quarta-feira, 20 de maio de 2015

Envia teu Espírito, Senhor, e renova a face da terra

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*

Roteiro Homilético para a Solenidade de Pentecostes



I. INTRODUÇÃO GERAL

O Espírito Santo é fonte e força do amor mútuo. É também sinal de que estamos vivendo um novo tempo. Jesus culminou o caminho dele aqui na terra e foi glorificado por Deus Pai, mas não nos deixou sozinhos: deu-nos o mesmo Espírito que o ungiu e o animou na missão.

A missão do Espírito que nos foi dado nos leva à verdade completa, faz-nos entrar em comunhão com os seres humanos e com Deus. O Espírito é presença de Deus nos caminhos da história por meio da Igreja, que é movida por ele. Ao unir os seres humanos no amor, o Espírito nos dá a certeza do que será no final dos tempos, a comunhão plena no Reino de Deus. Por causa desse amor que nos põe em comunhão, há partilha dos bens, há oração sincera, há evangelização. Em função da comunhão, o Espírito nos faz falar e compreender todas as línguas, porque a língua universal é o amor e sem ele somos apenas “sinos que retinem” (1Cor 13,1). Por isso, crer no Espírito significa crer no futuro da vida, na renovação radical de toda a terra, no caminho do amor que supera as dificuldades deste mundo e nos dirige ao amor em plenitude.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 20,19-23): Recebei o Espírito Santo

O texto do evangelho de hoje enfatiza desde o início o aspecto da comunhão: era o primeiro dia da semana, o dia do Senhor, e os discípulos estavam reunidos. As portas fechadas simbolizam o medo da hostilidade existente lá fora. São os inícios de uma Igreja que vive a fragilidade e as dúvidas, que necessita da presença do Senhor. Mas Cristo ressuscitado está com eles, sua presença se faz visível e ele coloca-se no centro, no meio deles.

“A paz esteja convosco!” é o início do diálogo por iniciativa do Ressuscitado. Os discípulos têm medo, e isso os deixa desconfiados. Mas Jesus os conforta com sua palavra e presença sensível, é o verdadeiro mestre que eles haviam seguido, possui as chagas que são os sinais gloriosos de sua vida terrena. Quem faz a experiência com o Ressuscitado sabe que ele não é uma fantasia.

Os discípulos estão reunidos como Igreja, e o Cristo lhes oferece o perdão e lhes envia em missão. Antes de tudo, a Igreja é a comunidade que recebe o perdão de Cristo e o distribui ao mundo. Evangelho e perdão não estão separados, pois a “boa notícia” que a Igreja dá ao mundo é que, em Jesus Cristo, o ser humano está perdoado por Deus, pois o Filho de Deus triunfou sobre a causa do pecado, a saber, o egoísmo.

A um mundo atormentado por injustiças, guerras e violências, Cristo oferece a paz fundadora e criadora que combate a raiz do pecado. A uma comunidade fechada por causa do medo, o Cristo estende a graça da vida dele, tornada princípio da missão universal. Jesus é a paz para aqueles que o recebem e para todos.

A Páscoa torna-se Pentecostes, pois o Ressuscitado sopra sobre seus discípulos dizendo: “Recebei o Espírito Santo” (v. 22). Um gesto que alude a uma nova criação, uma vez que, no princípio, Deus havia soprado sobre o ser humano, tornando-o ser vivente (cf. Gn 2,7). Agora o gesto de Jesus nos indica que o Cristo pascal leva ao ápice a criação que fora começada.

O Evangelho de João une Páscoa e Pentecostes em um mesmo mistério: a manifestação pascal de Cristo se torna efusão do Espírito do Ressuscitado sobre a totalidade da Igreja. A Páscoa significa que a morte de Jesus pela humanidade abre um caminho de amor e de transformação do mundo. E Pentecostes é o dom da Páscoa, é ter o mesmo Espírito de Jesus, é viver à luz do mesmo sopro vital que o animava.

2. I leitura (At 2,1-11): Todos ficaram cheios do Espírito Santo

Os discípulos, em grande número, estavam reunidos, perseveravam em oração enquanto aguardavam a vinda de Cristo, a qual associavam com o fim dos tempos. Ali onde esperavam o julgamento divino sobre o mundo, tiveram a grata surpresa de participar de uma ação que era exatamente o contrário do que pensavam. De fato, os profetas haviam previsto um derramamento do Espírito no final dos tempos, e unido a isso aconteceria o julgamento das nações e grandes catástrofes da natureza (como está escrito em Joel 2,28-32, citado em At 2,17-21).

Reunidos em oração, estavam dispostos a enfrentar o julgamento de Deus sobre as nações e morrer num grande acontecimento cósmico que revelaria a glória de Cristo. Mas o que aconteceu com a efusão do Espírito foi a comunhão entre todos os povos e culturas, a comunicação eficaz entre as línguas diferentes. Num primeiro momento, podemos pensar que a experiência de comunhão dá-se em plano limitado, no interior da comunidade; no entanto a comunhão realizada em Pentecostes transborda as limitações religiosas e nacionais e se expande ao longo de toda a terra.

Muitas leituras atuais desse texto bíblico enfatizam a experiência com o dom de línguas. Até mesmo se denominam de pentecostais grupos e igrejas que fazem algum tipo de experiência atribuída ao Espírito Santo. Mas se lermos atentamente esse texto, veremos que se trata de um dom para a evangelização, para a missão, para a expansão da comunidade, e não para o crescimento pessoal com conotações de verticalidade na experiência espiritual. Nesse texto não se afirma que os membros da comunidade oraram em línguas (como é mencionado por Paulo com relação a uma prática da comunidade de Corinto). O texto diz que as pessoas falavam idiomas diferentes e todos se compreendiam; o oposto da narrativa sobre a torre de Babel. O enfoque no dom de línguas vem do termo “línguas estranhas”, que significa o mesmo que “línguas estrangeiras”. Além da possibilidade de evangelização do mundo inteiro, porque o Espírito Santo capacita a Igreja para proclamar o evangelho em todas as culturas e idiomas, vemos nesse texto a comunhão entre todos os seres humanos, a unidade na diversidade.

O Espírito supera as velhas divisões entre os seres humanos. Ultrapassa as estruturas arcaicas da sociedade fundada em princípios de imposição dos mais favorecidos sobre os mais frágeis. A partir de Pentecostes, os seres humanos podem vincular-se por meio da graça de Deus, com base no dom do Espírito. A comunhão de todos os povos, que a partir de agora se realiza, é sinal e presença dos tempos escatológicos, meta da história humana que caminha para Cristo. A história humana, repleta de competições e de opressão de uns sobre os outros, realiza uma trajetória, marcada pelo Espírito do Cristo ressuscitado, para a comunhão plena de toda a humanidade num Reino de fraternidade e de paz.

3. II leitura (1Cor 12,3b-7.12-13): Batizados num só Espírito e formando um só corpo

O Espírito de Cristo une os seres humanos, a partir de Deus, em perdão e comunhão, por aquilo que são e não pelo que têm ou fazem. Até então não tinha havido nenhuma comunhão real, mas concorrência e competição, busca de influência, enfim, divisão generalizada. Agora, e somente agora, a partir da unidade de Cristo que nos torna irmãos, filhos do mesmo Pai, começa a história da graça que une a todos no amor e na liberdade. Há distribuição de carismas, mas é o mesmo Espírito; diversidade de ministérios, mas é o mesmo Senhor; divisão de tarefas, mas é Deus que opera tudo em todos. O Espírito é um só e une todos os seres humanos numa comunidade que não se baseia na pura experiência interior, em ideias ou princípios gerais, mas na comunhão e na confiança mútua.

O Espírito congrega pessoas muito diferentes umas das outras que, em vez de fazer concorrência entre si, se servem mutuamente e são felizes em realizar isso no amor. Trata-se de uma comunhão realizada pelo próprio Deus, e não por meio de um cooperativismo à maneira de um sindicato ou clube que une pessoas pelas tradições, costumes sociais ou culturais. Como o corpo é um só e tem muitos membros, assim é Cristo. Porque todos nós fomos batizados num só Espírito, formando um só corpo.

A comunhão realizada pelo Espírito Santo não se apoia em tradições sagradas nem em laços que vinculam as pessoas por aspectos culturais, econômicos ou políticos. Os cristãos não formam uma nação, um estado. A comunidade cristã tampouco é uma associação cultural, um clube espiritual, uma ONG com fins delimitados. A comunidade cristã quer suscitar uma comunhão não governamental ou política, mas de vida entre todos os seres humanos, fundada no Cristo.

Os cristãos querem formar uma comunidade de amor universal, em gratuidade, a partir dos mais pobres e excluídos, abrindo-se a todos os povos da terra, sem empregar meios de poder político-militar ou qualquer tipo de imposição.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Há um tipo de vida que é morte, feita de lutas e concorrências, de inveja e egoísmo. Mas há um tipo mais elevado de vida feito de doação, gratuidade, acolhida, comunhão… Essa é a vida que se desvela na trajetória da Igreja, a vida do Espírito. A Igreja, comunidade fundada na comunhão realizada pelo Espírito, não propaga a exclusão, ao contrário, distribui o perdão que vem de Deus. Não nega o perdão a ninguém.

A Igreja somente pode ser considerada comunidade de Jesus se é sinal e fonte de perdão e, portanto, de inclusão. A própria Igreja expressa o perdão, encarna-o e o anuncia ao mundo. Portanto, onde o perdão é oferecido há perdão, e onde a Igreja mostra que não há perdão isso ocorre porque as pessoas ainda se afrontam e se confrontam. Somente onde a luta por justiça ainda não chegou ao seu término e quando a justiça ainda não tenha sido instaurada é que a Igreja retém o perdão, para que se possa realmente continuar lutando até edificar um mundo justo de paz e fraternidade universais.

Publicado originalmente em: http://vidapastoral.com.br/roteiros/24-de-maio-pentecostes/


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

segunda-feira, 11 de maio de 2015

Anunciai a boa-nova a toda criatura

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Roteiro Homilético para a Ascensão do Senhor



I. INTRODUÇÃO GERAL

Hoje a Igreja celebra a solenidade da Ascensão do Senhor. Estritamente falando, não é uma nova festa, mas a plenificação da Páscoa. Estar sentado à direita do Pai não é tanto um triunfo ou um prêmio que Jesus recebe por bom comportamento e por ter realizado a tarefa que lhe foi proposta. O triunfo de Cristo é o ponto aonde deve chegar cada ser humano na plenitude de suas potencialidades. Celebramos a elevação do ser humano antecipada na ascensão de Cristo.

Ressuscitou, subiu ao céu, está sentado à direita do Pai são termos e expressões cujos significados denotam que a missão terrena de Jesus culminou. Tudo o que ele veio realizar foi feito. Agora a comunidade de seus seguidores deve continuar a missão de edificar o Reino de Deus neste mundo. Por isso, as leituras de hoje nos oferecem uma síntese da missão dos cristãos, fundada em três afirmações inseparáveis: 1) ressurreição: Jesus venceu o pecado e a morte; 2) ascensão: Jesus está junto do Pai, exercendo autoridade sobre a criação e a história; 3) esperança: Jesus voltará (parusia) inesperadamente para plenificar todas as coisas.

A missão dos cristãos situa-se entre a ascensão e a parusia, anunciando e edificando o Reino de Deus até que Cristo venha.

II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mc 16,15-20): Ide pelo mundo inteiro

O evangelho de hoje enfatiza o mandato missionário recebido por todo cristão. Primeiramente, oferece um resumo das experiências que os discípulos tiveram com o Ressuscitado, seguido do mandato missionário no qual são elencados os elementos ou sinais principais da missão dos cristãos: expulsar demônios, falar todas as línguas, ser imune a qualquer veneno e curar os enfermos. Percebemos aqui que a missão dos cristãos possui os mesmos elementos ou sinais da missão de Jesus. Aparentemente, é uma missão impossível. É necessário compreender cada um desses elementos. Antes de tudo, trata-se de sinais e não de demonstrações (muito menos midiáticas), os quais têm por objetivo indicar que os missionários entraram em um campo novo de ação e para isso receberam uma autoridade originada no Pai, ao lado do qual está Jesus. Significa que é uma ação dos cristãos, mas não unicamente deles: é uma ação de Deus regenerando este mundo por intermédio da obra evangelizadora dos cristãos.

Expulsar os demônios em nome de Jesus significa, primeiramente, continuar a sua luta contra o mal, como foi enfatizado ao longo do Evangelho de Marcos. Não é tanto fazer exorcismos, mas instaurar um reino de justiça, fraternidade e paz em oposição ao mal, ao pecado e ao egoísmo. É continuar a luta de Jesus em cada circunstância da vida, enfatizando o poder do bem contra o mal, e não o contrário. Uma forma de exorcismo que cada um pode fazer é evitar desanimar por causa do aumento da violência e prestar mais atenção nas ações das pessoas de bem que fazem grandes mudanças na sociedade.

Falar novas línguas, no contexto narrativo dessa leitura, não significa a oração em línguas, pois se trata não de falar com Deus – não é um texto sobre oração –, mas do mandato missionário de falar às pessoas do mundo inteiro. Significa que os cristãos farão um esforço para não impor uma cultura ou modo de pensar, mas anunciarão o evangelho, a boa notícia de Jesus, levando em conta os destinatários, seu contexto histórico-social e cultural.

Serpentes e venenos que não causam nenhum mal não significam que o cristão é blindado para que nada de ruim lhe aconteça, como quer nos iludir a ideologia da prosperidade. Ao contrário, os cristãos estão sempre à mercê de muitos sofrimentos e perseguições, como aconteceu com Jesus e como vemos na vida dos santos. Bem entendidas, essas palavras de Jesus, em linguagem apocalíptica de luta contra o mal, significam que os verdadeiros cristãos estão imunes às serpentes e venenos do egoísmo que matam pela exclusão social, pelo preconceito e falta de aceitação do outro, pela calúnia, corrupção e desonestidade. É desse veneno maligno que os verdadeiros cristãos estão imunes e por ele jamais serão destruídos.

Imporão as mãos sobre os enfermos e eles ficarão curados. Essa expressão nos situa de novo no centro da atividade de Jesus – por onde ele andava, curava os enfermos. Os cristãos são, antes de tudo, crentes, isto é, pessoas unidas de tal forma a Jesus, que compartilham do seu poder de curar. Longe de pensar que isso se refere aos santos ou a uns poucos privilegiados, a cura das enfermidades é um sinal que acompanha todo aquele que crê. Não se trata tanto de um dom carismático, mas da cura dos corações marcados pelo egoísmo e pelas feridas do desamor. Todos nós podemos escolher entre ferir ou curar. E podemos pôr em prática essa palavra de Jesus por meio de nossas palavras e ações no compromisso com o outro.

Resumindo: num mundo perigoso (venenos e enfermidades), os cristãos deverão ser capazes de expandir a Palavra em toda língua, superando o poder do mal e ajudando os outros a viver (curas). Desse modo, o anúncio do evangelho se converterá em ação transformadora, sinal de que o mal cede lugar ao Reino que estará se expandindo na terra.

2. I leitura (At 1,1-11): Sereis minhas testemunhas até os confins do mundo

Por que ficais parados olhando para o céu? O que o Cristo tinha de fazer aqui entre nós ele já fez. A partir de agora, cabe a nós desenvolver a nossa vida particular e coletiva, assimilando e vivendo os ensinamentos que Jesus nos transmitiu. A fé cristã implica responsabilidade. Cristo nos legou a boa-nova do Reino, agora cabe a cada um de nós, pessoalmente e em comunidade, responder a ele com nosso modo de viver. Não estamos abandonados, há uma promessa: o poder do Espírito que nos capacita a testemunhar até os confins do mundo.

A chamada de atenção feita pelos “homens vestidos de branco” significa que o verdadeiro seguimento de Jesus não envolve ficar parado olhando para o céu, esperando que Cristo faça a evangelização do mundo. A parte dele já foi feita, agora nos compete levar ao mundo inteiro, a toda criatura, a sua mensagem. Tornar o Reino de Deus algo real no nosso mundo.

O envio messiânico universal é a ata de fundação da Igreja. Jesus envia seus discípulos a todo o mundo conforme um programa, um esquema de universalidade que aparece em vários textos do terceiro evangelho e dos Atos dos Apóstolos: partindo de Jerusalém, passando pela Judeia e Samaria e chegando a todo o mundo, a todo cosmo, no idioma grego. Significa que a evangelização é um processo, um desenvolvimento que somente chegará ao seu término quando todos tiverem recebido a mensagem de Jesus.

A missão cristã se estende desde o princípio a todo o mundo, a todos os povos e culturas. Trata-se de um contexto universal; desaparecem as distinções entre os povos, já não há um povo único de Deus, mas todos os povos pertencem a Deus e com ele estabelecem aliança. A missão é para a humanidade, para o cosmo aberto à palavra dos missionários.

3. II leitura (Ef 1,17-23): Somos continuadores da missão do Cristo

A segunda leitura afirma que a Igreja é o Corpo de Cristo. O que isso significa? Jesus foi elevado ao âmbito do Pai e recebeu autoridade sobre todas as coisas. Os discípulos saíram pelo mundo proclamando o evangelho com a cooperação do Senhor, que confirmava a palavra com sinais. A ascensão e a ausência física de Cristo tornam possível novo tipo de presença na comunidade de seus discípulos: somente quando Cristo “se vai” é que a Igreja começa a sentir a força dele atuando por meio dela. A comunidade dos discípulos, quer dizer, a Igreja é a presentificação do Cristo ressuscitado. Cristo se corporifica no mundo mediante seus discípulos, ou seja, o modo pelo qual se pode ver Cristo evangelizando o mundo são os evangelizadores. A Igreja o torna visível para o mundo.

Da mesma forma que não há corpo vivo sem cabeça, assim também não há Igreja sem a ação de Cristo ressuscitado agindo no mundo por meio dela. Portanto, podemos dizer que Jesus está no céu à direita do Pai, mas, ao mesmo tempo, está presente, coatuando por meio dos fiéis.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Na “oração para depois da comunhão”, o presidente da celebração diz: “Deus eterno e todo-poderoso, que nos concedeis conviver na terra com as realidades do céu, fazei que nossos corações se voltem para o alto, onde está junto de vós a nossa humanidade”. Essa oração expressa muito bem o sentido profundo da Ascensão do Senhor. Nós somos introduzidos no seio da Trindade. Jesus, o homem verdadeiro, está junto do Pai. Com ele nossa humanidade já está lá. A Ascensão do Senhor é a celebração da plenificação de nossa humanidade junto de Deus. Já convivemos aqui na terra com esse grande mistério.

Que a comunidade não desvirtue a celebração desse grande mistério com uma devoção mariana. Atribuir o mês de maio a Maria não deve implicar a sobreposição de uma devoção à grandeza do mistério que celebramos hoje. Portanto, os cânticos não devem ser marianos, muito menos a homilia. O foco dessa celebração é Cristo, que leva nossa humanidade para o seio da Trindade. Mesmo em uma paróquia consagrada a Maria e mesmo que se esteja em pleno festejo, a ênfase deve ser dada à ascensão de Cristo e à nossa ascensão com ele para junto do Pai.


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Fui eu que vos escolhi

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Roteiro Homilético para o 6o. Domingo da Páscoa


INTRODUÇÃO GERAL
O povo de Israel tinha consciência de ser povo escolhido por Deus. Mas também foi afirmado várias vezes pelos profetas e pelos salmistas que as nações eram convidadas a entrar na mesma dinâmica de Israel, ou seja, adorar o Deus único, vivo e verdadeiro. Reza o salmista: “Aclamai o Senhor, ó terra inteira, cantai-lhe hinos de louvor”. Sendo assim, qual é a identidade de Israel, já que todos os povos são chamados a se congregar como povo de Deus? Basicamente, a vocação e o papel de Israel em meio às demais nações é ser instrumento de Deus para que todos possam conhecer o Deus da aliança e com ele fazer comunhão. Essa é a mesma vocação da comunidade dos discípulos de Jesus ao longo da história, até que ele volte.

COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Jo 15,9-17): Escolhidos para amar

O evangelho de hoje nos fala sobre a Igreja como lugar da amizade. Jesus nos é apresentado como alguém que confidencia aos seus amigos tudo o que ouviu do Pai (v. 15). Conforme a palavra de Jesus, a Igreja não se fundamenta em relações de poder entre senhor e escravo, nas quais alguns se impõem sobre os outros, no saber e no poder. Jesus superou essa mentalidade do mundo onde uns mandam e outros obedecem; ele convocou uma família, não fundou uma empresa. Somos vocacionados para amar, para viver em comunhão, partilhando uns com os outros aquilo que somos e o que temos.

Jesus confia a nós tudo o que ouviu do Pai, dando-nos o exemplo para que confiemos uns nos outros e sejamos transparentes uns com os outros, a fim de formar verdadeira “comum-unidade”. Se levarmos em conta esse exemplo de Jesus, a Igreja será círculo de fraternidade, local de acolhida do diferente, espaço onde todos se sentirão à vontade para ser o que são, família da qual ninguém será excluído.

Contudo, esse exemplo de Jesus encontra inúmeras resistências em nossa época. Ainda resta um caminho longo e difícil para a inclusão e a aceitação do diferente. Faz-se cada vez mais urgente voltarmos ao evangelho e darmos atenção às palavras de Jesus.

Há grupos dentro da Igreja que querem impor um modo de ser Igreja bem diferente daquele que foi pensado e desejado por Jesus. São grupos autoritários que se definem como únicos conhecedores da essência do cristianismo e defensores da doutrina. No entanto, suas práticas de exclusão se chocam com o agir de Jesus, que se fez amigo de todos, não teve pretensões autoritárias nem tencionou ser o único conhecedor das palavras que ouviu do Pai, pois as partilhou com todos.

E o que Jesus teria ouvido do Pai? Ou melhor, qual seria a vontade do Pai que Jesus cumpriu e nos mandou observar? Na verdade, Jesus a sintetizou em poucas palavras: viver o mandamento que ele deixou, a saber: estar aberto e livre para amar concretamente. Se estivermos dispostos a isso, estaremos em sintonia com ele e, portanto, em sintonia com o Pai.

2. I leitura (At 10,25-26.34-35.44-48): Deus ama a todos, não faz acepção de pessoas

A primeira leitura traz o relato de um dos aspectos constitutivos da Igreja: a universalidade da mensagem de Jesus. Cornélio nos é apresentado pelo texto dos Atos dos Apóstolos como o primeiro não judeu a ingressar na comunidade dos seguidores de Jesus. Primeiramente, isso significou um despertar para a concepção de que a missão de Israel e a da Igreja jamais seriam excludentes, fato expresso na palavra de Pedro: “Deus não faz acepção de pessoas” (v. 34). A atualidade dessa palavra de Pedro é inquestionável. Que ela possa ressoar nos corações e mentes daqueles que pretendem excluir como impuros os que foram purificados por Deus por meio do mistério pascal de Jesus Cristo.

O gesto realizado por Pedro deve se converter em imagem da Igreja aberta a todas as pessoas, como autêntico testemunho do amor de Deus a todos.

3. II leitura (1Jo 4,7-10): Deus nos amou primeiro

O fundamento de toda a argumentação desse texto bíblico é a afirmação de Jesus no Evangelho de João: “Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único, que está no seio do Pai, é quem o deu a conhecer” (Jo 1,18). Por isso o Antigo Testamento proíbe fazer imagens de Deus (Dt 5,8; Ex 20,4), porque sua imagem é o homem e a mulher (Gn 1,26-27). O Deus invisível se revela no amor humano. Como, na mentalidade hebraica, a imagem significa a presença e a representatividade, o ser humano, em suas diferenciações de gênero, constitui o lugar da presença de Deus no mundo. A presença divina está onde existe o amor humano. Mais ainda, o ser de Deus é o amor, como origem e sentido de tudo que existe.

Não vemos a Deus, mas escutamos sua palavra e podemos fazer sua vontade. Por isso o texto nos exorta a amar uns aos outros para podermos reconhecer nossa origem, nossa experiência mais original. E como podemos viver esse amor se somos tão frágeis e egoístas? A força que nos liberta do egoísmo não é iniciativa nossa, mas de Deus. Ele nos criou capazes de amar. Não fomos nós que o amamos primeiro, mas foi ele quem nos amou antes de toda a criação e nos convida a entrar nessa sintonia de amor, nessa comunhão, que nos põe em colaboração com ele na sua obra de redenção.

Em que consiste o amor? (v. 10). O amor é a graça que sempre nos precede, que não podemos conquistar nem criar, pois nos é oferecida como dom. Somente quem fez a experiência da prioridade do amor pode falar sobre Deus.

III. PISTAS PARA REFLEXÃO

O amor não apenas nos precede, mas nos resgata. O texto de 1Jo 4,10 usa um termo fundamental da tradição sacrifical do Antigo Testamento, “propiciação” (oferenda de expiação, cf. Lv 16) pelos nossos pecados. Já não precisamos sacrificar um animal; o amor do Filho, na gratuidade e entrega de si mesmo, redime-nos do pecado. Isso é o que pode mudar nossa vida, pois do amor surgimos, do amor renascemos, libertando-nos do pecado e da morte.

Algumas pessoas querem substituir os sacrifícios de animais por promessas extravagantes que fazem aos santos. No entanto, o que agrada a Deus é o amor; numa palavra, o amor é o único mandamento que Jesus nos deixou. O amor resume todo o cristianismo, e o amor não exclui ninguém.

Os ritos, os sacramentos, a missa, os sacramentais etc., tudo isso existe para nos conscientizar de que devemos estar dispostos e livres para amar as pessoas em todas as circunstâncias do cotidiano. Vamos à Igreja para sintonizar com o Deus de amor e mais profundamente viver essa sintonia em cada momento da vida.


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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).