Na postagem anterior, refletimos brevemente sobre
o processo de elaboração da cristologia na comunidade primitiva com o objetivo
de responder à questão da inserção das narrativas da Infância (Mt 1–2; Lc 1–2)
nos respectivos Evangelhos. Percebemos que a Narrativa da Infância faz parte de
um momento posterior no desenvolvimento da cristologia e sua inserção nos
Evangelhos se compreende melhor dentro desse processo. Veremos, agora, a
discussão entre os autores modernos a respeito da historicidade do Relato da
Infância segundo Lucas (1–2). Esse tema é importante, pois nos ajuda a
compreender o Relato da Infância como Teologia, e não como histórias factuais
da infância de Jesus (historicismo).
A historicidade
da
Narrativa da Infância[i]
A reflexão sobre o processo de compreensão da
fé cristológica explica o motivo da adição dos relatos da infância de Mateus e
de Lucas nos respectivos Evangelhos, se comparados com Marcos, o primeiro
Evangelho. A retrospectiva da vida de Jesus desde sua infância, realizada pela
comunidade cristã, deve-se a necessidade de clareza quanto à identidade do
salvador. Não há, portanto, um interesse de narrar fatos históricos sobre a
infância de Jesus em Nazaré.
Essa perspectiva, no entanto, parecia não ser
tão clara para alguns estudiosos do século passado. Entre 1905 e 1930, deu-se
início a uma discussão entre aqueles que defendiam e os que negavam haver
qualquer base histórica nos relatos da infância. Os primeiros expoentes[ii]
da crítica independente viram no Relato da Infância uma construção devocional
sem bases históricas precisas (BROWN, 1982, p 67; SPINETOLI, 1967, p. 67). A
inspiração desse relato não seria baseada na realidade, mas em modelos
preexistentes na literatura extrabíblica, nas lendas gregas, egípcias,
asiáticas e até indianas (SPINETOLI, 1967, p. 67).
Após os primeiros ardores a crítica liberal
reviu sua posição e, abandonando as posições radicais, começou a ver, nos
relatos da infância, problemas reais em torno da historicidade e do gênero
literário dessas narrativas e dos evangelhos em geral (Ibid., p. 68).
Por outro lado, os católicos ignoraram por
muito tempo as questões da historicidade
e do gênero
literário apegando-se a um conceito positivista de história (Ibid., p.
68, n. 3)[iii].
Esta postura foi mudada após uma primeira polêmica, e, sobretudo depois da Encíclica “Divino
Afflante Spiritu” de Pio XII, os católicos passaram a olhar a Narrativa da
Infância com maior objetividade, e o centro de interesse passou a ser a
estrutura e o estrato bíblico de tal relato (Ibid., p. 69).
Uma vez superado o conceito positivista de
história, pois há muito que os críticos deixaram de ler os evangelhos
como “vidas de Jesus”, manteve-se o interesse histórico do evangelho, numa
outra perspectiva. Sem preconizar a história literal,
alguns estudiosos defendem a historicidade
substancial de Lc 1–2,
baseando-se na autoridade das fontes lucanas, como é entendida por eles no
prólogo ao evangelho (Lc 1,1-4). Estão certos de que os dois primeiros
capítulos não são obra de piedosa invenção lucana (BROWN, 1982, p. 71).
Com base na existência desse substrato
histórico, Andre Feuillet, por exemplo, no seu estudo de 1974, opina que os
fatos narrados em Lc 1–2 seriam recordações conservadas e meditadas pelos
discípulos do Batista e por Maria, a mãe de Jesus (FEUILLET apud
LEONARDI, 1975, p. 113). O evangelista Lucas não seria o responsável por quase
todos os detalhes da história da infância, mas tampouco estaria transmitindo um
ensinamento destituído de valor histórico (LEONARDI, 1975, p. 113).
Como foi dito acima, a historicidade do Relato da
Infância parece atestada pela autoridade das fontes lucanas. No prólogo (Lc
1,1-4), o autor afirma escrever sobre o que tinha visto e recebido das
testemunhas oculares, que ele pesquisara desde o princípio. Ele pretende
oferecer um relato ordenado. Estas afirmações deixam margem para pensar numa
narrativa baseada em fontes históricas, pois, como dizem alguns, Lucas
advertiria o leitor se começasse sua obra narrando dois capítulos de lendas ou
parábolas (Ibid., p. 114)[iv].
Segundo este raciocínio, o prólogo atesta que Lucas teria empregado fontes
históricas com extremo cuidado e que, por isso, o Relato da Infância é
histórico, baseado em fontes fidedignas (BROWN, 1982, p. 243).
Na tentativa de evidenciar o substrato
histórico do Relato da Infância, alguns estudiosos intentam elencar as fontes
às quais Lucas teve acesso. As conclusões a que chegaram são as mais variadas
possíveis e, por vezes, fantasiosas. Vejamos alguns desses casos.
O estudo de Andre Feuillet, referido
acima, faz um confronto entre as tradições joaninas, presentes no
Apocalipse, e as cenas cristológicas e mariológicas de Lc 1–2 e conclui que há
relações convincentes. Segundo ele, Lucas teve acesso a esses acontecimentos
através de João, que por sua vez, os recebeu de Maria, durante o período em que
a acolheu em sua casa.
Eugênio Cywinski (1998, p. 96), em seu artigo,
descreve os possíveis contatos que Lucas teve para redigir sua narrativa[v].
O autor pergunta pela probabilidade de Lucas ter recebido diretamente de Maria
algumas informações. Afirma a possível influência por parte de João, a quem
fora confiada Maria, alegando a afinidade entre o terceiro e o quarto
evangelhos. Discorre sobre a estadia de Lucas com Paulo durante o cativeiro,
onde Lucas teve dois anos de liberdade para movimentar-se e pesquisar sobre a
infância de Jesus. Esteve em Nazaré, onde consultou algum arquivo.
Relacionou-se com membros da família de Jesus. Essas seriam, para o autor, as
principais fontes de informação que Lucas teve acesso. A hipótese do contato
com João é, contudo, rejeitada no monumental estudo de Raymond E. Brown (1982,
p. 242-243)[vi].
Segundo Ortensio da Spinetoli (1967, p. 102), o
Relato da Infância contém episódios que foram elaborados por Lucas, com base em
fontes históricas, que ele dispôs livremente e redigiu conforme sua intenção
teológica. A Narrativa da Infância é composta por vários estratos superpostos
e, por isso, torna-se difícil delinear o que é fato histórico e o que é
artifício literário. O autor afirma ser preciso traçar uma linha entre o artifício
literário, a realidade objetiva e a realidade bíblica, que são os três estratos
que apoiam atualmente a obra (Ibid., p. 92).
A valorização dos substratos históricos da
Narrativa da Infância é defendida por esses estudiosos como crítica àqueles que
negam totalmente esses substratos ao tratar o relato como lenda edificante
(BROWN, 1982, p. 19)[vii].
Evidentemente, não se pode negar certo grau de historicidade nos
relatos da infância, assim como não se nega a historicidade nos Evangelhos.
Como os estudiosos deixaram de ver nesses escritos uma biografia de Jesus sem,
contudo, negar a base histórica dos relatos, essa postura também se reflete no
Relato da Infância.
Por outro lado, a grande preocupação pelas
fontes históricas da infância, veiculada por certos especialistas, acaba
fragmentando a narrativa em busca das evidências históricas, causando um
esvaziamento do sentido teológico, pois perdem a visão de conjunto atendo-se
apenas aos detalhes.
A investigação bíblica dos
últimos 20-30 anos revelou-se mais
frutífera ao buscar recuperar o valor do Relato da Infância como teologia. Sem
descuidar dos temas das fontes, da historicidade e do gênero literário, procurou-se perceber o sentido da
Narrativa da Infância no interior do Evangelho já concluído, para captar a
mensagem transmitida através desse relato (Ibid., p. 32).
Veremos, na próxima postagem, a discussão dos
estudiosos modernos a respeito da teologia da Narrativa da Infância segundo
Lucas, levando em consideração seu lugar no Evangelho lucano.
Referências
BROWN, Raymond
E. El nacimiento del Mesías: comentario a los relatos de la
infancia. Madrid: Cristiandad,
1982.
RODRIGUES, Márcia E. O Cristo pós-pascal na
Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52. 2008. 121 p. Dissertação
(Mestrado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de filosofia e Teologia, Belo
Horizonte, 2008.
SPINETOLI, Ortensio. Introduzione ai vangeli dell’infanzia.
Brescia: Paidéia, 1967.
LEONARDI, Giovanni. L’infanzia di Gesù nei Vangeli di Matteo e Luca.
Padova: Edizioni Messaggero, 1975.
CYWINSKI, Eugênio. Historicidade do evangelho da infância segundo Lucas. Revista de cultura bíblica, São Paulo, v. 21, n. 85-86, p. 96, 1998.
[i] O artigo é uma
síntese do primeiro capítulo (A infância de Jesus em questão, p. 12-31) da
Dissertação de Mestrado “O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância
segundo Lc 2,41-52”, defendida junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e
Teologia – FAJE / 2008 e orientada pelo prof. Dr. Johan Konings, com o apoio da
CAPES – PROEX. A dissertação está disponível em: <https://www.faculdadejesuita.edu.br/dissertacoes-teologia-437/-o-cristo-pos-pascal-na-narrativa-da-infancia-um-estudo-de-lc-2-41-52--04092017-224410>.
Foi apresentado em conferência no II Colóquio de Literatura, História e
Ciências da Religião, Fortaleza-Ce, outubro de 2013.
[ii] David F.
Strauss, Wilhelm Wrede e Charles Guignebert encontraram na Narrativa da
Infância apoio para as hipóteses radicais sobre a origem dessa narrativa como
mitos.
[iii] Entre 1905 e
1930, estudiosos como Iosepho Knabenbauer, Marie J. Lagrange, Joseph Huby,
Friedrich Hauck, Emile Osty, Herausgegeben von J. Zahn, Alfred Plummer, John M.
Creed, Adolf Schlatter e Karl Bornhäuser se atinham ao sentido óbvio das
narrativas da infância sem entrar em questões de forma.
[iv] O autor
apresenta três perspectivas de gênero literário da Narrativa da Infância:
histórico, histórico-artístico e histórico-artístico-midráxico.
[v] O autor
pergunta pelas fontes de informação de Lucas. Contudo, o artigo não define a
perspectiva de Lucas como histórica, apenas procura pelo substrato histórico
por baixo da narrativa.
[vi] O autor refuta
a tese que explica a origem do relato da infância a partir da relação de Lucas
com o quarto Evangelho. Brown afirma que essa tese é baseada em pura
conjectura, uma vez que a cena de Jo 19,27 é altamente simbólica.
[vii] “As frequentes
aparições angélicas, a concepção virginal, a estrela maravilhosa que guia os
magos desde o Oriente e um menino dotado de prodigiosa sabedoria são, para
muitos, temas claramente legendários” [tradução nossa].
Ir. Márcia Eloi
Rodrigues é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação,
mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
(FAJE). Atualmente leciona Sagrada Escritura no Seminário Provincial Sagrado
Coração de Jesus, em Diamantina-MG.
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