terça-feira, 2 de junho de 2015

Corpo e Sangue da nova aliança

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

Roteiro Homilético para a Solenidade de Corpus Christi


I. INTRODUÇÃO GERAL

Deus fez aliança com Israel ao libertá-lo do Egito. Esse pacto foi instituído por meio de um rito. Primeiramente, o sangue do cordeiro pascal foi derramado em substituição à vida dos primogênitos dos hebreus. Depois o rito continuou na celebração de uma refeição, a ceia pascal, memorial da libertação, celebrada a cada ano pelos filhos de Israel para atualizar aquele evento fundador e paradigmático da religião bíblico-judaica.

No Novo Testamento, Jesus faz sua última refeição juntamente com os discípulos dele. Tal refeição não é apenas o coroamento da atividade missionária de Jesus, mas o coroamento de todas as refeições que ele havia feito com os pecadores ao longo de sua vida terrestre. Conforme os evangelhos sinóticos, nos momentos finais da vida de Jesus, os comensais celebram uma ceia pascal. E nessa ceia Jesus substitui o cordeiro pascal e também se identifica com o pão ázimo e com o vinho abençoado. Jesus transforma radicalmente o significado dos elementos da ceia pascal, pois é nele que se dá a libertação definitiva e plena do ser humano. Portanto, é instaurada uma nova aliança firmada na libertação integral da humanidade. Na ceia eucarística, atualiza-se a libertação escatológica realizada por Jesus ao longo de sua vida que culminou na morte de cruz, celebrada antecipadamente nos gestos da última ceia.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mc 14,12-16.22-26): Tomai e comei, isto é meu Corpo

No Oriente antigo, o sangue simbolizava a totalidade da vida de um ser, animal ou humano. Por isso, quando o sangue de um animal era ofertado a Deus, na verdade o que se ofertava era a vida da pessoa que fazia a oferenda.

O termo sacrifício significa “tornar sagrado”; portanto, quando o sacerdote colocava o sangue do animal sobre o altar, a vida da pessoa ofertante é que se tornava sagrada, ou seja, consagrada a Deus. A ideia de sacrifício não tinha a atual conotação de “realização de algo difícil ou penoso”, mas de santificação ou sacralização da vida.

Antes de derramar o sangue na cruz, Jesus fez de sua vida uma oferta a Deus e à humanidade. Por isso ele antecipa, no gesto profético da última ceia, o que se dará no momento culminante do dom de si mesmo, a morte na cruz. É por causa de uma vida inteira ofertada, a Deus e ao outro, que a morte de Jesus, cume dessa oferta, pode ser chamada de sacrifício. A vida inteira de Jesus é sacrifício, é uma vida consagrada, santificada. Jesus oferta a própria vida como nosso representante.

Sua obediência e fé integral nos substitui, já que não conseguimos ser obedientes e fiéis da mesma forma. Sua vida humana sem pecado nos liberta do pecado, sua ressurreição nos liberta da morte. Em tudo isso Jesus nos representa e nos substitui. Cessam daqui por diante os antigos sacrifícios de animais. O sangue, a vida ofertada da nova aliança é o que vigora doravante.

Também era comum na cultura antiga a concepção de que beber o sangue significava assumir a vida presente nele. Os povos vizinhos a Israel, na Antiguidade, costumavam beber sangue de animais porque acreditavam com isso assimilar as características do animal, como força, coragem, valentia. Por isso, o Antigo Testamento proíbe beber o sangue de animais. As palavras do Senhor: “Isto é meu corpo… isto é meu sangue”, “tomai e comei… tomai e bebei”, deveriam nos recordar de que nos compete assimilar em nossa vida as características da vida de Jesus.

Dessa forma, no Corpo e Sangue de Cristo vive e cresce a Igreja, com os fiéis continuamente se alimentando de amor, de fidelidade, de doação ao outro, de perdão e de todos os aspectos da vida de Jesus.

O Corpo e Sangue de Cristo são centro e sustentáculo da vida cristã. Por isso, quem deles se alimenta há que aceitar participar da doação de vida realizada por Cristo, em adesão à vontade do Pai e em doação ao próximo. Assim, por meio da eucaristia, os fiéis vivem o mistério da vida, morte e ressurreição de Cristo, celebrando agora a comunhão sem fim na glória eterna.

2. I leitura (Ex 24,3-8): Este é o sangue da aliança que o Senhor fez convosco

A primeira leitura descreve com detalhes o rito da aliança entre Deus e Israel. Moisés reuniu o povo, construiu um altar, mandou oferecer novilhos em holocausto e derramou metade do sangue deles sobre o altar e com a outra metade aspergiu o povo.

O termo hebraico para aliança, “berith”, significa também pacto e casamento (pacto de amor). Um pacto ou contrato, mesmo o casamento, implica a observância de certas exigências. Nesse texto que acabamos de ler, a exigência é o cumprimento das palavras proclamadas na presença do povo, a saber, aquelas concernentes ao decálogo. De sua parte, Deus se comprometeu a cumprir suas promessas, cuidando de Israel como um pai cuida do filho, suprindo-lhe as necessidades básicas e defendendo-o de todos os perigos.

O pacto bilateral da aliança no Antigo Testamento era estipulado mediante o sangue dos animais ali oferecidos em holocausto. O laço espiritual que unia o povo de Israel ao Deus da aliança era indicado pelo sangue aspergido sobre o povo.

3. II leitura (Hb 9,11-15): Cristo ofereceu a si mesmo como oferta sem mácula

A antiga aliança prefigurava a nova, ratificada em Cristo não “por meio do sangue de cabritos e de touros, mas no seu próprio sangue” (v. 12). Os sacrifícios realizados na antiga aliança, apesar da profundidade de seu simbolismo, eram inadequados para purificar a consciência e trazer a salvação.

Na nova aliança há um só sacrifício, “oferecido uma vez por todas” (v. 12) por ter valor intrínseco, infinito. Nele não há animais sendo sacrificados nem sacerdotes fazendo rituais. Oferta e ofertante se identificam no Filho de Deus humanado, o sumo sacerdote, “o qual se ofereceu sem mancha a Deus”. Essa oferta eficaz tem o poder de purificar a consciência do ser humano “a fim de servirmos ao Deus vivo” (v. 14). Já não se trata de purificação exterior, e sim interior, que transforma o íntimo da pessoa, lavando-a dos pecados para que viva em conformidade com a graça.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Durante muitos séculos, foi esquecido da eucaristia o aspecto de comensalidade e refeição e superenfatizado o aspecto sacrifical do derramamento de sangue na cruz para o perdão dos pecados. Jesus foi transformado em animal de sacrifício. A celebração do Corpo e Sangue de Cristo deve chamar a atenção para o Pão e o Vinho, para a dimensão da refeição familiar onde todos estamos participando da mesma mesa.

Na reflexão deste dia, sejamos cuidadosos com as palavras, para que as pessoas da assembleia não tirem conclusões equivocadas. Jesus não é animal de sacrifício; a expressão bíblica que diz que ele é o “cordeiro de Deus” somente pode ser entendida à luz do significado do cordeiro pascal. É errado supor que Deus Pai, em vez da morte de um cordeiro na Páscoa, preferiu a morte do próprio Filho. A carta aos Hebreus afirma que o sangue de animais não tira o pecado. Deus nunca precisou disso. Mas o sangue do cordeiro pascal substituía a vida do ofertante. Na realidade, o que se dava a Deus não era o sangue, mas a vida da pessoa (da família) que realizava o rito, e entregar a vida a Deus é ter a vida renovada, liberta, sem pecado. O sacrifício do cordeiro era um símbolo dentro de um rito.

Não há necessidade de que o Filho de Deus tenha o próprio sangue derramado como condição para que Deus nos perdoe os pecados, Deus Pai não é sanguinário. Jesus é aquele que se dedica à humanidade e ao bem comum e dá início ao Reino de Deus a partir da vida dele. A vida inteira de Jesus foi de doação ao próximo, sem excluir ninguém. A vida terrestre de Jesus de Nazaré foi uma oferta total ao Pai e à humanidade. O sangue de Cristo é a vida de Cristo, o corpo de Cristo é a vida de Cristo. Nessas espécies está figurada a vida inteira de Cristo, incluindo sua morte e ressurreição. Tal vida foi uma oferta, e por isso Cristo é a humanidade ofertada a Deus, libertada integralmente do egoísmo, do pecado e da morte. Por isso Cristo nos representa, sua vida substitui a nossa. É isso que celebramos na ceia eucarística.


Nesse sentido, comungar da eucaristia é assumir a vida de Cristo na própria vida, é acolher a todos, não ter preconceitos, desamor, rancor, não praticar qualquer exclusão.

Publicado originalmente em: http://vidapastoral.com.br/roteiros/4-de-junho-corpus-christi/

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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Envia teu Espírito, Senhor, e renova a face da terra

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

Roteiro Homilético para a Solenidade de Pentecostes



I. INTRODUÇÃO GERAL

O Espírito Santo é fonte e força do amor mútuo. É também sinal de que estamos vivendo um novo tempo. Jesus culminou o caminho dele aqui na terra e foi glorificado por Deus Pai, mas não nos deixou sozinhos: deu-nos o mesmo Espírito que o ungiu e o animou na missão.

A missão do Espírito que nos foi dado nos leva à verdade completa, faz-nos entrar em comunhão com os seres humanos e com Deus. O Espírito é presença de Deus nos caminhos da história por meio da Igreja, que é movida por ele. Ao unir os seres humanos no amor, o Espírito nos dá a certeza do que será no final dos tempos, a comunhão plena no Reino de Deus. Por causa desse amor que nos põe em comunhão, há partilha dos bens, há oração sincera, há evangelização. Em função da comunhão, o Espírito nos faz falar e compreender todas as línguas, porque a língua universal é o amor e sem ele somos apenas “sinos que retinem” (1Cor 13,1). Por isso, crer no Espírito significa crer no futuro da vida, na renovação radical de toda a terra, no caminho do amor que supera as dificuldades deste mundo e nos dirige ao amor em plenitude.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 20,19-23): Recebei o Espírito Santo

O texto do evangelho de hoje enfatiza desde o início o aspecto da comunhão: era o primeiro dia da semana, o dia do Senhor, e os discípulos estavam reunidos. As portas fechadas simbolizam o medo da hostilidade existente lá fora. São os inícios de uma Igreja que vive a fragilidade e as dúvidas, que necessita da presença do Senhor. Mas Cristo ressuscitado está com eles, sua presença se faz visível e ele coloca-se no centro, no meio deles.

“A paz esteja convosco!” é o início do diálogo por iniciativa do Ressuscitado. Os discípulos têm medo, e isso os deixa desconfiados. Mas Jesus os conforta com sua palavra e presença sensível, é o verdadeiro mestre que eles haviam seguido, possui as chagas que são os sinais gloriosos de sua vida terrena. Quem faz a experiência com o Ressuscitado sabe que ele não é uma fantasia.

Os discípulos estão reunidos como Igreja, e o Cristo lhes oferece o perdão e lhes envia em missão. Antes de tudo, a Igreja é a comunidade que recebe o perdão de Cristo e o distribui ao mundo. Evangelho e perdão não estão separados, pois a “boa notícia” que a Igreja dá ao mundo é que, em Jesus Cristo, o ser humano está perdoado por Deus, pois o Filho de Deus triunfou sobre a causa do pecado, a saber, o egoísmo.

A um mundo atormentado por injustiças, guerras e violências, Cristo oferece a paz fundadora e criadora que combate a raiz do pecado. A uma comunidade fechada por causa do medo, o Cristo estende a graça da vida dele, tornada princípio da missão universal. Jesus é a paz para aqueles que o recebem e para todos.

A Páscoa torna-se Pentecostes, pois o Ressuscitado sopra sobre seus discípulos dizendo: “Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Um gesto que alude a uma nova criação, uma vez que, no princípio, Deus havia soprado sobre o ser humano, tornando-o ser vivente (cf. Gn 2,7). Agora o gesto de Jesus nos indica que o Cristo pascal leva ao ápice a criação que fora começada.

O Evangelho de João une Páscoa e Pentecostes em um mesmo mistério: a manifestação pascal de Cristo se torna efusão do Espírito do Ressuscitado sobre a totalidade da Igreja. A Páscoa significa que a morte de Jesus pela humanidade abre um caminho de amor e de transformação do mundo. E Pentecostes é o dom da Páscoa, é ter o mesmo Espírito de Jesus, é viver à luz do mesmo sopro vital que o animava.

2. I leitura (At 2,1-11): Todos ficaram cheios do Espírito Santo

Os discípulos, em grande número, estavam reunidos, perseveravam em oração enquanto aguardavam a vinda de Cristo, a qual associavam com o fim dos tempos. Ali onde esperavam o julgamento divino sobre o mundo, tiveram a grata surpresa de participar de uma ação que era exatamente o contrário do que pensavam. De fato, os profetas haviam previsto um derramamento do Espírito no final dos tempos, e unido a isso aconteceria o julgamento das nações e grandes catástrofes da natureza (como está escrito em Joel 2,28-32, citado em At 2,17-21).

Reunidos em oração, estavam dispostos a enfrentar o julgamento de Deus sobre as nações e morrer num grande acontecimento cósmico que revelaria a glória de Cristo. Mas o que aconteceu com a efusão do Espírito foi a comunhão entre todos os povos e culturas, a comunicação eficaz entre as línguas diferentes. Num primeiro momento, podemos pensar que a experiência de comunhão dá-se em plano limitado, no interior da comunidade; no entanto a comunhão realizada em Pentecostes transborda as limitações religiosas e nacionais e se expande ao longo de toda a terra.

Muitas leituras atuais desse texto bíblico enfatizam a experiência com o dom de línguas. Até mesmo se denominam de pentecostais grupos e igrejas que fazem algum tipo de experiência atribuída ao Espírito Santo. Mas se lermos atentamente esse texto, veremos que se trata de um dom para a evangelização, para a missão, para a expansão da comunidade, e não para o crescimento pessoal com conotações de verticalidade na experiência espiritual. Nesse texto não se afirma que os membros da comunidade oraram em línguas (como é mencionado por Paulo com relação a uma prática da comunidade de Corinto). O texto diz que as pessoas falavam idiomas diferentes e todos se compreendiam; o oposto da narrativa sobre a torre de Babel. O enfoque no dom de línguas vem do termo “línguas estranhas”, que significa o mesmo que “línguas estrangeiras”. Além da possibilidade de evangelização do mundo inteiro, porque o Espírito Santo capacita a Igreja para proclamar o evangelho em todas as culturas e idiomas, vemos nesse texto a comunhão entre todos os seres humanos, a unidade na diversidade.

O Espírito supera as velhas divisões entre os seres humanos. Ultrapassa as estruturas arcaicas da sociedade fundada em princípios de imposição dos mais favorecidos sobre os mais frágeis. A partir de Pentecostes, os seres humanos podem vincular-se por meio da graça de Deus, com base no dom do Espírito. A comunhão de todos os povos, que a partir de agora se realiza, é sinal e presença dos tempos escatológicos, meta da história humana que caminha para Cristo. A história humana, repleta de competições e de opressão de uns sobre os outros, realiza uma trajetória, marcada pelo Espírito do Cristo ressuscitado, para a comunhão plena de toda a humanidade num Reino de fraternidade e de paz.

3. II leitura (1Cor 12,3b-7.12-13): Batizados num só Espírito e formando um só corpo

O Espírito de Cristo une os seres humanos, a partir de Deus, em perdão e comunhão, por aquilo que são e não pelo que têm ou fazem. Até então não tinha havido nenhuma comunhão real, mas concorrência e competição, busca de influência, enfim, divisão generalizada. Agora, e somente agora, a partir da unidade de Cristo que nos torna irmãos, filhos do mesmo Pai, começa a história da graça que une a todos no amor e na liberdade. Há distribuição de carismas, mas é o mesmo Espírito; diversidade de ministérios, mas é o mesmo Senhor; divisão de tarefas, mas é Deus que opera tudo em todos. O Espírito é um só e une todos os seres humanos numa comunidade que não se baseia na pura experiência interior, em ideias ou princípios gerais, mas na comunhão e na confiança mútua.

O Espírito congrega pessoas muito diferentes umas das outras que, em vez de fazer concorrência entre si, se servem mutuamente e são felizes em realizar isso no amor. Trata-se de uma comunhão realizada pelo próprio Deus, e não por meio de um cooperativismo à maneira de um sindicato ou clube que une pessoas pelas tradições, costumes sociais ou culturais. Como o corpo é um só e tem muitos membros, assim é Cristo. Porque todos nós fomos batizados num só Espírito, formando um só corpo.

A comunhão realizada pelo Espírito Santo não se apoia em tradições sagradas nem em laços que vinculam as pessoas por aspectos culturais, econômicos ou políticos. Os cristãos não formam uma nação, um estado. A comunidade cristã tampouco é uma associação cultural, um clube espiritual, uma ONG com fins delimitados. A comunidade cristã quer suscitar uma comunhão não governamental ou política, mas de vida entre todos os seres humanos, fundada no Cristo.

Os cristãos querem formar uma comunidade de amor universal, em gratuidade, a partir dos mais pobres e excluídos, abrindo-se a todos os povos da terra, sem empregar meios de poder político-militar ou qualquer tipo de imposição.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Há um tipo de vida que é morte, feita de lutas e concorrências, de inveja e egoísmo. Mas há um tipo mais elevado de vida feito de doação, gratuidade, acolhida, comunhão… Essa é a vida que se desvela na trajetória da Igreja, a vida do Espírito. A Igreja, comunidade fundada na comunhão realizada pelo Espírito, não propaga a exclusão, ao contrário, distribui o perdão que vem de Deus. Não nega o perdão a ninguém.

A Igreja somente pode ser considerada comunidade de Jesus se é sinal e fonte de perdão e, portanto, de inclusão. A própria Igreja expressa o perdão, encarna-o e o anuncia ao mundo. Portanto, onde o perdão é oferecido há perdão, e onde a Igreja mostra que não há perdão isso ocorre porque as pessoas ainda se afrontam e se confrontam. Somente onde a luta por justiça ainda não chegou ao seu término e quando a justiça ainda não tenha sido instaurada é que a Igreja retém o perdão, para que se possa realmente continuar lutando até edificar um mundo justo de paz e fraternidade universais.

Publicado originalmente em: http://vidapastoral.com.br/roteiros/24-de-maio-pentecostes/


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Anunciai a boa-nova a toda criatura

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Roteiro Homilético para a Ascensão do Senhor



I. INTRODUÇÃO GERAL

Hoje a Igreja celebra a solenidade da Ascensão do Senhor. Estritamente falando, não é uma nova festa, mas a plenificação da Páscoa. Estar sentado à direita do Pai não é tanto um triunfo ou um prêmio que Jesus recebe por bom comportamento e por ter realizado a tarefa que lhe foi proposta. O triunfo de Cristo é o ponto aonde deve chegar cada ser humano na plenitude de suas potencialidades. Celebramos a elevação do ser humano antecipada na ascensão de Cristo.

Ressuscitou, subiu ao céu, está sentado à direita do Pai são termos e expressões cujos significados denotam que a missão terrena de Jesus culminou. Tudo o que ele veio realizar foi feito. Agora a comunidade de seus seguidores deve continuar a missão de edificar o Reino de Deus neste mundo. Por isso, as leituras de hoje nos oferecem uma síntese da missão dos cristãos, fundada em três afirmações inseparáveis: 1) ressurreição: Jesus venceu o pecado e a morte; 2) ascensão: Jesus está junto do Pai, exercendo autoridade sobre a criação e a história; 3) esperança: Jesus voltará (parusia) inesperadamente para plenificar todas as coisas.

A missão dos cristãos situa-se entre a ascensão e a parusia, anunciando e edificando o Reino de Deus até que Cristo venha.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mc 16,15-20): Ide pelo mundo inteiro

O evangelho de hoje enfatiza o mandato missionário recebido por todo cristão. Primeiramente, oferece um resumo das experiências que os discípulos tiveram com o Ressuscitado, seguido do mandato missionário no qual são elencados os elementos ou sinais principais da missão dos cristãos: expulsar demônios, falar todas as línguas, ser imune a qualquer veneno e curar os enfermos. Percebemos aqui que a missão dos cristãos possui os mesmos elementos ou sinais da missão de Jesus. Aparentemente, é uma missão impossível. É necessário compreender cada um desses elementos. Antes de tudo, trata-se de sinais e não de demonstrações (muito menos midiáticas), os quais têm por objetivo indicar que os missionários entraram em um campo novo de ação e para isso receberam uma autoridade originada no Pai, ao lado do qual está Jesus. Significa que é uma ação dos cristãos, mas não unicamente deles: é uma ação de Deus regenerando este mundo por intermédio da obra evangelizadora dos cristãos.

Expulsar os demônios em nome de Jesus significa, primeiramente, continuar a sua luta contra o mal, como foi enfatizado ao longo do Evangelho de Marcos. Não é tanto fazer exorcismos, mas instaurar um reino de justiça, fraternidade e paz em oposição ao mal, ao pecado e ao egoísmo. É continuar a luta de Jesus em cada circunstância da vida, enfatizando o poder do bem contra o mal, e não o contrário. Uma forma de exorcismo que cada um pode fazer é evitar desanimar por causa do aumento da violência e prestar mais atenção nas ações das pessoas de bem que fazem grandes mudanças na sociedade.

Falar novas línguas, no contexto narrativo dessa leitura, não significa a oração em línguas, pois se trata não de falar com Deus – não é um texto sobre oração –, mas do mandato missionário de falar às pessoas do mundo inteiro. Significa que os cristãos farão um esforço para não impor uma cultura ou modo de pensar, mas anunciarão o evangelho, a boa notícia de Jesus, levando em conta os destinatários, seu contexto histórico-social e cultural.

Serpentes e venenos que não causam nenhum mal não significam que o cristão é blindado para que nada de ruim lhe aconteça, como quer nos iludir a ideologia da prosperidade. Ao contrário, os cristãos estão sempre à mercê de muitos sofrimentos e perseguições, como aconteceu com Jesus e como vemos na vida dos santos. Bem entendidas, essas palavras de Jesus, em linguagem apocalíptica de luta contra o mal, significam que os verdadeiros cristãos estão imunes às serpentes e venenos do egoísmo que matam pela exclusão social, pelo preconceito e falta de aceitação do outro, pela calúnia, corrupção e desonestidade. É desse veneno maligno que os verdadeiros cristãos estão imunes e por ele jamais serão destruídos.

Imporão as mãos sobre os enfermos e eles ficarão curados. Essa expressão nos situa de novo no centro da atividade de Jesus – por onde ele andava, curava os enfermos. Os cristãos são, antes de tudo, crentes, isto é, pessoas unidas de tal forma a Jesus, que compartilham do seu poder de curar. Longe de pensar que isso se refere aos santos ou a uns poucos privilegiados, a cura das enfermidades é um sinal que acompanha todo aquele que crê. Não se trata tanto de um dom carismático, mas da cura dos corações marcados pelo egoísmo e pelas feridas do desamor. Todos nós podemos escolher entre ferir ou curar. E podemos pôr em prática essa palavra de Jesus por meio de nossas palavras e ações no compromisso com o outro.

Resumindo: num mundo perigoso (venenos e enfermidades), os cristãos deverão ser capazes de expandir a Palavra em toda língua, superando o poder do mal e ajudando os outros a viver (curas). Desse modo, o anúncio do evangelho se converterá em ação transformadora, sinal de que o mal cede lugar ao Reino que estará se expandindo na terra.

2. I leitura (At 1,1-11): Sereis minhas testemunhas até os confins do mundo

Por que ficais parados olhando para o céu? O que o Cristo tinha de fazer aqui entre nós ele já fez. A partir de agora, cabe a nós desenvolver a nossa vida particular e coletiva, assimilando e vivendo os ensinamentos que Jesus nos transmitiu. A fé cristã implica responsabilidade. Cristo nos legou a boa-nova do Reino, agora cabe a cada um de nós, pessoalmente e em comunidade, responder a ele com nosso modo de viver. Não estamos abandonados, há uma promessa: o poder do Espírito que nos capacita a testemunhar até os confins do mundo.

A chamada de atenção feita pelos “homens vestidos de branco” significa que o verdadeiro seguimento de Jesus não envolve ficar parado olhando para o céu, esperando que Cristo faça a evangelização do mundo. A parte dele já foi feita, agora nos compete levar ao mundo inteiro, a toda criatura, a sua mensagem. Tornar o Reino de Deus algo real no nosso mundo.

O envio messiânico universal é a ata de fundação da Igreja. Jesus envia seus discípulos a todo o mundo conforme um programa, um esquema de universalidade que aparece em vários textos do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos: partindo de Jerusalém, passando pela Judeia e Samaria e chegando a todo o mundo, a todo cosmo, no idioma grego. Significa que a evangelização é um processo, um desenvolvimento que somente chegará ao seu término quando todos tiverem recebido a mensagem de Jesus.

A missão cristã se estende desde o princípio a todo o mundo, a todos os povos e culturas. Trata-se de um contexto universal; desaparecem as distinções entre os povos, já não há um povo único de Deus, mas todos os povos pertencem a Deus e com ele estabelecem aliança. A missão é para a humanidade, para o cosmo aberto à palavra dos missionários.

3. II leitura (Ef 1,17-23): Somos continuadores da missão do Cristo

A segunda leitura afirma que a Igreja é o Corpo de Cristo. O que isso significa? Jesus foi elevado ao âmbito do Pai e recebeu autoridade sobre todas as coisas. Os discípulos saíram pelo mundo proclamando o evangelho com a cooperação do Senhor, que confirmava a palavra com sinais. A ascensão e a ausência física de Cristo tornam possível novo tipo de presença na comunidade de seus discípulos: somente quando Cristo “se vai” é que a Igreja começa a sentir a força dele atuando por meio dela. A comunidade dos discípulos, quer dizer, a Igreja é a presentificação do Cristo ressuscitado. Cristo se corporifica no mundo mediante seus discípulos, ou seja, o modo pelo qual se pode ver Cristo evangelizando o mundo são os evangelizadores. A Igreja o torna visível para o mundo.

Da mesma forma que não há corpo vivo sem cabeça, assim também não há Igreja sem a ação de Cristo ressuscitado agindo no mundo por meio dela. Portanto, podemos dizer que Jesus está no céu à direita do Pai, mas, ao mesmo tempo, está presente, coatuando por meio dos fiéis.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Na “oração para depois da comunhão”, o presidente da celebração diz: “Deus eterno e todo-poderoso, que nos concedeis conviver na terra com as realidades do céu, fazei que nossos corações se voltem para o alto, onde está junto de vós a nossa humanidade”. Essa oração expressa muito bem o sentido profundo da Ascensão do Senhor. Nós somos introduzidos no seio da Trindade. Jesus, o homem verdadeiro, está junto do Pai. Com ele nossa humanidade já está lá. A Ascensão do Senhor é a celebração da plenificação de nossa humanidade junto de Deus. Já convivemos aqui na terra com esse grande mistério.

Que a comunidade não desvirtue a celebração desse grande mistério com uma devoção mariana. Atribuir o mês de maio a Maria não deve implicar a sobreposição de uma devoção à grandeza do mistério que celebramos hoje. Portanto, os cânticos não devem ser marianos, muito menos a homilia. O foco dessa celebração é Cristo, que leva nossa humanidade para o seio da Trindade. Mesmo em uma paróquia consagrada a Maria e mesmo que se esteja em pleno festejo, a ênfase deve ser dada à ascensão de Cristo e à nossa ascensão com ele para junto do Pai.


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Fui eu que vos escolhi

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Roteiro Homilético para o 6o. Domingo da Páscoa


INTRODUÇÃO GERAL
O povo de Israel tinha consciência de ser povo escolhido por Deus. Mas também foi afirmado várias vezes pelos profetas e pelos salmistas que as nações eram convidadas a entrar na mesma dinâmica de Israel, ou seja, adorar o Deus único, vivo e verdadeiro. Reza o salmista: “Aclamai o Senhor, ó terra inteira, cantai-lhe hinos de louvor”. Sendo assim, qual é a identidade de Israel, já que todos os povos são chamados a se congregar como povo de Deus? Basicamente, a vocação e o papel de Israel em meio às demais nações é ser instrumento de Deus para que todos possam conhecer o Deus da aliança e com ele fazer comunhão. Essa é a mesma vocação da comunidade dos discípulos de Jesus ao longo da história, até que ele volte.

COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 15,9-17): Escolhidos para amar

O evangelho de hoje nos fala sobre a Igreja como lugar da amizade. Jesus nos é apresentado como alguém que confidencia aos seus amigos tudo o que ouviu do Pai (v. 15). Conforme a palavra de Jesus, a Igreja não se fundamenta em relações de poder entre senhor e escravo, nas quais alguns se impõem sobre os outros, no saber e no poder. Jesus superou essa mentalidade do mundo onde uns mandam e outros obedecem; ele convocou uma família, não fundou uma empresa. Somos vocacionados para amar, para viver em comunhão, partilhando uns com os outros aquilo que somos e o que temos.

Jesus confia a nós tudo o que ouviu do Pai, dando-nos o exemplo para que confiemos uns nos outros e sejamos transparentes uns com os outros, a fim de formar verdadeira “comum-unidade”. Se levarmos em conta esse exemplo de Jesus, a Igreja será círculo de fraternidade, local de acolhida do diferente, espaço onde todos se sentirão à vontade para ser o que são, família da qual ninguém será excluído.

Contudo, esse exemplo de Jesus encontra inúmeras resistências em nossa época. Ainda resta um caminho longo e difícil para a inclusão e a aceitação do diferente. Faz-se cada vez mais urgente voltarmos ao evangelho e darmos atenção às palavras de Jesus.

Há grupos dentro da Igreja que querem impor um modo de ser Igreja bem diferente daquele que foi pensado e desejado por Jesus. São grupos autoritários que se definem como únicos conhecedores da essência do cristianismo e defensores da doutrina. No entanto, suas práticas de exclusão se chocam com o agir de Jesus, que se fez amigo de todos, não teve pretensões autoritárias nem tencionou ser o único conhecedor das palavras que ouviu do Pai, pois as partilhou com todos.

E o que Jesus teria ouvido do Pai? Ou melhor, qual seria a vontade do Pai que Jesus cumpriu e nos mandou observar? Na verdade, Jesus a sintetizou em poucas palavras: viver o mandamento que ele deixou, a saber: estar aberto e livre para amar concretamente. Se estivermos dispostos a isso, estaremos em sintonia com ele e, portanto, em sintonia com o Pai.

2. I leitura (At 10,25-26.34-35.44-48): Deus ama a todos, não faz acepção de pessoas

A primeira leitura traz o relato de um dos aspectos constitutivos da Igreja: a universalidade da mensagem de Jesus. Cornélio nos é apresentado pelo texto dos Atos dos Apóstolos como o primeiro não judeu a ingressar na comunidade dos seguidores de Jesus. Primeiramente, isso significou um despertar para a concepção de que a missão de Israel e a da Igreja jamais seriam excludentes, fato expresso na palavra de Pedro: “Deus não faz acepção de pessoas” (v. 34). A atualidade dessa palavra de Pedro é inquestionável. Que ela possa ressoar nos corações e mentes daqueles que pretendem excluir como impuros os que foram purificados por Deus por meio do mistério pascal de Jesus Cristo.

O gesto realizado por Pedro deve se converter em imagem da Igreja aberta a todas as pessoas, como autêntico testemunho do amor de Deus a todos.

3. II leitura (1Jo 4,7-10): Deus nos amou primeiro

O fundamento de toda a argumentação desse texto bíblico é a afirmação de Jesus no Evangelho de João: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, é quem o deu a conhecer” (Jo 1,18). Por isso o Antigo Testamento proíbe fazer imagens de Deus (Dt 5,8; Ex 20,4), porque sua imagem é o homem e a mulher (Gn 1,26-27). O Deus invisível se revela no amor humano. Como, na mentalidade hebraica, a imagem significa a presença e a representatividade, o ser humano, em suas diferenciações de gênero, constitui o lugar da presença de Deus no mundo. A presença divina está onde existe o amor humano. Mais ainda, o ser de Deus é o amor, como origem e sentido de tudo que existe.

Não vemos a Deus, mas escutamos sua palavra e podemos fazer sua vontade. Por isso o texto nos exorta a amar uns aos outros para podermos reconhecer nossa origem, nossa experiência mais original. E como podemos viver esse amor se somos tão frágeis e egoístas? A força que nos liberta do egoísmo não é iniciativa nossa, mas de Deus. Ele nos criou capazes de amar. Não fomos nós que o amamos primeiro, mas foi ele quem nos amou antes de toda a criação e nos convida a entrar nessa sintonia de amor, nessa comunhão, que nos põe em colaboração com ele na sua obra de redenção.

Em que consiste o amor? (v. 10). O amor é a graça que sempre nos precede, que não podemos conquistar nem criar, pois nos é oferecida como dom. Somente quem fez a experiência da prioridade do amor pode falar sobre Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O amor não apenas nos precede, mas nos resgata. O texto de 1Jo 4,10 usa um termo fundamental da tradição sacrifical do Antigo Testamento, “propiciação” (oferenda de expiação, cf. Lv 16) pelos nossos pecados. Já não precisamos sacrificar um animal; o amor do Filho, na gratuidade e entrega de si mesmo, redime-nos do pecado. Isso é o que pode mudar nossa vida, pois do amor surgimos, do amor renascemos, libertando-nos do pecado e da morte.

Algumas pessoas querem substituir os sacrifícios de animais por promessas extravagantes que fazem aos santos. No entanto, o que agrada a Deus é o amor; numa palavra, o amor é o único mandamento que Jesus nos deixou. O amor resume todo o cristianismo, e o amor não exclui ninguém.

Os ritos, os sacramentos, a missa, os sacramentais etc., tudo isso existe para nos conscientizar de que devemos estar dispostos e livres para amar as pessoas em todas as circunstâncias do cotidiano. Vamos à Igreja para sintonizar com o Deus de amor e mais profundamente viver essa sintonia em cada momento da vida.


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

terça-feira, 28 de abril de 2015

Permanecei em mim e eu permanecerei em vós

Roteiro Homilético para o 5o. Domingo da Páscoa
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

 



I. INTRODUÇÃO GERAL
O Sl 22, com o qual respondemos às leituras de hoje, expressa o desejo de que todas as nações e gerações futuras estejam diante de Deus para adorá-lo. Por enquanto os povos ainda não se arrependeram de suas ações violentas e ainda não praticam a unidade entre si. Tampouco se consideram irmãos, já que não reconhecem o mesmo Deus e único Pai.
Tornar esse desejo, expresso no salmo, em realidade depende, em grande parte, do modo como os seguidores de Jesus vivem o mandamento do amor. Seguir Jesus ou permanecer nele significa amar incondicionalmente. Significa amar como Jesus amou, fazendo do perdão a resposta definitiva ao ódio e à violência.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Jo 15,1-8): Permanecer em Jesus
O evangelho de hoje nos mostra os elos que formam a corrente do amor: o Pai, Jesus, os cristãos. Jesus nos mostrou quanto o Pai nos ama. Agora somos nós, os discípulos, que devemos mostrar ao mundo quanto experimentamos do amor do Pai por meio de Jesus. Para isso, é necessário que os membros da comunidade permaneçam unidos.
A metáfora da videira e dos ramos ilustra bem isso. Assim como os ramos da videira estão unidos entre si pelo tronco, os cristãos somente poderão estar vinculados uns aos outros se permanecerem no mandamento de Jesus, a saber, o amor. A maioria daqueles que se dizem cristãos ainda não atentou para o fato de que “permanecer em Jesus” não significa se tornar adepto de doutrinas, mas dar adesão a alguém, a uma pessoa concreta, Jesus. O mandamento que nos une a Jesus é o amor. O exercício do amor fraterno é o sinal distintivo do cristão justamente porque é a prova de sua comunhão vital com o Senhor.
Somente unido ao tronco o ramo pode viver e frutificar: “sem mim nada podeis fazer” (v. 5). Isso mostra não somente nossa dependência de Cristo, mas também a vontade dele de nos doar sua própria vida. E é impossível ter uma vida de comunhão com Cristo, que é o amor encarnado, sem que se produzam frutos de amor – manifesto não simplesmente pela eloquência ou pela multiplicação de palavras, “mas por atos e em verdade” (II leitura, v. 18).
2. I leitura (At 9,26-31): Permanecer na unidade
A leitura fala sobre desconfiança e sobre lealdade. O texto refere-se à chegada de Saulo a Jerusalém e afirma que todos tinham medo dele, pois não acreditavam que fosse discípulo de Cristo (v. 26). As pessoas começam a ter dúvidas sobre a sinceridade da conversão do perseguidor. Parece ser algo extraordinário que a ação de Cristo sobre o principal opositor da comunidade o tenha feito mudar de vida, por isso é tão difícil acreditar.
A conversão é possível a todos, mas converter-se não é apenas passagem da incredulidade para a fé, como muita gente pensa. É, antes de tudo, um exercício de saída do egoísmo para o crescimento no amor. Sob esse aspecto, a conversão não é acontecimento pontual na vida de uma pessoa, mas a vida inteira em progresso de santidade.
É comum desconfiarmos que alguém tenha mudado radicalmente de vida de um momento para o outro, à semelhança do ocorrido com Saulo. Mas quem realmente fez a experiência amorosa com o Mestre da Galileia pode ousar dar um voto de confiança e até mesmo um passo na direção do antigo inimigo da fé, ainda que isso traga dissabores e riscos à própria vida. Assim fez Ananias, e outros seguiram esse exemplo.
Dado o voto de confiança, a comunidade prossegue guiada pelo Espírito Santo, anunciando com coragem o evangelho. Ė importante que Saulo esteja unido aos demais apóstolos e sob a ação do Espírito, que realiza a comunhão entre os novos irmãos e as testemunhas oculares de Jesus. A efetivação da missão e o crescimento da comunidade são frutos dessa comunhão. Tanto a conversão do coração quanto a unidade de todos os membros do corpo, que é a Igreja, constituem uma única ação do Espírito Santo.
3. II leitura (1Jo 3,18-24): Permanecer no amor
Crer em Jesus é amar, afirma a segunda leitura. Amor que não se confunde com sentimentalismo de novela, mas se traduz em atos de amor eficaz em favor do próximo. Ė dessa forma que os discípulos mostram que permanecem em Jesus. A comunidade está sob um novo mandamento. No Antigo Testamento, o povo de Israel encontrava sua identidade no amor a Deus e no amor ao próximo como a si mesmo (cf. Dt 6,5; Lv 19,18). O novo mandamento dado por Jesus é que amemos como ele nos amou (cf. Jo 13,34; 15,12; 1Jo 3,23). Essa é a verdadeira identidade do cristão.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Um destaque maior na reflexão pode ser dado ao seguinte versículo: “E qualquer coisa que pedirmos dele a receberemos, porque guardamos os seus mandamentos” (1Jo 3,22).
Trata-se de boa oportunidade para corrigir alguns desvios pastorais de nossa época, principalmente no que tange à ideologia da prosperidade. Será que Deus assinou um cheque em branco para nós? Teria Deus nos dado a senha de seu cartão com crédito ilimitado? Seria Deus um gênio da lâmpada de um conto de fadas, pronto para realizar nossos desejos? Em um trecho mais adiante da primeira carta de João, fica claro que Deus nos concederá o que desejarmos se o pedirmos “conforme a sua vontade” (1Jo 5,14), ou seja, quando desejarmos o que Deus deseja.
Disse Jesus: “o que pedirdes ao Pai em meu nome, ele vos dará” (Jo 16,23); mas, para pedir a Deus qualquer coisa em nome de Jesus Cristo, é preciso estar primeiramente em consonância com o modo de ser de Jesus. Pedir algo a Deus em nome de Cristo é como se o próprio Cristo estivesse pedindo. Dessa forma, somente podemos pedir o que Cristo pediria. E o que ele pediria? “Pai… não seja feita a minha vontade, mas a tua” (Lc 22,42).
Depois de corrigir todo desvio de interpretação decorrente da ideologia da prosperidade, poderemos voltar ao nosso trecho de 1Jo 3,22, acrescentando-lhe as mesmas palavras de Jesus: “Pai, eu te agradeço porque me ouviste e eu sei que sempre me ouves” (Jo 11,41-42).
Publicado originalmente em Revista Vida Pastoral, maio-junho de 2015, Ano 56, Número 303 http://vidapastoral.com.br/roteiros/3-de-maio-5o-domingo-da-pascoa/
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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

segunda-feira, 27 de abril de 2015

O que significa a expressão "osso dos meus ossos"?

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

Em Gn 2,23, lemos: “Esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne” (Gn 2,23).

O termo hebraico ‘Etsem, que literalmente significa ossos, ganhou o significado metafórico de essência. A palavra aparece no relato do Gênesis, depois da criação da mulher, quando o homem, encantado com sua companheira, suspira e diz algo mais ou menos assim: “Agora sim. Esta é diferente das outras criaturas. Esta é das minhas; osso dos meus ossos!”.

Mas por que osso dos meus ossos e não pele das minhas peles ou músculo dos meus músculos?

Vejamos! Os ossos são o que há de mais interno; são nossa estrutura, o que nos mantém de pé. São os protetores dos órgãos vitais. São aquela parte de nosso corpo que ainda permanece quando o corpo entra em decomposição.

Em Gn 29,14, lemos: “Tu és meu osso e minha carne”.

Esta frase faz parte do relato que conta sobre a fuga de Jacó por medo das perseguições de Esaú (cf. o artigo “Esaú e Jacó: elogio à esperteza e à teimosia”). Chegando nas terras de Labão seu tio, Jacó é acolhido pelos parentes. Tal foi a alegria de Labão de conhecer um dos seus que logo exclamou: “tu és meu osso!”. Labão usa essa palavra para expressar o parentesco que o ligaria a Jacó (Gn 29,14).

Em Ex 1,9, o faraó diz: “O povo dos filhos de Israel é mais numeroso e mais forte (‘atsoum) do que nós”. O povo é ‘atsoum, e o faraó fica preocupado como se sua própria existência fosse ameaçada diretamente pela essência (‘etsem) destas pessoas.

Em Nm 22,6, lemos: “Peço que venhas amaldiçoá-lo, pois é um povo mais forte (‘atsoum) que eu”. Balaque também reconhece uma força (‘atsoum) em Israel e quer pará-lo a todo custo pela maldição de Balaão (Nm 22,6).

Em Ez 37, o profeta vê um vale de ‘etsem. uma planície cheia de ossos de um exército que, pelo aspecto da descrição, estão ali faz muito tempo. Deus faz uma promessa a Jeremias: esse exército vai ficar de pé novamente, vai ressuscitar. A essência do povo que está no exílio da Babilônia vai reanimar-se: esta é a garantia do Senhor (cf, Ez 37,11-14). A imagem descrita por Ezequiel vem certamente de Nm 13–14: os guerreiros de Israel são mortos e seus ossos permanecem no vale. São ossos de um exército de rebeldes. Também rebeldes são aqueles que, tempos depois, foram parar no exílio, mas seu ‘etsem é forte, eles terão sua esperança de volta.

No Novo Testamento, o evangelista João, antes de afirmar que Jesus ressuscitou, retoma o livro dos Salmos e diz que seus ossos permaneceram intactos. “E isto aconteceu para plenificar a Escritura: Nenhum dos seus ossos será quebrado” (Jo 19,36 / Sl 34,20 [21]). João quer garantir que a essência de Jesus – o Filho de Deus – não está em risco; sua vida está garantida, pois seus ossos estão inteiros. Com esta expressão João quer também indicar que Jesus é tamim, ou seja, o animal da oferta (Ex 12,46), assim como o justo que completou sua jornada (dérek tamim). João quer usar o temo ossos para falar sobre a ressurreição e dizer que Jesus é tamim (completo, íntegro).

Bom, pelas citações acima percebemos que osso na bíblia significa a essência da pessoa, sua integridade, sua completude. Podemos concluir que, ao colocar na boca do primeiro homem a expressão “osso dos meus ossos” para falar da mulher, o escritor sagrado está garantindo que homem e mulher tem a mesma essência, a mesma força, a mesma condição de vida, a mesma dignidade.

Publicado originalmente em: http://fiquefirme.com.br/multimedia-archive/5-o-que-significa-a-expressao-osso-dos-meus-ossos/

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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quinta-feira, 23 de abril de 2015

A mulher foi criada da costela do homem?

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Em Gn 2,7 se afirma: “Então Deus formou adam da adamah".

Geralmente as bíblias não traduzem o termo adam, apenas o transliteram, e fica parecendo que é sempre o nome de um homem, Adão. Mas traduzem o termo adamah por terra ou barro. Isso causa confusões. De fato, o termo adam não é usado exclusivamente para expressar raça humana, além desse conceito, também é nome próprio do personagem dos dois textos da criação. Mas, no contexto desse versículo, a melhor tradução para adam é “humano” ou “ser humano’, pois quando o texto hebraico quer designar especificamente o masculino usa o termo ish. O ser humano, adam, é aquele que foi tirado do “humus”, da terra, pois adamah significa o solo bom pra trabalhar, a terra que pode produzir bom fruto. Com essa afirmação de Gn 2,7, o autor quer dizer que o primeiro ser é indefinido sexualmente e deve ser escrito com minúsculas (adam).

Em Gn 2,22 encontramos: “E da tsela‘ de adam, Deus fez a fêmea”.

Da mesma forma, as bíblias geralmente traduzem tsela‘ por costela. Contudo, tsela‘ significa metade, banda, cada margem de um rio. Tsela‘ pode ser o conjunto das costelas, do lado esquerdo ou do lado direito. A melhor tradução seria: “de uma das metades de adam (humano), Deus fez a fêmea”. Da outra metade, é óbvio, Deus fez o macho. Não precisa nem falar o óbvio.

Em Gn 2,24, lemos: “Portanto, o macho (ish) deixará seu pai e a sua mãe, e se unirá à fêmea (ishah), e serão uma só existência”. Ou seja, as duas metades se encontram e se tornam adam, o ser humano original. O ser humano completo, a existência plena, não pode ser definida a partir do macho ou da fêmea, mas da beleza e da união de ambos. É bom lembrar que esses mitos, parábolas e lendas, presentes no Livro do Gênesis, fazem parte de outras literaturas do Oriente próximo, muito mais antigas que a bíblia. E até mesmo Platão (Ocidente), que é filósofo, menciona o ser humano original como hermafrodita e posteriormente dividido em duas metades. Ou seja, o ser humano completo não se encontra no gênero masculino, mas na união das duas partes.

Jesus usou Gn 2,24 para falar sobre o divórcio (Mc 10,7-9). Vejamos: a mulher era a única prejudicada pela separação naquela época (apesar de a Lei mosaica lhe dar alguma garantia, coisa que raramente era posta em prática pelo marido). A mulher poucas vezes tinha direito à herança[1], não tinha pensão do marido, não tinha emprego, não tinha nada… Uma vez repudiada pelo marido, duas opções apenas pareciam viáveis: mendigar ou prostituir-se para viver[2]. E não era raro isto acontecer. Às vezes o homem, dava carta de divórcio à mulher e deixava-a desprotegida, sem nenhum amparo[3]. Jesus, sabendo do domínio do macho, protege a mulher: “nada de dar cartas de divórcio às mulheres; a humanidade completa está na igualdade das relações e não no domínio masculino”.

Voltemos ao Gênesis. A parábola da criação do homem e da mulher é muito romântica quando bem traduzida e não há machismo algum no relato que diz que Deus fez a mulher da metade de adam. Há muito menos ainda a pretensão da bíblia de dizer como o homem e a mulher surgiram (origem do ser humano, no sentido científico). O texto quer apenas explicar a atração entre o masculino e o feminino. Esse tipo de literatura quer refletir sobre questões existenciais, por isso os antigos mitos são muito usados hoje pela psicologia e filosofia.

Mas é aí: A mulher foi feita da costela de Adão ou não? Sim e não! Sim, se entendemos que esse Adão (Adam) é o ser humano original e a costela (tsela’) é a metade dele, assim como o homem também foi feito da outra metade. Não, se entendemos que Adão é um homem e se pensamos que a costela é uma vértebra do seu corpo. Obvio até! A anatomia do corpo humano já mostrou isso: não falta uma costela no gênero masculino, como o relato da criação poderia fazer pensar aos desavisados

[1] Dos pais, caso não tivesse irmãos, a mulher ficava com a herança (cf. Nm 27,1-11). Do marido, em caso de morte, a mulher herdava por meio do filho, mesmo que este fosse criança.

[2] Uma terceira opção era casar-se novamente, mas esta não era coisa muito fácil para a repudiada.

[3] Tomemos cuidado ao ler estas linhas para não efetuarmos um juízo muito rigoroso com os orientais, afinal as leis deles são mais antigas e – em alguns aspectos – mais justas que as dos ocidentais, que só recentemente tem leis para defesa da mulher.
* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quarta-feira, 22 de abril de 2015

O sangue e a vida na Bíblia

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Os antigos pensavam que a vida estava no sangue e Israel participava da mesma opinião, por isso tinha três prescrições acerca do sangue (Gn 9,4 e Dt 12,23)
1ª) é proibido comer o sangue ou a carne com sangue;

2ª) é proibido derramar o sangue de outra pessoa;

3ª) é proibido oferecer sangue em sacrifício aos deuses.
Mas como os antigos chegaram a essa concepção de que a vida estava no sangue? Os passos para se chegar a esta concepção foram os seguintes:

Os antigos tinham uma medicina elementar. Mas eles notaram que o bebê só pode ser considerado vivo depois que inspira (e chora). Observaram também que uma pessoa só poderia ser considerada morta depois que expirasse (e não mais inspirasse). Deduziram que a alma estava na respiração. Então: a alma era o ar. E entrava na pessoa pelo nariz, quando esta nascia, e saia pelo nariz, quando esta morria. Então eles se perguntaram: “Durante a vida onde fica a alma na pessoa? Ou seja, que parte do corpo é a sede da alma?”.

E veio uma nova observação da realidade: os soldados feridos em batalha sangravam. O sangue, ao sair do corpo deles, borbulhava. Logo, o sangue continha ar. Enquanto existia sangue no ferido ele permanecia vivo. Mas quando o sangue saía por completo, ele morria. Logo, a religiosidade chegou à seguinte conclusão: a alma é o ar. Entra no corpo pelo nariz e vai para o sangue. Logo concluíram: a alma está no sangue. Daí a proibição de Deuteronômio. O texto de Dt 12,23 diz o seguinte:

“Somente empenha-te em não comeres o sangue, pois o sangue é a vida; pelo que não comerás a vida juntamente com a carne“

Mas que vida é esta? Em hebraico, vida é nephesh, significando também personalidade, individualidade, instinto ou emoção. A Septuaginta traduziu nephesh (vida) para o grego com a palavra psyché, que deu psique. A vulgata traduziu psyché por anima. Então, em latim, ficou assim a tradução: “hoc solum cave ne sanguinem comedas sanguis enim eorum pro anima est et idcirco non debes animam comedere cum carnibus” ( Dt 12,23). Ânima significa alma ou vida, ânimo, aquilo que anima. Logo, alguns entenderam que comer o sangue era comer a alma. Daí para a polêmica sobre a transfusão de sangue foi um pulo. Há quem condene a transfusão de sangue baseando-se no texto de Dt 12,23, argumentando, segundo a tradução da vulgata, que o sangue é a alma, e, assim sendo, quem está doando sangue está doando a alma para outrem e quem está recebendo a doação está, evidentemente também, recebendo a vida do outro. Entendem, pois, que a transfusão de sangue é o mesmo que comer o sangue.

Compreensão equivocada, certamente, que necessita de correção. A alma não está no sangue, nem em nenhuma outra parte localizável do corpo. A alma é a pessoa, sua identidade, seu modo de ser, o conjunto de características natas e adquiridas que fazem a gente ser quem é diante de si, dos outros e de Deus. Não é porque doamos sangue para alguém que tiramos um pedaço da alma. Muito menos, ao receber uma doação de sangue, recebemos a alma do doador. Recebemos sim sua generosidade, sua gratuidade em partilhar a vida e isso diz algo sobre ela, mas sua alma não vem no sangue recebido.

Que fique bem claro: na bíblia, não há nenhuma proibição quanto à transfusão de sangue. Naquele tempo, ninguém pensava sobre a possibilidade de doar sangue para outrem. Há na Bíblia uma proibição de comer sangue, o que é compreensível para aquele tempo, conforme vimos acima. Tal proibição vem de uma compreensão equivocada acerca do sopro de vida que habita em nós. Sobre a transfusão de sangue é bom dizer uma palavrinha. Para quem precisa receber sangue, nada de escrúpulos ou culpa. É só um procedimento médico como qualquer outro. Para quem doa sangue é bom lembrar: não há maior amor do que dar a vida pelo outro. Doar sangue é sinal de amor e desprendimento. Podendo ajudar, por que não fazê-lo?




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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

sábado, 18 de abril de 2015

Profetas e Profetismo em Chave Histórica 05 (final)

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 
(Material Didático do Curso de Extensão na Faculdade Católica de Fortaleza)

Texto anterior clique aqui


4. Profetas após o exílio da Babilônia: Em 539 a.C., Ciro, após unir a Pérsia e a Média, conquistou a capital Babilônia e expandiu o império até o Egito e o que hoje é a Turquia. O Edito de Ciro (538 a.C) foi um instrumento para a política de colaboração espontânea.

4.1 Trito Isaías (Is 56-66): no final do exílio o entusiasmo inicial, cedeu lugar a novos erros, por isso o profeta animou a reconstrução da religião e não só da cidade e do Templo. Sua mensagem é exigente e utópica (60—61;66). Denuncia a ganância (Is 56,11) e exige a justiça (Is 56,1). É o mais aberto: para os estrangeiros (Is 56,4-6), sobre o sacerdócio (Is 61) e os eunucos (Is 56,3-4).

4.2 Ageu (חגי, festivo): a reconstrução do Templo tinha parado por 15 anos (Samaritanos, Esd 4). Quando Dario I subiu ao trono, Ageu viu uma oportunidade para recomeçar. A instabilidade das nações é um sinal do fim dos tempos (Ag 2,21-22).
4.3 Zacarias 1-8 (זכריה, o SENHOR se recorda): Depois de uma menção ao passado e de uma exortação à geração presente (Zc 1,1-6), há oito visões (1,7-6,8), uma história simbólica de Israel, e uma consolação aos repatriados. A ação simbólica da coroação de Josué (Zc 6,9-15) descreve a era messiânica do Reino de Deus.

4.5 Malaquias (מלאכי, meu mensageiro): é desenvolvido sobre três grandes temas: as faltas dos sacerdotes e dos fiéis (1,6-2,9; 3,6-12); o escândalo dos matrimônios mistos (2,10-16) e o Dia de Javé, o dia de purificação dos maus e triunfo dos justos (3,1-5.13-21). Foi Malaquias quem profetizou a vinda do novo Elias, o último dos profetas.

4.6 Abdias (עבדיה, servo do SENHOR): consiste de um capítulo: sobre a destruição de Edom (Ab 1,1-16) e a restauração de Israel (Ab 1,17-21). Este é o menor livro do Antigo Testamento.

4.7 Joel (יואל, o SENHOR é Deus): Contém duas partes: desastre agrícola (1-2) e o Dia do Senhor (3-4). Há uma profecia Messiânica, que é citada no discurso de Pedro (At 2,39).

4.8 Zacarias II (Zc 9-14): a campanha de Alexandre Magno e a destruição de Tiro são descritas em Zc 9,1-8. Em 9,13, “gregos” (Yonia) são designados como potência hostil ao povo de Deus. Assíria e Egito mencionados em Zc 9,11-12 e 10,8-11 significam simbolicamente a Diáspora inteira.

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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).