terça-feira, 2 de abril de 2024

A realeza em Israel: uma construção literária e ideológica

 


RESUMO

A realeza em Israel é um tema complexo, sua duração foi curta, mas os seus desdobramentos foram sentidos em vários momentos da história do povo e está consignada em diversos livros do Antigo Testamento alcançando também o Novo Testamento. Os livros que nos apresentam, de maneira mais direta, como se deu a construção da Realeza são: 1/2 Samuel e 1/2 Reis. Nesses livros, pode-se acompanhar desde o início da monarquia, com seu primeiro rei Saul, até sua consolidação com Davi. Pretende-se, aqui, apresentar a realeza como um processo de construção literária e ideológica que vai se tornando concreto por meio das narrativas das figuras reais, Saul e Davi, com suas trajetórias de conquistas por meio das batalhas com os seus diversos inimigos, entre eles, o principal, os filisteus. A realeza se configura à medida que os reis Saul e Davi se impõem no cenário político de Israel. Os personagens Saul e Davi encarnam a imagem da realeza em Israel com suas fraquezas, limites e possibilidades. O curso da monarquia em Israel revela a fragilidade desse regime que oscila entre seguir os seus vizinhos, através da exploração do povo mais simples, ou fazer cumprir a justiça e o direito conforme orientação dada pelas leis de Israel.

PALAVRAS-CHAVE: Realeza. Construção Literária. Ideologia.Saul. Davi

 

Introdução

Este trabalho pretende apresentar a imagem da realeza em Israel consignada nos livros de 1 e 2 Samuel e 1 e 2 Reis, centrados na construção dos personagens Saul e Davi, os dois primeiros reis com suas fraquezas, seus limites e suas possibilidades. Primeiro se fará uma pequena exposição sobre a realeza em Israel para, em seguida, considerar a trajetória do primeiro rei de Israel, Saul, como ele surge na cena política e como seu nome é confirmado como soberano. Também se verá o período vivido por Davi, desde sua chegada à corte, as várias tradições acerca do seu estabelecimento junto a Saul, bem como muitas intrigas surgidas ao redor de seus atos. Com isso, será possível perceber como as imagens de Saul e Davi estão vinculadas na apresentação do início da monarquia revelando as controvérsias nascidas da instalação desse novo regime e atestada nos livros de 1 e 2 Samuel. As personagens Saul e Davi estão entrelaçadas às peripécias da realeza daí a necessidade de analisá-los por esse viés. Não se pode conhecer como se deu a construção literária da realeza sem acompanhar esse dois personagens em suas trajetórias pessoais.

 

1. A realeza em Israel

Quando se lê os livros de 1 e 2 Samuel percebe-se a tensão em relação a monarquia em Israel.Pelas narrativas apresentadas no livro de Juízes, que narram o período anterior a realeza, sabe-se que era necessário o estabelecimento de um novo modelo de organização após a ocupação da terra. A instalação na terra exige algumas novas medidas para o grupo, é preciso defender os limites territoriais com um exército militar, bem treinado, sustentar esse exército e toda a nova estrutura estatal decorrente dessa nova organização.

O início da monarquia foi tenso, de um lado a aceitação e de outro a rejeição. Vejamos um pouco mais de perto como se deu esse novo tempo. É imprescindível ter claro que esse olhar sobre a monarquia veio muitos séculos depois de sua instalação. Essa história foi escrita quando a realeza estava consolidada, nos reinados de Davi e Salomão, portanto testemunha a perspectiva do reino de Judá. A monarquia unificada só ocorreu nos reinados de Davi e Salomão, logo após a morte de Salomão, durante o reino de Roboão, houve a separação, ficaram dois reinos: Israel com as tribos ao Norte e Judá ao Sul. Essa divisão revela a fragilidade dessa união.

Diante disso, é evidente a necessidade de apresentar os motivos da instalação da monarquia, bem como suas controvérsias políticas, econômicas e religiosas. Isso tudo se torna mais claro quando nos detemos nas figuras de Saul e Davi, com suas ambiguidades, ambivalências, possibilidades e limites. Observa-se que Saul e Davi representam a imagem do novo regime. A construção da imagem da monarquia passa pela construção literária desses dois instigantes personagens.

 

2. Saul, o primeiro rei de Israel

O personagem Saul é apresentado no livro de 1Samuel em três passagens diferentes: na busca pelas jumentas de seu pai (1Sm 9-10,16), na sua indicação para o cargo de rei que se dá de forma popular na Assembleia de Mispa (1Sm 8; 10,17-24), e na batalha de Jabes. Nessa última, são confirmadas suas qualidades guerreiras para assumir o posto de rei (1Sm 11). Há uma unção de Saul feita pelo profeta Samuel, um sorteio por tribo e, por fim, uma comprovação de suas qualidades de liderança e força no combate aos inimigos. Essa insistência em assegurar a legitimidade da escolha de Saul como primeiro rei pode revelar uma tentativa de dissipar as discordâncias em relação à monarquia (NOEL, 2002, p.10). Parece que a preocupação dos autores em mostrar a unificação das tribos e a escolha de um rei legítimo, escolhido por Deus e ratificado pelo povo, era necessária na narrativa dos inícios da realeza em Israel.

Porém, paira sob a figura de Saul várias questões, como ele pode passar de escolhido de Deus a um rei rejeitado. Parece que se está diante de dois tipos de escritos diferentes, um mais crônico, ligado aos anais da realeza que apresenta os feitos dos reis durante o seu reinado e outro etiológico que procura explicar o motivo pelo qual Saul teve uma morte tão trágica e porque seus filhos não deram continuidade ao seu reinado em uma monarquia hereditária como era o costume entre os povos vizinhos (GILBERT, 1984, p.20).

A imagem que se tem do período de Saul não é do tempo de seu exercício como soberano e sim uma retroprojeção do tempo dos reis que vieram depois dele e da organização existente nos séculos posteriores com a consolidação da realeza em Israel. Saul é apresentado com uma imagem complexa que conjuga a de um juiz carismático, capaz de liderar as tribos e a de um rei sem um reino estruturado. Ele representa bem essa transição do período dos juízes para a monarquia. Sua realeza é bastante contestada, no entanto, em 1Sm 14,47-52 é apresentado um balanço positivo dele como rei, mostrando os seus feitos, a defesa das fronteiras, o afastamento dos inimigos e a união das tribos.

Como ocorre ao final de cada reinado, o texto bíblico apresenta o parecer sobre o rei que finaliza seu tempo. Mostrando que, para os autores do livro de 1 Samuel, a realeza de Saul, o primeiro rei de Israel, é inquestionável por que sua eleição foi por escolha divina e aprovação popular. No entanto, fica evidente que sua figura foi ofuscada pela imagem construída pelos escribas tanto de Davi quanto de Salomão, filho de Davi que possivelmente escreveram as histórias dos inícios da monarquia. A avaliação do reinado de Saul não é muito positiva, ele foi apresentado como muito fraco no estabelecimento das instituições. A escassez de informações sobre Saul revela que a sua realeza não estava bem estruturada e certamente não tinha um escriba, um sacerdote, uma guarda pessoal do rei, como ocorre nos reinos de Davi e Salomão.

 

3. Davi, o rei segundo o coração de Deus

Davi foi o segundo rei de Israel, tendo ascendido ou usurpado o trono, dependendo das tradições. Davi surge na cena política de maneira aparentemente despretensiosa. Ele tinha irmãos no exército de Saul e, ao visitar esses irmãos, escuta o desafio de um guerreiro temido e aceita duelar com ele (1Sm 17,1-54), depois casa com a filha do rei, passando a fazer parte da família real. Em outra versão, ele é ungido pelo profeta Samuel em uma cerimônia privada somente com membros de sua família (1Sm 16,1-13). Há ainda a tradição de Davi como músico, tocando para acalmar o rei de seus ataques de nervos. A imagem de Davi como rei escolhido por Deus após a rejeição de Saul é bem construída pelos escribas da corte, secretários de seu reinado e de Salomão, seu filho. Do mesmo modo que era necessário explicar o início da monarquia, é imperativo explicar a chegada de Davi ao trono após a trágica morte de Saul e de seus herdeiros legítimos. Pois, é imperioso isentar Davi da extinção da família real de Saul, limpar sua imagem de qualquer vinculação a usurpação do trono (MINETTE DE TILLESSE, 1987, p.20). As traduções que compõem a acessão (ou usurpação) de Davi tem várias fontes tais como: a tradição da Arca, a tradição de Saul e a tradição de Samuel. Essas fontes estão presentes em 1-2 Sm.

Davi entra para a história como um grande rei.Ele conseguiu consolidar a realeza, defender os limites territoriais, conquistar novas cidades cobrando delas tributos, organizar um exército profissional e estabelecer Israel definitivamente como uma monarquia nos moldes tradicionais de seus vizinhos.Olhando um pouco mais detalhadamente as narrativas, é possível perceber algumas brechas que podem revelar que essa construção apresenta algumas falhas na perfeição dessa figura do rei Davi. Para assegurar a realeza de Davi era preciso mostrar a rejeição de Saul da parte de Deus e afirmar a unção de Davi. Observa-se que mesmo após a morte de Saul, o reino de Davi começa inicialmente por Judá (MINETTE DE TILLESSE,1987, p.20). Após uma tentativa de aliança com o chefe do exército de Saul e a morte de todos os descendentes de Saul o rei Davi reina sobre Judá. A união das tribos do norte e do sul nunca existiu de maneira pacífica (2Sm 5-7), ela parece muito mais uma construção posterior, da época de Salomão. Essa unidade era tão frágil que na primeira crise mais grave,após a morte de Salomão, no governo de Roboão, houve o cisma que dividiu o reino em dois: Israel e Judá (GILBERT, 1984, p.25). Não se pode esquecer que a história da realeza é contada do ponto de vista do reino de Judá, visto ter sido escrita pelos escribas desse reino, em uma tentativa de reconstruir uma história unificada.

 

4. Saul e Davi: Israel e Judá, reino único ou uma tentativa frágil

 Acompanhar a história da realeza em Israel seguindo Saul e Davi parece bastante interessante do ponto de vista literário. Saul representa o inicio da monarquia com todas as suas dificuldades e fraquezas. Um começo conturbado no enfrentamento aos inimigos amalecitas e filisteus. A morte de Saul em batalha junto com seus filhos revela toda a fragilidade do novo regime.

Com Davi, desde o seu aparecimento, observa-se que há uma tentativa de provar que ele é escolhido por Deus após a rejeição de Saul. A trajetória de Davi é marcada por ambiguidades na apresentação de suas atitudes: o casamento com Micol, a filha de Saul; o seu melhor amigo ser o filho de Saul, Jonatas; a fuga da perseguição do rei, se escondendo entre os inimigos de Israel, os filisteus. Davi não luta ao lado de Saul e de seu amigo Jonatas, e eles acabam morrendo. Como fugitivo do reino, ele reúne ao redor de si, segundo o texto, todos os insatisfeitos com o rei, formando um bando de foras da lei que vive de oferecer segurança aos donos de terras.

Os redatores parecem tentar, a todo custo, tornar a figura de Davi confiável para o povo, embora o adultério com Betsabeia e o subsequente assassinato de Urias, não tenha sido omitido, prova que havia tradições favoráveis e outras que não se importavam em apresentar as manchas de seus atos. Davi se torna primeiro rei em Judá e depois, por solicitação popular, reina sobre Israel. A presença do profeta Gad serve para confirmar que isso é a vontade divina. A união de Israel e Judá sobre o comando de Davi é apresentada como um projeto de Deus realizado por Davi (SICRE, 2015, p.185).

 

Considerações finais

Saul e Davi são dois importantes personagens na literatura bíblica. Suas ações e a repercussão delas ultrapassam os livros onde estão inscritos. Toda a literatura bíblica reconhece essas duas importantes figuras presentes na tradição da realeza. Como afirmado anteriormente, acompanhando a vida dos dois, pode-se perceber como a trajetória de cada um espelha a própria história da realeza, desde seus inícios com Saul, com suas fraquezas militares e falta de organização burocrática, até a consolidação com todo o aparato militar implementado por Davi, com a constituição de uma corte nos moldes dos reinos vizinhos. Tanto o começo da realeza em Israel é problemático com textos claramente contrários a ela, como o reino de Davi parece não unânime entre o povo. A imagem de Davi não é vista somente de maneira positiva, há várias de suas ações que são contestadas por alguns dentro do reino, em especial pelas tribos do Norte, também chamadas de Israel. O que vai se tornando evidente é que a imagem positiva ou negativa tanto de Saul como de Davi revela muito mais que características pessoais, elas desvelam o rosto da monarquia que os redatores, responsáveis por reunir essas diversas tradições desejavam apresentar na construção da fé de Israel. Naquele momento específico, literatura e política caminharam de mãos dadas na construção da história da realeza em Israel.

 

Referências

ABADIE,Philippe et all. Biblia y Realeza. Editorial verbo divino: Navarra-España, 1994.

BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2000. 9ª impressão.

GILBERT, Pierre. Los libros de Samuel y de los Reyes: de la legenda a la historia. Editorial Verbo Divino: Navarra, 1984.

MINETTE DE TILLESSE. Gaetan. Revista Bíblica Brasileira. Fortaleza: 1987.

NOEL, Damien. Em tiempos de los reyesde Israel y de Judá. Editorial Verbo divino: Navarra, 2002.

SICRE, Jose Luis. De Davi al Messia: textos básicos de la esperanza mesiánica. Editorial Verbo Divino: Navarra, 1995.

SICRE, Jose Luis. Introdução ao Antigo Testamento. Vozes: Petrópolis, 2015.



Ir. Luciene Lima Gonçalves é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, é doutoranda em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020).  É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007). E-mail: lucienelima324@gmail.com