terça-feira, 14 de julho de 2020

A historicidade da Narrativa da Infância: da negação à sua valorização



Na postagem anterior, refletimos brevemente sobre o processo de elaboração da cristologia na comunidade primitiva com o objetivo de responder à questão da inserção das narrativas da Infância (Mt 1–2; Lc 1–2) nos respectivos Evangelhos. Percebemos que a Narrativa da Infância faz parte de um momento posterior no desenvolvimento da cristologia e sua inserção nos Evangelhos se compreende melhor dentro desse processo. Veremos, agora, a discussão entre os autores modernos a respeito da historicidade do Relato da Infância segundo Lucas (1–2). Esse tema é importante, pois nos ajuda a compreender o Relato da Infância como Teologia, e não como histórias factuais da infância de Jesus (historicismo).

A historicidade da Narrativa da Infância[i]

A reflexão sobre o processo de compreensão da fé cristológica explica o motivo da adição dos relatos da infância de Mateus e de Lucas nos respectivos Evangelhos, se comparados com Marcos, o primeiro Evangelho. A retrospectiva da vida de Jesus desde sua infância, realizada pela comunidade cristã, deve-se a necessidade de clareza quanto à identidade do salvador. Não há, portanto, um interesse de narrar fatos históricos sobre a infância de Jesus em Nazaré.

Essa perspectiva, no entanto, parecia não ser tão clara para alguns estudiosos do século passado. Entre 1905 e 1930, deu-se início a uma discussão entre aqueles que defendiam e os que negavam haver qualquer base histórica nos relatos da infância. Os primeiros expoentes[ii] da crítica independente viram no Relato da Infância uma construção devocional sem bases históricas precisas (BROWN, 1982, p 67; SPINETOLI, 1967, p. 67). A inspiração desse relato não seria baseada na realidade, mas em modelos preexistentes na literatura extrabíblica, nas lendas gregas, egípcias, asiáticas e até indianas (SPINETOLI, 1967, p. 67).

Após os primeiros ardores a crítica liberal reviu sua posição e, abandonando as posições radicais, começou a ver, nos relatos da infância, problemas reais em torno da historicidade e do gênero literário dessas narrativas e dos evangelhos em geral (Ibid., p. 68).

Por outro lado, os católicos ignoraram por muito tempo as questões da historicidade e do gênero literário apegando-se a um conceito positivista de história (Ibid., p. 68, n. 3)[iii]. Esta postura foi mudada após uma primeira polêmica, e, sobretudo depois da Encíclica Divino Afflante Spiritu” de Pio XII, os católicos passaram a olhar a Narrativa da Infância com maior objetividade, e o centro de interesse passou a ser a estrutura e o estrato bíblico de tal relato (Ibid., p. 69).

Uma vez superado o conceito positivista de história, pois há muito que os críticos deixaram de ler os evangelhos como “vidas de Jesus”, manteve-se o interesse histórico do evangelho, numa outra perspectiva. Sem preconizar a história literal, alguns estudiosos defendem a historicidade substancial de Lc 1–2, baseando-se na autoridade das fontes lucanas, como é entendida por eles no prólogo ao evangelho (Lc 1,1-4). Estão certos de que os dois primeiros capítulos não são obra de piedosa invenção lucana (BROWN, 1982, p. 71).

Com base na existência desse substrato histórico, Andre Feuillet, por exemplo, no seu estudo de 1974, opina que os fatos narrados em Lc 1–2 seriam recordações conservadas e meditadas pelos discípulos do Batista e por Maria, a mãe de Jesus (FEUILLET apud LEONARDI, 1975, p. 113). O evangelista Lucas não seria o responsável por quase todos os detalhes da história da infância, mas tampouco estaria transmitindo um ensinamento destituído de valor histórico (LEONARDI, 1975, p. 113).

Como foi dito acima, a historicidade do Relato da Infância parece atestada pela autoridade das fontes lucanas. No prólogo (Lc 1,1-4), o autor afirma escrever sobre o que tinha visto e recebido das testemunhas oculares, que ele pesquisara desde o princípio. Ele pretende oferecer um relato ordenado. Estas afirmações deixam margem para pensar numa narrativa baseada em fontes históricas, pois, como dizem alguns, Lucas advertiria o leitor se começasse sua obra narrando dois capítulos de lendas ou parábolas (Ibid., p. 114)[iv]. Segundo este raciocínio, o prólogo atesta que Lucas teria empregado fontes históricas com extremo cuidado e que, por isso, o Relato da Infância é histórico, baseado em fontes fidedignas (BROWN, 1982, p. 243).

Na tentativa de evidenciar o substrato histórico do Relato da Infância, alguns estudiosos intentam elencar as fontes às quais Lucas teve acesso. As conclusões a que chegaram são as mais variadas possíveis e, por vezes, fantasiosas. Vejamos alguns desses casos.

O estudo de Andre Feuillet, referido acima, faz um confronto entre as tradições joaninas, presentes no Apocalipse, e as cenas cristológicas e mariológicas de Lc 1–2 e conclui que há relações convincentes. Segundo ele, Lucas teve acesso a esses acontecimentos através de João, que por sua vez, os recebeu de Maria, durante o período em que a acolheu em sua casa.

Eugênio Cywinski (1998, p. 96), em seu artigo, descreve os possíveis contatos que Lucas teve para redigir sua narrativa[v]. O autor pergunta pela probabilidade de Lucas ter recebido diretamente de Maria algumas informações. Afirma a possível influência por parte de João, a quem fora confiada Maria, alegando a afinidade entre o terceiro e o quarto evangelhos. Discorre sobre a estadia de Lucas com Paulo durante o cativeiro, onde Lucas teve dois anos de liberdade para movimentar-se e pesquisar sobre a infância de Jesus. Esteve em Nazaré, onde consultou algum arquivo. Relacionou-se com membros da família de Jesus. Essas seriam, para o autor, as principais fontes de informação que Lucas teve acesso. A hipótese do contato com João é, contudo, rejeitada no monumental estudo de Raymond E. Brown (1982, p. 242-243)[vi].

Segundo Ortensio da Spinetoli (1967, p. 102), o Relato da Infância contém episódios que foram elaborados por Lucas, com base em fontes históricas, que ele dispôs livremente e redigiu conforme sua intenção teológica. A Narrativa da Infância é composta por vários estratos superpostos e, por isso, torna-se difícil delinear o que é fato histórico e o que é artifício literário. O autor afirma ser preciso traçar uma linha entre o artifício literário, a realidade objetiva e a realidade bíblica, que são os três estratos que apoiam atualmente a obra (Ibid., p. 92).

A valorização dos substratos históricos da Narrativa da Infância é defendida por esses estudiosos como crítica àqueles que negam totalmente esses substratos ao tratar o relato como lenda edificante (BROWN, 1982, p. 19)[vii]. Evidentemente, não se pode negar certo grau de historicidade nos relatos da infância, assim como não se nega a historicidade nos Evangelhos. Como os estudiosos deixaram de ver nesses escritos uma biografia de Jesus sem, contudo, negar a base histórica dos relatos, essa postura também se reflete no Relato da Infância.

Por outro lado, a grande preocupação pelas fontes históricas da infância, veiculada por certos especialistas, acaba fragmentando a narrativa em busca das evidências históricas, causando um esvaziamento do sentido teológico, pois perdem a visão de conjunto atendo-se apenas aos detalhes.

A investigação bíblica dos últimos 20-30 anos revelou-se mais frutífera ao buscar recuperar o valor do Relato da Infância como teologia. Sem descuidar dos temas das fontes, da historicidade e do gênero literário, procurou-se perceber o sentido da Narrativa da Infância no interior do Evangelho já concluído, para captar a mensagem transmitida através desse relato (Ibid., p. 32).

Veremos, na próxima postagem, a discussão dos estudiosos modernos a respeito da teologia da Narrativa da Infância segundo Lucas, levando em consideração seu lugar no Evangelho lucano.

Referências

BROWN, Raymond E. El nacimiento del Mesías: comentario a los relatos de la infancia. Madrid: Cristiandad, 1982.

RODRIGUES, Márcia E. O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52. 2008. 121 p. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de filosofia e Teologia, Belo Horizonte, 2008.

SPINETOLI, Ortensio. Introduzione ai vangeli dell’infanzia. Brescia: Paidéia, 1967.

LEONARDI, Giovanni. L’infanzia di Gesù nei Vangeli di Matteo e Luca. Padova: Edizioni Messaggero, 1975.

CYWINSKI, Eugênio. Historicidade do evangelho da infância segundo Lucas. Revista de cultura bíblica, São Paulo, v. 21, n. 85-86, p. 96, 1998.



[i] O artigo é uma síntese do primeiro capítulo (A infância de Jesus em questão, p. 12-31) da Dissertação de Mestrado “O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52”, defendida junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE / 2008 e orientada pelo prof. Dr. Johan Konings, com o apoio da CAPES – PROEX. A dissertação está disponível em: <https://www.faculdadejesuita.edu.br/dissertacoes-teologia-437/-o-cristo-pos-pascal-na-narrativa-da-infancia-um-estudo-de-lc-2-41-52--04092017-224410>. Foi apresentado em conferência no II Colóquio de Literatura, História e Ciências da Religião, Fortaleza-Ce, outubro de 2013.

[ii] David F. Strauss, Wilhelm Wrede e Charles Guignebert encontraram na Narrativa da Infância apoio para as hipóteses radicais sobre a origem dessa narrativa como mitos.

[iii] Entre 1905 e 1930, estudiosos como Iosepho Knabenbauer, Marie J. Lagrange, Joseph Huby, Friedrich Hauck, Emile Osty, Herausgegeben von J. Zahn, Alfred Plummer, John M. Creed, Adolf Schlatter e Karl Bornhäuser se atinham ao sentido óbvio das narrativas da infância sem entrar em questões de forma.

[iv] O autor apresenta três perspectivas de gênero literário da Narrativa da Infância: histórico, histórico-artístico e histórico-artístico-midráxico.

[v] O autor pergunta pelas fontes de informação de Lucas. Contudo, o artigo não define a perspectiva de Lucas como histórica, apenas procura pelo substrato histórico por baixo da narrativa.

[vi] O autor refuta a tese que explica a origem do relato da infância a partir da relação de Lucas com o quarto Evangelho. Brown afirma que essa tese é baseada em pura conjectura, uma vez que a cena de Jo 19,27 é altamente simbólica.

[vii] “As frequentes aparições angélicas, a concepção virginal, a estrela maravilhosa que guia os magos desde o Oriente e um menino dotado de prodigiosa sabedoria são, para muitos, temas claramente legendários” [tradução nossa].



Ir. Márcia Eloi Rodrigues é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Atualmente leciona Sagrada Escritura no Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus, em Diamantina-MG.


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