quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Dei Verbum: a Revelação e sua Transmissão

Nosso estudo tem seu centro na reflexão sobre a revelação e sua transmissão na Constituição Dogmática Dei Verbum: sobre a revelação divina[1]. Por isso analisamos mais detalhadamente este ponto da Constituição. Nosso trabalho resume-se em fazer uma hermenêutica de texto dos dois primeiros capítulos do documento supra citado, acentuando o segundo. Iniciamos situando a revelação no momento em que ela se tornou problemática e vemos, em seguida, os esforços empreendidos, em alguns momentos específicos, para encontrar respostas a esse problema, como Trento, Vaticano I e finalmente Vaticano II. Este último apresenta uma enorme evolução na compreensão de revelação. Percorremos todo esse caminho para percebermos as mudanças e tentarmos descobrir se nossa fé repousa sobre fundamentos sólidos, que nos permitam novas perspectivas para nossa ação[2]

1 A Revelação como problema

O problema em relação à Revelação tem sua origem no século XVI com o início da Modernidade e a Reforma Protestante totalmente imbuída do espírito moderno. A Reforma Protestante foi a configuração religiosa da Modernidade e tinha por fundamento os pressupostos teológicos da Sola Scriptura, Sola fide e Sola gratia[3].

A posição dos reformadores era tipicamente moderna, enquanto o acento estava no sujeito. A fé era entendida como uma atitude do sujeito que crê em Deus sem necessitar da mediação da Igreja. Para os reformadores só a graça é necessária à santificação. Os sacramentos não são mais considerados eficazes à salvação e a Escritura passa a ser o único meio pelo qual Deus manifesta ao fiel seu plano de salvação[4].

Os reformadores colocam-se dessa forma em total oposição à Igreja Católica. Esta pensa a revelação e a fé de forma objetiva. Nesse momento a Igreja Católica rejeita a modernidade por ver-se questionada em suas bases. Toda sua teologia estava fundamentada na objetividade da revelação. Deus revelou sua vontade através de decretos eternos, este seria o conteúdo da revelação. Por isso ela é objetiva. A realidade para ela se faz presente e deve ser aceita pela fé e assimilada pela razão. O nó da questão é que até então o paradigma que regia todas as reflexões, sobretudo a religiosa, tinha em Deus o seu centro. A Modernidade se constrói em um novo paradigma onde o centro é o homem. A principal questão nesse momento era: se o centro de tudo é o homem (sujeito) como e onde fica Deus? Como pensar a revelação?

A Igreja Católica se coloca na defensiva porque a Modernidade questiona, mas não dá ainda nenhuma resposta. O problemático na postura da Igreja é que ao colocar-se em oposição total à Modernidade ela nega também o que há de mais positivo nesta: a autonomia do sujeito. A subjetividade que torna o homem capaz de aderir e relacionar-se com o Deus que se revela. A Igreja insiste em demonstrar que é possível uma justificativa racional para as “verdades reveladas”. Em relação aos pensadores modernos em geral o questionamento era tipicamente teológico, por isso a legitimidade da preocupação da Igreja. Mas frente aos reformadores o centro da questão não era tanto a teologia, mas a posição da Igreja como a “única Igreja verdadeira”[5] e por isso, portadora das verdades divinas.

2 A Revelação nas reflexões posteriores

2.1 Trento e Vaticano I: a problemática das duas fontes

Os reformadores consideravam sua posição um retorno à Fonte do Cristianismo, portanto como fidelidade à Palavra de Deus e esta posição foi compreendida pela Igreja Católica como revolta contra a instituição legítima. As posições se polarizaram.

Tentando responder aos questionamentos dos reformadores a Igreja Católica realiza o Concílio de Trento.  Nele os embates se tornam acirrados. A Igreja tem de justificar-se racionalmente, já que é questionada não mais nos conteúdos da fé, mas nos próprios fundamentos. Em contraposição a Sola Scriptura a Igreja romana afirma o “Evangelho” e também a tradição como lugar da revelação divina. Trento afirma ser o “Evangelho a fonte da revelação”[6].

Diz ainda que o Evangelho é “fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral” e enquanto tal encontra-se nos “livros escritos e nas tradições não-escritas”. Em meio a essa problemática o Concílio Vaticano I insere as categorias de “natural” e “sobrenatural” em relação à revelação divina, que até então não havia sido discutida. A palavra revelação não era ainda um termo técnico em teologia. Utilizava-se para tanto os termos “Evangelho de Jesus Cristo”, “Economia da salvação” e “Palavra de Deus”.

A Dei Filius é uma tentativa de equilibrar as oposições no confronto com a Modernidade. O capítulo II da DF sobre a revelação é uma expressão clara do exercício contínuo visando impedir posições extremadas. É uma resposta tanto aos racionalistas que acreditavam poder conhecer todas as coisas, inclusive Deus somente pela razão quanto aos fideístas, partidários da afirmação de que a revelação divina era “o meio” de conhecer a Deus. A Dei Filius afirma que Deus pode ser conhecido “à luz natural da razão humana a partir das coisas criadas”, mas também diz que “Deus quis dar-se a conhecer e também seus decretos eternos à espécie humana por outro caminho: o sobrenatural”[7]. Esse é o período em que a Igreja Católica tenta dialogar com os pensadores modernos em geral e também com os reformadores.

A “recepção” que se seguiu a Trento foi a da existência de duas fontes da revelação e não uma como está no texto. O Vaticano I “recebe” o concílio de Trento seguindo esta interpretação distorcida. Justifica-se tal recepção distorcida pela ambiguidade da própria formulação do texto que permite uma interpretação desse tipo. Volta-se então ao esquema pré-tridentino do partim ... partim. O Vaticano I é, portanto, a continuação da recepção distorcida do Concílio de Trento. Embora tentasse dialogar com a Modernidade a lógica do Vaticano I ainda era medieval. Esta interpretação causou na Igreja Católica um fechamento danoso.

2.2 Vaticano II: a reflexão sobre a Revelação

Enquanto o Vaticano I considerava a Modernidade uma ameaça assustadora à Igreja e à humanidade, o Vaticano II a pensa como uma novidade podendo suscitar algo de bom. A Modernidade fazia parte da vida dos fiéis e não dava para negá-la simplesmente, nem considerar tudo o que dela derivasse como erro. O Vaticano II tem um novo espírito, uma nova lógica. Esse novo é constatado em especial na Dei Verbum. Nela veremos a nova compreensão de revelação e a superação do esquema das duas fontes, o denominado partim ... partim.

No proêmio da Dei Verbum já encontramos as categorias que vão perpassar e reger o documento. Vemos assim o que é importante ressaltar e o que será a iluminação para os fiéis seguirem sua caminhada de fé na Igreja. A primeira mudança observada versa sobre o conteúdo da revelação. Não mais se adere a “verdades” (decretos eternos)[8], mas a uma pessoa: Jesus Cristo, em quem se consuma a revelação divina[9]. Deus revela-se em plenitude no seu Filho pelo Espírito. Esta revelação se faz por meio de ações e palavras. Deus se revela na história.

O segundo ponto a ser refletido pelo documento é a transmissão da revelação divina e aqui a transmissão assume um papel essencial. Transmissão passa a ser uma categoria chave na compreensão da nova lógica da fé. A palavra aparece no documento quatorze vezes: uma no proêmio, nove vezes no capítulo II, que trata da transmissão e quatro no capítulo V, em referência a interpretação da revelação no Novo Testamento. Ela é citada de diferentes modos ao longo do documento. Com esta categoria vemos mudar na Dei Verbum o esquema de compreensão em relação ao problema “das fontes”, que havia sido assumido pelo tridentismo e pelo Vaticano I.

No § 7 retoma-se a questão expondo como em Trento o “Evangelho” enquanto Fonte[10] da verdade salutar e esta devia ser transmitida a todas as gerações, por isso, Jesus Cristo ordenou aos apóstolos que pregassem a todos, os dons divinos recebidos. Embora retorne a Trento e cite-o, as primeiras referências são textos bíblicos. Na sequência deste parágrafo a Dei Verbum recorda que os apóstolos deixaram os bispos como seus “sucessores” na tarefa de transmitir o “Evangelho”. Contudo ressalta que Tradição e Sagrada Escritura são o “espelho” no qual a Igreja contempla a Deus. A Igreja reconhece assim o seu lugar no dinamismo da transmissão da revelação, ou seja, o Magistério não está acima nem em igualdade com a Tradição e menos ainda com a Sagrada Escritura.

Já no § 8 somente na primeira parte a palavra “transmissão” aparece três vezes em duas formas. Aqui ela assume um caráter dinâmico explicitando como a Igreja transmite o que “é” e o que “crê” tendo na sua base a pregação apostólica que deveria conservar-se por uma sucessão “contínua”. A ação da Igreja é apresentada como fidelidade à advertência dos apóstolos aos fiéis para que mantivessem as “tradições” recebidas. O documento faz aqui uma referência a 2Ts 2,15, na qual Paulo exorta os fiéis a manterem as tradições de forma oral e/ou escrita. Na sequência deste parágrafo é esclarecido um ponto importante na visão do Vaticano II: a ideia de progressão. Não se pode mais falar de verdades inquestionáveis. “Tanto a percepção das coisas como das palavras progride”. Uma revelação que se faz humanamente na história carrega em si a mudança, a progressão, a caminhada, ou se quisermos arriscar ainda mais, uma atualização que se faz de acordo com o tempo histórico.

No desenrolar do texto encontramos outro ponto importante na compreensão da relação entre Tradição e Sagrada Escritura. A constatação de que foi a Tradição apostólica que definiu o cânon das Escrituras. A Tradição viu nesses livros a configuração de sua fé. Assim a Sagrada Escritura passou a ser a norma para as tradições posteriores.

O § 9 da Dei Verbum aparece no capítulo como uma conclusão de toda a questão da transmissão como categoria que supera a problemática das fontes. Ele volta a afirmar uma fonte de onde derivam tanto a Sagrada Escritura quanto a Sagrada Tradição, colocando-as em estreita relação e comunicação. A Palavra de Deus é a Fonte da revelação que é transmitida pela Escritura e pela Tradição.

3. À guisa de conclusão

Colocar o acento numa palavra que até então não tinha peso, poderia parecer infantil. Mas, analisando o texto vemos como essa mudança não apenas deslocou o foco de algo já conflituoso, mas ainda abriu novas possibilidades de interpretação aos acontecimentos e vivência da fé. Todo o documento é perpassado por essa nova lógica, por esse novo espírito. A Dei Verbum retomou categorias bíblicas que especificam e clarificam elementos da nossa fé. Categorias “viciadas” e carregadas de conceitos abstratos não dão conta de uma fé que é resposta a uma revelação histórica concreta.

Aparentemente o capítulo II da Dei Verbum sobre a transmissão da revelação acabava no nono parágrafo. A própria redação do texto insinua isso, conclui a questão. Contudo, ainda é apresentado mais um parágrafo. É confuso e amplamente ambíguo. Retoma categorias estranhas ao restante do capítulo e ressalta o papel do Magistério como interprete legítimo do “depósito sagrado da palavra de Deus”[11].

Nesse parágrafo percebemos mais claramente a desconfiança e insegurança de alguns padres conciliares diante da mudança de postura. Percebemos a dificuldade de conciliar posições contrárias num mesmo texto. Do mesmo modo que aconteceu com a recepção do Concílio de Trento percebemos a dificuldade de uma legítima recepção do Vaticano II.

Ainda assim é possível dizer que enquanto reflexão sobre a revelação, não há mais o que discutir. A Dei Verbum solucionou a questão profunda do sentido da Revelação. Contudo vemos e experimentamos no nosso dia-a-dia um retorno a uma mentalidade pré-Vaticano II. Necessitamos fazer o que fez este concílio. Ele não jogou com as palavras como pode parecer à primeira vista. Mas valorizou o que é importante para nossa fé. Não devemos compreender o uso da palavra “transmissão” como um mero jogo linguístico para fugir do problema. Ela deve ser entendida como dinamicidade. Transmitir a revelação é deixar que Cristo se revele na historicidade e individualidade do fiel, mediante a relação dinâmica que se dá entre o Cristo que se propõe e o fiel que adere ao projeto de salvação.

Essa categoria não se esgota no texto conciliar, é aberta. Ela está presente na dimensão pastoral. Evangelizar é transmitir a experiência única e sempre atual do projeto divino de salvação e este não é senão libertação. Mas libertação precisa ser compreendida agora na sua raiz. A exemplo do Vaticano II devemos voltar à Bíblia e dela tirar a vida que brota numa “teologia da liberdade”[12].

 

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

LIBÂNIO, João Batista. Igreja contemporânea: Encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

A FÉ CATÓLICA: Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro, 2003.

CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a revelação divina. São Paulo: Paulinas, 1966.

COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996.

SESBOUE, Bernad; THEOBALD, Christoph. Histore des Dogmes, t. IV. La parle du salut. Paris: Desclée, 1996 (trad. Portuguesa: História dos Dogmas)


[1] CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. São Paulo: Paulinas, 1966.

[2] Cf. Lc 1,1s.

[3] LIBÂNIO, J. B. Igreja contemporânea. Encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p. 13.

[4] Ibid., p. 14.

[5] [5] Conclusão a que chegou a Demonstratio Catholica, na apologética clássica. In: A apologia nos tempos modernos. Entre dogma e teologia. Apostila do curso de Teologia Fundamental

[6] Sobre o Concílio de Trento confira o capítulo terceiro de SESBOUE, B; THEOBALD, C. Histoire des Dogmes, t. IV. La parle du salut. Paris: Desclée, 1996 (trad. Portuguesa: História dos Dogmas)

[7] Sobre o Vaticano I ver A FÉ CATÓLICA: Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias, Rio de Janeiro, 2003

[8] Cf. Dz 3004. In: apostilas do curso de Teologia Fundamental

[9] DV, I, 2

[10] DV, II, 7

[11] DV, II, 10.

[12] Cf. COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI: Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996. Todo o segundo capítulo desse livro é uma análise que o autor faz da 'teologia da liberdade’ em Paulo. O autor fala de um “evangelho da liberdade”


Ir. Rita Maria Gomes possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), onde lecionou Sagrada Escritura. Atualmente é professora na Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da Sagrada Escritura.


domingo, 14 de novembro de 2010

Jesus: o Messias (III)

Rita Gomes, nj*

3. O Reino de Deus: projeto de vida para todos

Nesse ponto, seguiremos basicamente uma obra de Jon Sobrino.[1] Uma indicação prévia e útil refere-se ao significado de “Reino” nos diversos momentos da história do “povo de Deus”. O primeiro priemiro esclarecimento a respeito da expressão “Reino de Deus” versa sobre seu caráter tardio. Israel não a conhecia até a apocalíptica, contudo, conhecia a relação com Deus através da idéia de realeza divina. Essa noção existia em todo Oriente Antigo. Na Monarquia, Israel conheceu a deturpação dessa realeza divina, igualando-a com a dos reis terrenos.

Com o exílio o povo passou por uma grave crise existencial. Consciente de ser o povo escolhido, este perdeu sua terra e foi exilado na Babilônia. Com a derrota de seu rei, acreditavam que seu Deus havia sido derrotado. Essa era a concepção dos povos, em última instância quem era derrotado era o deus daquele pova. A apocalíptica seguinte escatologizou e universalizou o Reino de Deus.

A partir daí começam as esperanças messiânicas. Estas conhecerão mais de um viéis. Existiam os que esperavam um messias davídico que instauraria o “Reino de Javé”. A corrente sacerdotal esperava um messias de acordo com suas convicções e conseqüentemente um Reino correspondente. O Reino vindouro era assim consequencia das diversas formas de esperança no messias.

Há uma relação constitutiva nas noções de Reino e de Messias. Um implica o outro e da mesma forma, um explica o outro. Partindo da relação existente entre Messias e Reino pode-se compreender os diversos títulos atribuídos a Jesus e que nos revelam, cada um a seu modo, uma “faceta” do Cristo. Os títulos são uma forma de tentar dizer quem é Jesus.

Seja como for todos esperavam a instauração do “Reino de Deus” como um reino de justiça para Israel e no seio do próprio povo de Israel.[2] Israel compreendia a realeza divina como ação de Deus na história e essa ação era em seu favor, frente aos grandes impérios e também aos povos menores, enquanto seus inimigos.

Jesus ao iniciar sua vida pública (Mc 1,14; Mt 4,17; Lc 4,18) o faz anunciando o Reino de Deus. Como judeu, Ele se insere na grande tradição judaica da esperança por um reino de justiça, pois traz as marcas da dominação sofrida por seu povo, império após império.

O Reino de Deus para Jesus é a realidade última, ou seja, Deus agindo na história. E porque é assim, o Reino de Deus só pode ser evangelho, boa notícia. Em Mt e Mc evangelho quase sempre refere-se ao Reino. Mesmo quando fala de Jesus o faz em relação ao que Jesus oferece com sua vida e sua práxis (Mc 1,1; 1,14; 8,35; 10,29; 23,10; 14,9; Mt 4,23; 9,35; 24,14). Lc só cita o evangelho nos Atos dos apóstolos.[3]

Nesse ponto nos afastamos um pouco de Sobrino, pois ele continua sua reflexão pela “via do destinatário.”[4] Embora válida e rica, busco uma reflexão que vá ao encontro de todos aqueles que de uma maneira ou outra não fazem parte de unia elite. Não só de uma elite política, econômica, mas sobretudo de uma elite convencional.[5] No tempo de Jesus eram as prostitutas, os leprosos, os cobradores de impostos, os soldados. Os evangelhos estão cheios de exemplos e dispensa maiores explicitações.

Jesus com seu modo de agir, acolheu e libertou verdadeiramente o povo porque conferiu-lhe dignidade. Fez com que as pessoas se reconhecessem dignos, respeitáveis, por serem pessoas. Isso possibilitou sua libertação. Muito foi feito pela Teologia da Libertação, mas muito foi esquecido e negado por ela. De forma especial, negou o aspecto afetivo da pessoa, parou no social, no universal e esqueceu o singular.

O povo tomou certa consciência da realidade opressora, no caso da América Latina. Mas somente na questão política de governos militares. Hoje vemos um povo tornado escravo de seu próprio ser. A maior dificuldade enfrentada hoje nas pastorais é exatamente essa. Parece que as pessoas desistiram de lutar. Não se sentem capazes nem dignas de tomar certas posições. Acomodou-se com a ideia de que Deus veio para libertá-lo, que está do seu lado, mas espera sempre que alguém faça algo em seu lugar, tome decisões e responsabilize-se. Não tomou consciência da filiação divina que lhe confere uma dignidade única e possibilita uma compreensão de si e do outro. Não é possível libertar um povo se este não se reconhece liberto. Ele precisa primeiro reconhecer que ele é capaz de ser livre. Que é um ser para a liberdade.

Jesus quando se aproximava dos excluídos de seu tempo disse-lhe que a situação em que estavam era injusta e que tinham que fazer isso ou aquilo. Não dava soluções. Aproximava-se e acolhia o dom que era o outro. Diante de Alguém que quebrava as convenções gratuitamente, se rendiam, se sentiam afetados. Os questionamentos que certamente surgiam de tais situações é que levavam as pessoas a repensarem suas vidas e atitudes e tomarem coragem de agir de forma diferente. E não falamos de conversão de uma vida de pecado.

Quem já experimentou, encorajar alguém a tomar uma atitude e viu o resultado, sabe o quanto é importante a consciência de saber-se capaz. O reconhecimento de Deus na pessoa de Jesus vinha dessa liberdade que tocava o mais íntimo do ser humano. Quando propus o título deste ponto como sendo o Reino de Deus, um projeto de vida para todos, não foi por negar ou não reconhecer certa parcialidade existente na Escritura. Foi por crer que Deus ao se revelar propõe-se a todos. E os que o reconhecerem e forem afetados por Ele, não continuarão suas vidas do mesmo modo. Na sua raiz é parcial, mas o seu projeto não é excludente. Quem não o reconhece, não o aceita e coloca-se fora do Reino, fora do projeto de vida plena.


Conclusão

O messianismo de Jesus é mais que nunca atual. O maior problema do homem hodierno é ele mesmo. O homem é cada dia menos homem. Jesus é à maneira paulina o Messias que vem trazer à salvação. Salvação enquanto vida em Deus e seu reino é Reino de Deus porque reconhecimento e aceitação da ação de Deus na história. Ação essa que precisa da colaboração do homem para se instaurar. Não é possível a instauração do Reino de Deus sem uma adesão do homem, sem o seguimento do Cristo. Assinalamos que seguir o Cristo é seguir Jesus no seu Mistério Pascal.

O fato de Jesus já ter vencido a morte não nos autoriza a vivermos alheios à realidade terrena. Toda nossa dignidade reside no fato de Jesus assumir nossa humanidade para chegarmos a realidade divina. Mas, tudo que constitui nossa humanidade deve ser integrado em nossa vida e nossa práxis. Seguir Jesus é procurar a adequação com a realidade própria do ser humano (nascimento, crescimento, sofrimento, alegrias, morte e claro, ressurreição).

O início do reinado de Deus é indiscutivelmente interior. Só quem conseguiu deixar Deus reinar em seu interior e assim transformá-lo é capaz de contribuir com a instauração do Reino de Deus na vida dos outros e das comunidades. Concretamente, exigindo e construindo um reino de justiça para todos. Um reino onde cada ser humano assuma o seu lugar como co-responsável pela atualização da realidade do Cristo, nos “cristos”. Em Cristo somos também “messias” e devemos assumir nosso papel na salvação, vida plena dos outros.


Notas:
*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1]Jesus, o Libertador I -A História de Jesus de Nazaré. Vozes, Pelrópolis, 1996.
[2]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 111.
[3]SOBRINO, J. Op. Cite, p.121-122.
[4]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 123.
[5]Utilizo esse termo para designar tudo o que hoje é tido como normal ou esperado das pessoas em sociedade.


Referências Bibliográficas

BARBAGLIO, G. et alii. Os Evangelhos (1). Loyola: São Paulo, 1990.
THEISSEN, G. — MERZ, A., O Jesus histórico: Um manual São Paulo: Loyola, 2002.
SOBRINO, J., Jesus, o Libertador I: A História de Jesus de Nazaré. Vozes: Petrópolis, 1996.
SOBRINO, J., Jesus, o Libertador II: A Fé em Jesus. Ensaio a partir das vítimas. Vozes, Petrópolis, 2000.
MARQUES, V. , Apostila do Curso de Corpus Paulinum. Primeira Epístola aos Coríntios.
MINETTE DE TELLESSE, G. Le secret messianique dáns I’Évangile de Marc. Paris: Cerf, 1968.
PALÁCIO, C., Jesus Cristo: História e Interpretação. Loyola: São Paulo, 1979 (Coleção Fé e Realidade).
DUQUOC, CH., Cristotogia Ensaio Dogmático II: O Messias. Loyola: São Paulo, 1980.

Jesus: o Messias (II)

Rita Gomes, nj*


2. O Cristo,j: aspecto histórico e teológico (Jesus terreno e Cristo da fé)[1]

A primeira consideração a ser feita refere-se a impossibilidade de separar os dois aspectos: histórico e teológico. Isso se verificará a seguir. Antes de iniciarmos a reflexão sobre o Jesus terreno importa fazer menção, mesmo breve, à questão da pesquisa sobre a vida de Jesus. Inúmeras foram as obras que se seguiram à de H. E. Reimarus [2]. De sua reflexão veio o grande impulso na busca pelo Jesus histórico. A história da pesquisa sobre a vida de Jesus é descrita em cinco fases, que aqui, apenas cito.

1ª fase: os “impulsos” críticos para a questão do Jesus histórico por H. S. Reimarus e D. E Strauss;
2 ª fase: o otimismo da pesquisa liberal sobre a vida de Jesus;
3 ª fase: o colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus;
4 ª fase: a “nova pergunta” pelo Jesus histórico;
5 ª fase: a “terceira questão” pelo Jesus histórico.

A última fase exige um esclarecimento, pois muda o eixo das pesquisas sobre o Jesus histórico. Fala-se de cinco fases, mas estas se apresentam em três momentos bem distintos. O primeiro não necessita de nenhuma explicação. O segundo começa na terceira fase, com a constatação de que não é possível construir uma “biografia de Jesus”. Esse terceiro momento corresponde à quinta fase. Nele se passa a considerar o contexto social de Jesus e sua pertença ao povo judeu, ou seja, o fato de que na pessoa de Jesus estava profundamente enraizada a grande tradição judaica.

O “Cristo da fé” foi amplamente difundido e o conteúdo desta expressão é a convicção de que o ‘verdadeiro Cristo é o Cristo crido’. Na base deste pensamento estão M. Kähler [3] e Bultman. Este último defende a tese de que à fé não interessa a vida de Jesus e sim o kérigma, ou seja, o Cristo anunciado. Assim o “Cristo da fé” é já a exposição da experiência de fé dos primeiros. Como argumento contra o retorno à ‘história da vida de Jesus’, coloca a falta de fontes históricas que possibilítem esse conhecimento. Ainda segundo Bultman, a fé não está ancorada na ação de Jesus e sim na ação de Deus ao ser pregado o kérigma.’[4] Desta ideia surgiram vários questionamentos e ampla bibliografia. Esse ponto suscitou muitas discussões e não faltou quem quisesse dar sua contribuição.

Segundo Sobrino, Jesus Cristo é uma totalidade, ou seja, traz em si uma dimensão histórica e uma transcendente. “Jesus é mais do que Jesus, é o Cristo.”[5] Para ele, Jesus de Nazaré como ponto de partida para uma reflexão cristológica é importante porque ao refletirmos sua práxis [6] podemos nos aproximar de forma mais segura do como Jesus via, sentia e compreendia a Deus e seu projeto. Dessa compreensão podemos chegar à visão que Jesus tinha de sua própria missão, isto é, de sua adesão total a esse projeto. Pois é sua fidelidade a esse projeto que o leva à cruz. Cremos ser também este, um ponto de partida para a compreensão da cristologia dos títulos de Jesus e, claro, do Cristo,j.

Consideramos necessário resgatar o que há de historicamente concreto no testemunho neotestamentário a respeito do Cristo,j. Primeiro, Paulo utiliza a linguagem e a lógica do pensamento helenista ao apresentar Jesus como Cristo,j. Desse ponto é possível perceber a mudança operada no sentido desse título em relação ao do judaísmo. Contudo, não é correto ver no uso do título por Paulo, uma transcendentalização sem mais. Paulo passou a falar de Jesus enquanto messias, quando percebeu nas comunidades, em especial a de Corinto, uma tendência a negar o lado “dificil” do Evangelho.

Negavam em forma de “esquecimento”, a paixão de Jesus, ou seja, a crueza da morte de cruz. Paulo inicia a partir do uso desse título, um trabalho de resgate do ponto alto do agir de Jesus. Mesmo que não volte à vida terrena de Jesus, uma vez que para ele, não era fundamental esse retorno naquele momento. As questões de fé daquelas comunidades, poderiam ser resolvidas através de uma teologia da cruz. O que não se verificou.

Pelo conteúdo e objetivo geral dos evangelhos, podemos concluir que a intuição paulina falhou. Uma teologia da cruz não deu conta de responder aos questionamentos dos primeiros cristãos. Até porque a utilização do título Cristo,j, como um segundo nome para Jesus, obscureceu o seu significado.

Importa aqui retomar dois pontos relevantes, em Mateus e Lucas, respectivamente. Mateus nos revela Jesus como Messias poderoso em palavras e obras, preanunciado pelos profetas e Lucas o apresenta como o profeta poderoso em palavras e obras. Retomo estes porque aqui encontramos um tema que pode ser a pedra de toque para o desenvolvimento de nossa reflexão.

No Novo Testamento, com exceção dos escritos paulinos, há um ponto de convergência: o Cristo,j não se compreende senão na relação existente entre Jesus e sua práxis. Explicitando ainda mais. O ponto de aproximação mais seguro, para uma apreensão fiel do conteúdo do Cristo,j é sem dúvida sua ação: a pregação do Reino (palavras e obras) e sua compreensão de Reino. Jesus se entende na pregação do Reino e por sua vez o Reino é compreendido na pessoa de Jesus.

Fazendo um crescendo: Paulo inicia [7] o uso do título Cristo,j para dizer que o Ku,rioj, ou seja, o Cristo glorioso é o mesmo Jesus que morreu na cruz. Faz a ligação entre o Cristo da fé e o Jesus terreno, mesmo que seja apenas no ato da consumação de sua vida terrena. Jesus é o Messias. Não é possível pensar no Messias sem ter consciência de que o seu conteúdo tem um pé firme na história. Marcos, em seguida, diz que Jesus é o Cristo e delineia que tipo de messias é e como sua messianidade pode ser verificada. Os outros evangelistas dão também os seus testemunhos sobre a messianidade de Jesus, com suas respectivas diferenças, como visto antes.


Notas:
*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1]O estudo desse ponto tem como base duas obras de Jon Sobrino. Este é de origem basca. Nascido em 1938. Entrou na Companhia de Jesus em 1956. Licenciado em Filosofia e Letras, mestrado em Engenharia. Doutor em Teologia pela Universidade de Frankfurt. Conferencista renomado e tem vários livros publicados. Entre eles estão: Jesus na América Latina e A Ressurreição da Verdadeira Igreja (Loyola, 1984 e 1986) e ainda Liberación con Espíritu (Sal Terrae, 1985). Nesse estudo seguimos outras obras do autor: Jesus, o Libertador I— A História de Jesus de Nazaré (Vozes, 1996) e Jesus, o Libertador II - A Fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas (Vozes, 2000).
[2]Obra publicada postumamente e sem indicação do autor. Esta obra lançou as bases da busca pelo que havia de “verdadeiramente histórico” na vida de Jesus. Mais sobre o assunto ver: THEISSEN, G. - MERZ, A., O Jesus histórico. Um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p. 19-33.
[3]“O verdadeiro Cristo é o Cristo anunciado”. Afirmação feita por este autor em uma conferência em 1892. Citado por Sobrino em Jesus, o Libertador I - A História de Jesus de Nazaré.
[4]SOBRINO, J. Jesus, o Libertador I—A História de Jesus de Nazaré. Vozes: Petrópolis, 1996, p. 71.
[5]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 63.
[6]Práxis aqui compreende a totalidade da pregação e das obras de Jesus.
[7]Fundamentamos esta afirmação nos escritos canônicos.

Jesus: o Messias (I)

Rita Gomes, nj*

Introdução

Na atualidade presenciamos um desejo desordenado de encontrar, nas expressões religiosas, conforto para os anseios. A religião substitui, de certo modo, os psicólogos e de maneira perigosa. Na busca pelo sagrado, arrisca-se tomar as religiões como uma espécie de central de exposição, em que os indivíduos avaliam as opções e escolhem as que mais se ajustam ao seu desejo. Não se buscará, nessa dinâmica, a si mesmo divinizado?

Será que a mensagem de Jesus se esvaziou? Será que por ser situada, tornou-se ultrapassada? Ou é ainda hoje, atual e fomentadora de vida em plenitude, como Ele desejou? De que modo Sua vida e Sua práxis podem iluminar o agir do cristão em um contexto complexo de globalização e pouco espaço para o indivíduo singular?

Tentando responder a essas questões decidimos, a exemplo de outros, voltar ao conteúdo da Escritura, sobretudo do Novo Testamento. Assim, num primeiro momento, abordamos sumariamente a compreensão do título “Cristo” na teologia paulina e no testemunho dos evangelhos a respeito do Messias Jesus. Num segundo momento, abordamos a questão do Jesus “histórico” e sua relação com o Cristo Ressuscitado. Por fim, tentaremos perceber como e em que esses pontos estudados podem nos ajudar a encontrar novos caminhos a seguir, que sejam mais fiéis ao ensinamento de Jesus, por isso, consideramos a noção de Reino de Deus.


1 - O Messias segundo o testemunho do Novo Testamento

Os escritos paulinos sao os mais antigos documentos cristãos e nestes o apostolo usa o título de Messias Cristo,j como um segundo nome para Jesus. O termo Cristo,j estava associado diretamente à Morte e Ressurreição de Jesus, ou seja, ao Mistério Pascal. Raramente o apóstolo une dois títulos e ele estava consciente que Cristo,j era um.

No ambiente judaico o Cristo,j corresponde ao hebraico ha-mašiah, usado para designar uma pessoa consagrada por unção para exercer uma tarefa especial. Daí vem o uso comum do termo “ungido”.(1) A referência a Jesus como messias sublinha que sua missão especial é realizar a redenção escatológica. Jesus é o redentor escatológico.

Os usos do termo indicam que Paulo o utiliza para ressaltar a Morte e Ressurreição de Jesus em contexto onde isto se faz necessário. Paulo compreende o Mistério Pascal como prova mais que suficiente de que Jesus é o Messias e, por isso mesmo, não recorre à vida terrena de Jesus no seu querigma (Cf. lTs 1,9ss; lCor 15,3; Rm 10,9).

O apóstolo não afirma nunca que Jesus é o Cristo, mostrando desse modo a ausência, até aquele momento, de qualquer dúvida a respeito da messianidade de Jesus por parte dos cristãos. Cara a Paulo é a expressão “Cristo crucificado”, ele marca o distintivo da fé cristã. Essa expressão era chocante e inaceitável para a mentalidade judaica e sua compreensão de messias.

Outra expressão significativa para Paulo é a fórmula “em Cristo”. Esta refere-se a um estado espiritual e místico de união com o Cristo. Estar “em Cristo” é ser parte constitutiva de um corpo, a Igreja. O Cristo,j transcende o tempo e o espaço. Podendo assim, habitar em cada cristão e possibilitar que cada um habite Nele. Paulo acentua o título Cristo,j em 1Cor porque na comunidade havia membros demasiadamente apegados ao Cristo glorioso da Parusia, Ku,rioj, não querendo ouvir falar da morte do Messias Crucificado, considerado loucura. Paulo procura explicitar seu sentido de Cristo,j, através da Teologia da Cruz e da Sabedoria de Deus. Essa teologia orientará toda a Cristologia paulina posterior.


1.2 — Nos Evangelhos.

Existe um consenso atual sobre o objetivo principal dos evangelhos escritos e da tradição evangélica que os precedeu: anunciar Jesus como Cristo e Senhor. Sem excluir, no entanto, o interesse pela realidade histórica de Jesus.(2) Os evangelhos são documentos já teologizados, ou seja, são expressões da fé das comunidades primitivas, mas estão vinculadas à ação e à vida de Jesus de Nazaré. O que é próprio de um “evangelho” é ser uma proclamação da messianidade e da filiação divina de Jesus, possibilitada pelos relatos — de suas obras e palavras. Essa compreensão é que faz do escrito de João também um evangelho, apesar das grandes diferenças em relação aos sinóticos.

Destes o que mais se aproxima da compreensão paulina de Cristo,j (Messias) é o Evangelho de Marcos. Isto é compreensível se recordamos, que este é o mais antigo dos evangelhos. Esta proximidade se refere à relação direta entre o título Cristo,j e o Mistério Pascal (morte e ressurreição).

O Evangelho de Marcos estrutura-se sobre um esquema teológico chamado “segredo messiânico”.(3) Este se percebe através de uma visão geral do livro. Na primeira parte do escrito marcano a pergunta que perpassa o texto é: quem é Este? (1,1— 8,26). No centro está a resposta: Jesus é o Cristo/Messias (8,29). Na seqüência se delineia o tipo de Messias que Jesus é (8,27—l 6,20).

No segredo messiânico mantêm-se uma tensão constante entre manifestação e segredo sobre quem é Jesus. Em suas palavras e obras essa tensão se expressa. Elas manifestam o Cristo e ao mesmo tempo, Jesus procura guardar segredo sobre sua identidade messiânica. A verdadeira identidade de Jesus só será revelada após sua morte e ressurreição. São os milagres, as palavras e gestos de Jesus que dizem quem Ele é: o Cristo, Filho de Deus.

Embora Marcos tenha como ponto central de sua Cristologia o Jesus Messias, Jesus só dirá que o é diante das autoridades judaicas (14,61-62). Jesus se apresenta como Filho do Homem. Este título é caro ao evangelista, que o usa 14 vezes, enquanto o de Messias e Filho de Deus, apenas sete cada. É através do Filho do Homem que o evangelista caracteriza a tarefa e o mistério de Jesus. Ele é o Messias que sofre até a morte e morte de cruz e é ressuscitado e exaltado por Deus.

Concluindo: o título Cristo,j (Messias), não é o mais usado no Evangelho de Marcos, contudo, é o centro de sua Cristologia. Jesus é o Cristo. Esta afirmação dá autoridade ao seu anúncio do Reino de Deus. O agir e a fidelidade de Jesus ao projeto de Deus o leva à cruz, expressão máxima de sua fidelidade a Deus e ao Reino.

No Evangelho de Mateus o título Cristo,j é usado muitas vezes, mas não com o mesmo sentido e peso com que Paulo o utiliza. Na Cristologia de Mateus, Jesus é antes de tudo, o Senhor e o Filho de Davi. Embora use também os títulos: Filho do Homem, Servo de Deus sofredor, revelador da última palavra de Deus (novo Moisés) e Filho de Deus.

O Messias em Mateus está ligado à idéia geral de messianismo enquanto abarca os ideais que representam o Israel do futuro, o reino universal de YHWH. Jesus é Senhor e Mestre. É um messias que liberta e salva, pois, é messias por palavras e obras. É, sem sombra de dúvida, o messias preanunciado pelos profetas. Seu poder messiânico não é nem político nem militar, consiste no ensinar com autoridade a vontade do Pai. Esta vontade se expressa na cura dos doentes (Mt 11,5), expulsação dos demônios (Mt 10,1), libertação dos humildes e pobres de toda força que os oprima.(4)

Assim, Jesus foi fiel até o fim e selou sua fidelidade na cruz. Por isso, Deus o exaltou pela ressurreição e o constituiu “Senhor”. Outro aspecto ressaltado, como nos outros evangelhos, é o anúncio do Reino. A mediação da qual Jesus é o Mediador.

Os evangelhos de um modo geral, apresentam Jesus como Cristo (Messias) e Senhor. Lucas também o apresenta desse modo, no entanto, não centua os títulos, mas trabalha com “modelos”. Em Lucas Jesus é, sobretudo, profeta e salvador. É o “novo Elias”. Lucas trabalha com duas linhas: fidelidade à tradição e liberdade em relação a esta. Como todos os outros evangelistas, tenta responder aos questionamentos de sua comunidade e isso pressupõe certa liberdade. Jesus é o homem da palavra e do Espírito: anuncia a palavra da salvação e age movido pelo Espírito, tal como os profetas. Interpreta a morte e ressurreição de Jesus, o profeta poderoso em obras e palavras, na linha dos profetas clássicos. Ele será exaltado, glorificado por Deus, ao ser ressuscitado.

Particularmente diferente é o Evangelho de João. Este trabalha de forma magistral o Cristo (Messias). O evangelista parte do Lo,goj o Verbo de Deus que se faz carne. Jesus é a Palavra de Deus encarnada. Assim, o acento maior parece recair sobre Jesus enquanto revelador do Pai.

A exemplo dos outros evangelistas, João afirma, em última instância, que Jesus é o Cristo. No início de seu evangelho, encontramos o testemunho de André a seu irmão Pedro: “Nós achamos o Messias” (Jo 1,41) e no final, o próprio evangelista atesta o motivo do escrito: “Estes foram escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo tenhais a vida em seu nome” (Jo 20,31).

Resumindo. Todos os escritos neotestamentários apresentam Jesus como o Cristo (Messias). Se em Paulo essa messianidade não era posta em dúvida, o mesmo não pode ser afirmado a respeito da comunidade de Mateus, Marcos, Lucas e João. Mesmo que Marcos tenha uma preocupação mais clara que os outros, em apresentar Jesus como Cristo, essa difere muito da intuição paulina. O que permanece nos evangelhos da compreensão paulina de Messias é sua ligação direta com o Mistério Pascal, mas estes se preocupam com a práxis terrena de Jesus.

Notas:
* É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
(1) Temos como exemplo do emprego do termo nos livros históricos em referência a unção dos reis.
(2) BARBAGLIO, G et alii. Os Evangelhos (1). Loyola: São Paulo, 1990, p. 25-26.
(3) Expressão criada por W. WREDE, em obra publicada em 1901 e citada em BARBAGLIO, G. op. cite, p. 507. Ver ainda MINETTE DE TILLESSE, G. Le secret messianique dans l’Evangile de Marc, Paris. Cerf,
1968.
(4) BARBAGLIO, G. op. cite, p. 57.