Na postagem anterior (2ª), refletimos sobre a questão a
historicidade do Relato da Infância segundo Lucas (1–2). Percebemos que a
pesquisa bíblica se centrou, durante muito tempo, na natureza do Relato da
Infância, procurando comprovar sua historicidade em contraposição à total
negação desse aspecto. A grande preocupação com as fontes empregadas por Lucas,
para compor seu relato, acarretou na fragmentação Narrativa da Infância em
busca das evidências históricas, causando um esvaziamento do sentido teológico
ao se prender em demasia nos detalhes e esquecer a visão de conjunto.
Sem descuidar o aspecto histórico, importante para a superação de
uma visão ingênua do Relato da Infância, o grande passo dado pela pesquisa
bíblica aconteceu quando a mesma passou a centrar sua atenção ao aspecto
teológico desse Relato.
Nessa perspectiva, refletiremos sobre o Relato da Infância (Lc 1–2)
como cristologia pós-pascal, a partir de dois pontos importantes: a Narrativa da
Infância no contexto da teologia lucana e a função que ocupa no Evangelho
segundo Lucas[1].
A Narrativa da Infância faz parte da teologia lucana?
A partir da proposta de considerar a cristologia presente no Relato da
Infância à luz da obra lucana em sua integralidade, o estudo se depara com a problemática
da relação existente entre essa Narrativa e o Evangelho lucano.
Segundo Raymond E. Brown (1982, p. 246), Hans Conzelmann, o mais famoso analista moderno da teologia lucana, ignora
praticamente a Narrativa da Infância por considerá-la diferente do pensamento do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos, e inclusive contrária a estes. A postura de Conzelmann se faz perceber na sua obra clássica Die Mitte
der Zeit (O Centro do
Tempo), onde apresenta a teologia lucana
a partir
da análise do Evangelho, prescindindo do Relato da Infância[2]. A justificativa dada por
alguns expoentes do pensamento de Conzelmann é que a figura de João Batista
veiculada na Infância não corresponde àquela do restante da obra lucana.
Diante desse impasse, procuramos estudar a tese de Conzelmann e descobrimos
que a controvérsia sobre a figura
de João Batista não é o
principal motivo pelo qual este autor
descartou a Infância. Segundo ele a teologia da Infância não corresponde àquela
explicitada no restante da obra. Através de uma teologia histórico-salvífica
tripartida, Conzelmann define o Evangelho como tempo
de salvação. Os atos e as palavras de Jesus constituem
o typos ao qual o
discípulo deve configurar-se. Desse modo, Conzelmann propõe fundamentar a
missão da Igreja na atuação
de Jesus. Esse autor define a arché de Jesus como o início do ministério na Galileia, seu ministério público
(cf. At 1,1). Sua atuação se configura como imagem da salvação atemporal, que fundamenta a arché da Igreja.
Em suma, podemos dizer que o fundamento principal para a exclusão do Relato
da Infância, ao tratar da teologia
lucana, não é tanto a figura do Batista,
embora esta esteja em função da delimitação das épocas, mas o sentido de arché, que Hans Conzelmann atribui ao ministério de Jesus na Galileia (CONZELMANN, 1974, p. 43)[3]. Nessa
perspectiva, o Relato da Infância não se enquadra na teoria de Conzelmann. Mas será válido, em nome de uma tese, deixar de lado um
relato que na tradição foi reconhecido como evangelho? O estudo da teologia
lucana não poderia prescindir de uma parte da obra. Assim,
alguns estudiosos tentaram compreender a teologia da Narrativa da Infância
levando em consideração seu lugar no Evangelho.
A
Narrativa da Infância como mini evangelho
O
novo enfoque que os especialistas deram ao tentar recuperar o valor dos relatos
da infância como teologia abriu novos horizontes na pesquisa bíblica sobre a
infância. Muitos são os métodos empregados. Mas todos estão direcionados na
tentativa de descobrir o papel que o Relato da Infância desempenha no interior
do Evangelho.
Segundo
Heinz Schürmann (1983, p. 99), determinar a função de Lc 1–2 no interior do Evangelho ajuda na compreensão
teológica dessa narrativa. Muitas são as denominações dadas a esse bloco:
prelúdio, pré-história, preâmbulo, introdução etc. Mas qual a função desses
dois primeiros capítulos no Evangelho lucano? Por que Lucas antepôs ao relato
do ministério de Jesus a narrativa de sua concepção e nascimento?
Segundo
Rinaldo Fabris (1992, p. 27), o interesse central da Narrativa da Infância é
“querigmático”, visa anunciar Jesus Cristo aos que abraçaram a fé. O vértice
desse anúncio é a mensagem contida em Lc 2,11: “hoje nasceu para vós um
Salvador, o Cristo Senhor”. Os hinos têm o objetivo de fazer a comunidade
refletir no que foi narrado e interiorizar a mensagem que transparece nos
acontecimentos. Esses relatos antecipam a “boa nova” da presença salvífica de
Deus em Jesus Cristo, e, por isso, constituem um prelúdio do Evangelho (Ibid.).
François
Bovon (1995, p. 71) também concorda que os dois primeiros capítulos do
Evangelho se configuram como preâmbulo. A
vida e o destino do Messias são preanunciados
nesses
dois primeiros capítulos.
Robert
J. Karris (1997, p. 885) afirma que a infância deve ser vista como introdução
ao Evangelho, pois nele apoiam-se os principais temas lucanos, sobretudo aquele
da fidelidade de Deus à promessa[4].
Segundo
Raymond E. Brown (1982, p. 245), Lc 1–2
apresenta-se como transição entre os tempos de Israel e de Jesus. Nesse
sentido, ele procura corrigir a concepção de Hans Conzelmann, que não considera esse trecho parte integrante da teologia
lucana, por se tratar de pré-história de Jesus, e não de sua atuação pública[5].
Muito
mais que uma introdução ao Evangelho ou transição entre os tempos salvíficos, a
Narrativa da Infância deve ser vista como um mini evangelho, pois a cristologia
lucana, desenvolvida ao longo de Lucas-Atos, e a temática da universalidade da
salvação estão condensadas nessas primeiras páginas do Evangelho, de modo que o
leitor possa ver antecipadamente a imagem de Jesus, Messias e Filho de Deus e
sua função de Salvador no projeto histórico-salvífico.
Robert
J. Karris (1997, p. 885) afirma que “esta introdução é evangelho enquanto
propõe suscitar nos leitores uma confissão de fé mais intensa em Deus como Deus
fiel e digno de confiança, e em Jesus como Cristo e Salvador, Filho de Deus”.
Em
seu conjunto, Lc 1–2 antecipa o esquema
literário-teológico do Evangelho de Lucas. A
peregrinação Nazaré-Jerusalém que aparece no Relato da Infância antecede o
ministério de Jesus. Este tem seu início programático em Nazaré, mas depois, Jerusalém polarizará a
atenção do leitor, como lugar onde se cumpre a Páscoa e de onde começa a vida
da Igreja, ponto de partida para sua abertura aos gentios (ESCUDERO FREIRE, 1978, p. 40-41).
Com
o Relato da Infância, a “vinda” de Jesus, que era associada à sua atuação
ministerial, é pensada desde sua origem em Deus, como realização das promessas veterotestamentárias (SCHÜRMANN, 1983, p. 99).
Toda a revelação cristológica desenvolvida ao longo do Evangelho está presente, em germe, na
Narrativa da Infância[6]. Nesta, há um crescendo em torno à revelação da figura de
Jesus como Salvador enviado por Deus. A compreensão de quem é Jesus, revelada
aos discípulos durante sua caminhada até Jerusalém, encontra na Narrativa da Infância, sua
antecipação profética. Deste modo, a narrativa encontra seu ápice no episódio de Jesus aos doze anos, no Templo,
sinal profético de sua missão realizada em Jerusalém. Nesse
sentido, a Narrativa da Infância pode ser considerada um mini evangelho
(FABRIS, 1992, p. 13).
Nesse
mini evangelho, Lucas propõe mostrar que a
salvação destinada a todas as nações, e não só aos judeus, faz parte do
desígnio salvífico de Deus desde a sua origem. Essa temática, que aparecerá no Evangelho e será extensamente
desenvolvida nos Atos dos Apóstolos,
está presente nos discursos programáticos, de
Jesus na Sinagoga de Nazaré e de Pedro na casa de Cornélio. E, de modo
prefigurativo, na Narrativa da Infância, onde Jesus é designado “luz para
iluminar as nações” (Lc 2,32) e, por isso, “deve estar nas coisas de seu Pai”
(Lc 2,49).
BOVON, François. El evangelio según San Lucas: Lc 1-9. Salamana: Sigueme, 1995.
BROWN, Raymond E. El nacimiento del Mesías:
comentario a los relatos de la infancia. Madrid: Cristiandad, 1982.
CONZELMANN, Hans. El centro del tiempo: la teología de
Lucas. Madrid: Fax, 1974.
ESCUDERO FREIRE, Carlos. Devolver el evangelio a los pobres: a proposito de Lc 1-2. Salamanca: Siegueme, 1978.
FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Lucas. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os
Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1992.
GEORGE, Augustin.
Leitura
do evangelho segundo Lucas. São Paulo: Paulinas, 1982.
KARRIS, Robert J. Il vangelo
secondo Luca. In: BROWN, R. E.;
FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Ed.). Nuovo grande commentario bíblico. Brescia:
Queriniana, 1997.
PERROT,
Charles. As narrativas da infância de Jesus: Mateus 1–2, Lucas 1–2. São Paulo: Paulinas, 1982.
SCHÜRMANN, Heinz. Commentario teológico del nuovo testamento: il vangelo di Luca. Brescia: Paideia, 1983.
[i] O artigo é uma
síntese do primeiro capítulo (A infância de Jesus em questão, p. 12-31) da
Dissertação de Mestrado “O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância
segundo Lc 2,41-52”, defendida junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia – FAJE / 2008 e orientada pelo prof. Dr. Johan Konings, com o apoio da
CAPES – PROEX. A dissertação está disponível em: <https://www.faculdadejesuita.edu.br/dissertacoes-teologia-437/-o-cristo-pos-pascal-na-narrativa-da-infancia-um-estudo-de-lc-2-41-52--04092017-224410>. Foi
apresentado em conferência no II Colóquio de Literatura, História e Ciências da
Religião, Fortaleza-Ce, outubro de 2013.
[ii] Conzelmann (
1974, p. 171) parece negar a autenticidade dos dois primeiros capítulos de
Lucas ao tratar da questão do Reino de Deus, na seção dedicada à escatologia:
“De qualquer forma, pode-se objetar que a autenticidade dos dois primeiros
capítulos é questionável (razão pela qual também deixamos entre as perguntas
suas teologumena peculiares)” [tradução nossa]. No entanto, isso parece
que está em contradição com sua postura inicial ao falar que seu trabalho
engloba a obra lucana em seu estado atual (cf. ibid., 21). Em várias
partes da sua obra o autor fala da infância como “pré-história” e até postula a
pertença da mesma ao elenco original do Evangelho (cf. ibid., p. 38,
n.1). Inclusive na p. 114, n. 169, Conzelmann parece reconhecer a existência da
relação entre a pré-história e a Paixão (Lc 2,7 e 22,11; 2,14 e 19,38; 2,38 e
23,51).
[iii] Dentro do
processo histórico-salvífico, João marca a incisão entre duas épocas dessa
história contínua, tal como nos descreve Lc 16,16.
[iv] Os principais
temas são apresentados por J. NAVONE (Themes of St. Luke [Roma 1979]). Segundo
Karris, já são anunciados na Narrativa da Infância: o banquete, a conversão, a fé,
a paternidade, a graça, a oração, o profeta, a salvação, o espírito, a
tentação, o hoje, o universalismo, o caminho, o testemunho.
[v] O autor
conserva a divisão tripartida da história segundo Conzelmann, mas os três
períodos são assim dispostos: 1) a Lei e os Profetas (AT); 2) o relato
evangélico do ministério, que começa com João Batista; 3) o relato do período
pós-pentecostal do livro dos Atos. Entre 1 e 2 há um relato de transição, o da
infância (Lc 1–2); e entre 2 e 3 há outro relato de transição, o da ascensão de
Jesus e a vinda do Espírito Santo em Pentecostes de At 1–2. Segundo Brown,
embora Lc 16,16 exclua João Batista da época de Jesus, o versículo confirma as
duas primeiras divisões propostas por ele (cf. nota 23, p. 247).
[vi] Augustin
George (1982, p. 15) afirma que o assunto principal de Lucas é a revelação de
Deus em Jesus Cristo. Esta revelação é apresentada ordenadamente na narrativa,
nas diversas partes do relato. O bloco 1,5–4,13 apresenta o mistério de Jesus
numa série de palavras divinas; Charles Perrot (1982, p. 34) afirma que esses
dois capítulos são um prólogo cristológico, uma confissão de fé feita à luz do
acontecimento pascal.
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