segunda-feira, 20 de julho de 2020

O relato da infância de Jesus na teologia lucana



Na postagem anterior (2ª), refletimos sobre a questão a historicidade do Relato da Infância segundo Lucas (1–2). Percebemos que a pesquisa bíblica se centrou, durante muito tempo, na natureza do Relato da Infância, procurando comprovar sua historicidade em contraposição à total negação desse aspecto. A grande preocupação com as fontes empregadas por Lucas, para compor seu relato, acarretou na fragmentação Narrativa da Infância em busca das evidências históricas, causando um esvaziamento do sentido teológico ao se prender em demasia nos detalhes e esquecer a visão de conjunto.

Sem descuidar o aspecto histórico, importante para a superação de uma visão ingênua do Relato da Infância, o grande passo dado pela pesquisa bíblica aconteceu quando a mesma passou a centrar sua atenção ao aspecto teológico desse Relato.

Nessa perspectiva, refletiremos sobre o Relato da Infância (Lc 1–2) como cristologia pós-pascal, a partir de dois pontos importantes: a Narrativa da Infância no contexto da teologia lucana e a função que ocupa no Evangelho segundo Lucas[1].

A Narrativa da Infância faz parte da teologia lucana?

A partir da proposta de considerar a cristologia presente no Relato da Infância à luz da obra lucana em sua integralidade, o estudo se depara com a problemática da relação existente entre essa Narrativa e o Evangelho lucano.

Segundo Raymond E. Brown (1982, p. 246), Hans Conzelmann, o mais famoso analista moderno da teologia lucana, ignora praticamente a Narrativa da Infância por considerá-la diferente do pensamento do Evangelho e dos Atos dos Apóstolos, e inclusive contrária a estes. A postura de Conzelmann se faz perceber na sua obra clássica Die Mitte der Zeit (O Centro do Tempo), onde apresenta a teologia lucana a partir da análise do Evangelho, prescindindo do Relato da Infância[2]. A justificativa dada por alguns expoentes do pensamento de Conzelmann é que a figura de João Batista veiculada na Infância não corresponde àquela do restante da obra lucana.

Diante desse impasse, procuramos estudar a tese de Conzelmann e descobrimos que a controvérsia sobre a figura de João Batista não é o principal motivo pelo qual este autor descartou a Infância. Segundo ele a teologia da Infância não corresponde àquela explicitada no restante da obra. Através de uma teologia histórico-salvífica tripartida, Conzelmann define o Evangelho como tempo de salvação. Os atos e as palavras de Jesus constituem o typos ao qual o discípulo deve configurar-se. Desse modo, Conzelmann propõe fundamentar a missão da Igreja na atuação de Jesus. Esse autor define a arché de Jesus como o início do ministério na Galileia, seu ministério público (cf. At 1,1). Sua atuação se configura como imagem da salvação atemporal, que fundamenta a arché da Igreja.

Em suma, podemos dizer que o fundamento principal para a exclusão do Relato da Infância, ao tratar da teologia lucana, não é tanto a figura do Batista, embora esta esteja em função da delimitação das épocas, mas o sentido de arché, que Hans Conzelmann atribui ao ministério de Jesus na Galileia (CONZELMANN, 1974, p. 43)[3]. Nessa perspectiva, o Relato da Infância não se enquadra na teoria de Conzelmann. Mas será válido, em nome de uma tese, deixar de lado um relato que na tradição foi reconhecido como evangelho? O estudo da teologia lucana não poderia prescindir de uma parte da obra. Assim, alguns estudiosos tentaram compreender a teologia da Narrativa da Infância levando em consideração seu lugar no Evangelho.

A Narrativa da Infância como mini evangelho

O novo enfoque que os especialistas deram ao tentar recuperar o valor dos relatos da infância como teologia abriu novos horizontes na pesquisa bíblica sobre a infância. Muitos são os métodos empregados. Mas todos estão direcionados na tentativa de descobrir o papel que o Relato da Infância desempenha no interior do Evangelho.

Segundo Heinz Schürmann (1983, p. 99), determinar a função de Lc 12 no interior do Evangelho ajuda na compreensão teológica dessa narrativa. Muitas são as denominações dadas a esse bloco: prelúdio, pré-história, preâmbulo, introdução etc. Mas qual a função desses dois primeiros capítulos no Evangelho lucano? Por que Lucas antepôs ao relato do ministério de Jesus a narrativa de sua concepção e nascimento?

Segundo Rinaldo Fabris (1992, p. 27), o interesse central da Narrativa da Infância é “querigmático”, visa anunciar Jesus Cristo aos que abraçaram a fé. O vértice desse anúncio é a mensagem contida em Lc 2,11: “hoje nasceu para vós um Salvador, o Cristo Senhor”. Os hinos têm o objetivo de fazer a comunidade refletir no que foi narrado e interiorizar a mensagem que transparece nos acontecimentos. Esses relatos antecipam a “boa nova” da presença salvífica de Deus em Jesus Cristo, e, por isso, constituem um prelúdio do Evangelho (Ibid.).

François Bovon (1995, p. 71) também concorda que os dois primeiros capítulos do Evangelho se configuram como preâmbulo. A vida e o destino do Messias são preanunciados nesses dois primeiros capítulos.

Robert J. Karris (1997, p. 885) afirma que a infância deve ser vista como introdução ao Evangelho, pois nele apoiam-se os principais temas lucanos, sobretudo aquele da fidelidade de Deus à promessa[4].

Segundo Raymond E. Brown (1982, p. 245), Lc 12 apresenta-se como transição entre os tempos de Israel e de Jesus. Nesse sentido, ele procura corrigir a concepção de Hans Conzelmann, que não considera esse trecho parte integrante da teologia lucana, por se tratar de pré-história de Jesus, e não de sua atuação pública[5].

Muito mais que uma introdução ao Evangelho ou transição entre os tempos salvíficos, a Narrativa da Infância deve ser vista como um mini evangelho, pois a cristologia lucana, desenvolvida ao longo de Lucas-Atos, e a temática da universalidade da salvação estão condensadas nessas primeiras páginas do Evangelho, de modo que o leitor possa ver antecipadamente a imagem de Jesus, Messias e Filho de Deus e sua função de Salvador no projeto histórico-salvífico.

Robert J. Karris (1997, p. 885) afirma que “esta introdução é evangelho enquanto propõe suscitar nos leitores uma confissão de fé mais intensa em Deus como Deus fiel e digno de confiança, e em Jesus como Cristo e Salvador, Filho de Deus”.

Em seu conjunto, Lc 12 antecipa o esquema literário-teológico do Evangelho de Lucas. A peregrinação Nazaré-Jerusalém que aparece no Relato da Infância antecede o ministério de Jesus. Este tem seu início programático em Nazaré, mas depois, Jerusalém polarizará a atenção do leitor, como lugar onde se cumpre a Páscoa e de onde começa a vida da Igreja, ponto de partida para sua abertura aos gentios (ESCUDERO FREIRE, 1978, p. 40-41).

Com o Relato da Infância, a “vinda” de Jesus, que era associada à sua atuação ministerial, é pensada desde sua origem em Deus, como realização das promessas veterotestamentárias (SCHÜRMANN, 1983, p. 99). Toda a revelação cristológica desenvolvida ao longo do Evangelho está presente, em germe, na Narrativa da Infância[6]. Nesta, há um crescendo em torno à revelação da figura de Jesus como Salvador enviado por Deus. A compreensão de quem é Jesus, revelada aos discípulos durante sua caminhada até Jerusalém, encontra na Narrativa da Infância, sua antecipação profética. Deste modo, a narrativa encontra seu ápice no episódio de Jesus aos doze anos, no Templo, sinal profético de sua missão realizada em Jerusalém. Nesse sentido, a Narrativa da Infância pode ser considerada um mini evangelho (FABRIS, 1992, p. 13).

Nesse mini evangelho, Lucas propõe mostrar que a salvação destinada a todas as nações, e não só aos judeus, faz parte do desígnio salvífico de Deus desde a sua origem. Essa temática, que aparecerá no Evangelho e será extensamente desenvolvida nos Atos dos Apóstolos, está presente nos discursos programáticos, de Jesus na Sinagoga de Nazaré e de Pedro na casa de Cornélio. E, de modo prefigurativo, na Narrativa da Infância, onde Jesus é designado “luz para iluminar as nações” (Lc 2,32) e, por isso, “deve estar nas coisas de seu Pai” (Lc 2,49).

Referências

BOVON, François. El evangelio según San Lucas: Lc 1-9. Salamana: Sigueme, 1995.

BROWN, Raymond E. El nacimiento del Mesías: comentario a los relatos de la infancia. Madrid: Cristiandad, 1982.

CONZELMANN, Hans. El centro del tiempo: la teología de Lucas. Madrid: Fax, 1974.

ESCUDERO FREIRE, Carlos. Devolver el evangelio a los pobres: a proposito de Lc 1-2. Salamanca: Siegueme, 1978.

FABRIS, Rinaldo. O Evangelho de Lucas. In: FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos. São Paulo: Loyola, 1992.

GEORGE, Augustin. Leitura do evangelho segundo Lucas. São Paulo: Paulinas, 1982.

KARRIS, Robert J. Il vangelo secondo Luca. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R. E. (Ed.). Nuovo grande commentario bíblico. Brescia: Queriniana, 1997.

PERROT, Charles. As narrativas da infância de Jesus: Mateus 1–2, Lucas 1–2. São Paulo: Paulinas, 1982.

SCHÜRMANN, Heinz. Commentario teológico del nuovo testamento: il vangelo di Luca. Brescia: Paideia, 1983.



[i] O artigo é uma síntese do primeiro capítulo (A infância de Jesus em questão, p. 12-31) da Dissertação de Mestrado “O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52”, defendida junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE / 2008 e orientada pelo prof. Dr. Johan Konings, com o apoio da CAPES – PROEX. A dissertação está disponível em: <https://www.faculdadejesuita.edu.br/dissertacoes-teologia-437/-o-cristo-pos-pascal-na-narrativa-da-infancia-um-estudo-de-lc-2-41-52--04092017-224410>. Foi apresentado em conferência no II Colóquio de Literatura, História e Ciências da Religião, Fortaleza-Ce, outubro de 2013.

[ii] Conzelmann ( 1974, p. 171) parece negar a autenticidade dos dois primeiros capítulos de Lucas ao tratar da questão do Reino de Deus, na seção dedicada à escatologia: “De qualquer forma, pode-se objetar que a autenticidade dos dois primeiros capítulos é questionável (razão pela qual também deixamos entre as perguntas suas teologumena peculiares)” [tradução nossa]. No entanto, isso parece que está em contradição com sua postura inicial ao falar que seu trabalho engloba a obra lucana em seu estado atual (cf. ibid., 21). Em várias partes da sua obra o autor fala da infância como “pré-história” e até postula a pertença da mesma ao elenco original do Evangelho (cf. ibid., p. 38, n.1). Inclusive na p. 114, n. 169, Conzelmann parece reconhecer a existência da relação entre a pré-história e a Paixão (Lc 2,7 e 22,11; 2,14 e 19,38; 2,38 e 23,51).

[iii] Dentro do processo histórico-salvífico, João marca a incisão entre duas épocas dessa história contínua, tal como nos descreve Lc 16,16.

[iv] Os principais temas são apresentados por J. NAVONE (Themes of St. Luke [Roma 1979]). Segundo Karris, já são anunciados na Narrativa da Infância: o banquete, a conversão, a fé, a paternidade, a graça, a oração, o profeta, a salvação, o espírito, a tentação, o hoje, o universalismo, o caminho, o testemunho.

[v] O autor conserva a divisão tripartida da história segundo Conzelmann, mas os três períodos são assim dispostos: 1) a Lei e os Profetas (AT); 2) o relato evangélico do ministério, que começa com João Batista; 3) o relato do período pós-pentecostal do livro dos Atos. Entre 1 e 2 há um relato de transição, o da infância (Lc 1–2); e entre 2 e 3 há outro relato de transição, o da ascensão de Jesus e a vinda do Espírito Santo em Pentecostes de At 1–2. Segundo Brown, embora Lc 16,16 exclua João Batista da época de Jesus, o versículo confirma as duas primeiras divisões propostas por ele (cf. nota 23, p. 247).

[vi] Augustin George (1982, p. 15) afirma que o assunto principal de Lucas é a revelação de Deus em Jesus Cristo. Esta revelação é apresentada ordenadamente na narrativa, nas diversas partes do relato. O bloco 1,5–4,13 apresenta o mistério de Jesus numa série de palavras divinas; Charles Perrot (1982, p. 34) afirma que esses dois capítulos são um prólogo cristológico, uma confissão de fé feita à luz do acontecimento pascal.

 

 



Ir. Márcia Eloi Rodrigues é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Atualmente leciona Sagrada Escritura no Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus, em Diamantina-MG.


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