros testemunhos escriturísticos da existência de um longo tempo de seca nesse período. É o caso de 1Rs 18,1 que fala de uma duração de três anos. O testemunho neotestamentário de Lucas vai falar de dois anos.

O tempo da narração é percebido na narrativa pela atenção maior, dada pelo narrador à cena de Elias com a viúva em Sarepta. Isso indica o que nessa seqüência narrativa episódica era o mais importante. O auge da mensagem que o narrador queria veicular com seu texto.

Encontramos nessa perícope um caso de elipse na cena do profeta em Karit. A palavra dirigida ao profeta envia-o a torrente, mas nada é dito da viagem, ele aparece já em Karit, sendo alimentado por corvos e bebendo da torrente.

6 Contexto ou “quadro”

O contexto que molda a tessitura da narrativa é factual, seja na “intriga unificadora” seja na “intriga episódica”. Analisamos aqui a intriga episódica do cap. 17 com três cenas intimamente ligadas.

A moldura que está subjacente a essas cenas é a questão da realeza e as políticas de alianças e intimamente ligado a estas o aspecto religioso com a introdução do culto baalista em meio javista. É desse horizonte que podemos apreender a densidade da profecia no javismo do profeta e em última instância do narrador.

As cenas se seguem e mostram um crescendo na exposição da fé javista, tanto pelo próprio profeta como pela viúva de Sarepta.

7 Ponto de vista do narrador

O narrador apresenta um ponto de vista muito positivo dos dois personagens apresentados: Elias e a viúva. Sua visão do rei é negativa, mas só é percebida à luz da trama maior que envolve a seqüência narrativa tratada.

8 Teologia e hermenêutica do texto

A mensagem teológica dessas narrativas episódicas segue o movimento da Palavra. Primeiro vemos o profeta que fala ao rei, mas seu anúncio do início da seca e do fim desta está condicionado à sua palavra. No v. 24 encerrando a série de episódios encontramos o reconhecimento da verdade da palavra do profeta por meio da viúva estrangeira. É também a Palavra de Yhwh que conduz o profeta em seu caminho.

Vários pormenores se encontram em jogo. Elias fala ao rei de Israel de quem se esperava a fidelidade a Deus, a escuta de Sua Palavra e a prática da justiça. Ele devia assegurar a pureza religiosa no culto a Yhwh. Isso implicaria o rei no afastamento das práticas cultuais baalistas pelas quais estava contaminado. Esse reconhecimento vem da parte de uma estrangeira de quem não se esperava.

Contudo, a principal mensagem que a Palavra de Yhwh põe em evidência é a de revelar quem realmente é Deus, quem é o Senhor da vida e de todos os lugares. É Yhwh quem tem poder sobre a vida e a morte; quem pode dar o que falta e sustentar o povo em tempo de penúria e não Baal.

Hoje em nossas igrejas e também fora delas, o espaço concedido aos “baals” tem crescido a cada dia. Essa narrativa de Elias chamado, enviado, sustentado e provado na purificação de sua fé chega a nós como um convite a buscarmos o verdadeiro Deus e refletirmos se não estamos vivendo na infidelidade, seguindo a Baal e não ao Deus da vida.

Notas
* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP, atualmente Faculdade Católica de Fortaleza e graduação e mestrado em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1] O texto bíblico usado como fonte da análise é retirado da Tradução Ecumênica da Bíblia.
[2] bre[o
[3] The Soncino Talmud (Software © Judaica Press, 1990 Soncino Press, Ltd; is a product of Judaica Press, Inc. Brooklyn, NY).
[4] Frank CRÜSEMANN. “Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel”. Fragmentos de Cultura, v. 11, 2001, p. 779.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

TRADUÇÃO ECUMÊNICA DA BÍBLIA: Texto do Ciclo de Elias

BÍBLIA DE JERUSALÉM: Texto do Ciclo de Elias

MARGERAT, Daniel – BOURQUIN, Yvan. La Bible se raconte: initiation à l'analyse narrative. Paris – Genève - Montréal: Cerf – Labor et Fides – Novalis, 1998.

ÁLVAREZ BARREDO, Miguel. “Las narraciones sobre Elías y Eliseo en los libros de los reyes. Formación y teología”. Carthaginensia XII (1996), p. 1-123.

SELLIN, Ernest; FOHRER, G. Introdução ao Antigo Testamento. São Paulo: Paulinas, 1978, p. 320-336.

MINETTE DE TILLESSE, Gäetan. “Martin Noth e o Deuteronomista”. Revista Bíblica Brasileira, v. 10 n. 1-2, 1996.

The Soncino Talmud (Software © Judaica Press, 1990 Soncino Press, Ltd; is a product of Judaica Press, Inc. Brooklyn, NY).

CRÜSEMANN, Frank. “Elias e o surgimento do monoteísmo no Antigo Israel”. Fragmentos de Cultura, v. 11, 2001, p. 779-790.