sexta-feira, 10 de julho de 2020

O Relato da Infância de Jesus como Cristologia Pós-Pascal



Resumo

Neste artigo[i] abordaremos as questões em torno do estudo do Relato da Infância segundo Lucas como cristologia pós-pascal, a partir de duas questões principais: a discussão sobre a historicidade desse Relato e as perspectivas de alguns estudiosos que procuram corrigir Hans Conzelmann, autor que desconsidera tal Relato como teologia lucana.

Por questões metodológicas, dividiremos o assunto em três postagens: 1ª) Uma breve introdução, seguida do tópico sobre o desenvolvimento da cristologia; 2ª) o tema da historicidade da Narrativa da Infância e 3ª) a reflexão sobre Narrativa da Infância no contexto da teologia lucana, concluindo com a Narrativa da Infância como mini evangelho.

 

Introdução

A Narrativa da Infância[ii] segundo Lucas é extensamente estudada pelos especialistas atuais. A estrutura literária, a origem e a linguagem das fontes, o gênero literário, entre outros aspectos, são temas tratados por esses estudiosos. Observa-se que alguns aspectos dessa narrativa comparados ao restante do Evangelho causam certa estranheza quanto ao estilo lucano[iii] (SPINETOLI, 1967, p. 67). As peculiaridades presentes no Relato da Infância, o claro tom semítico e as possíveis fontes utilizadas por Lucas são elementos, entre outros, que levaram alguns especialistas a questionar o valor desse relato para o Evangelho lucano. São narrativas? Histórias edificantes? Episódios de crônica? (Ibid.).

Encontrar respostas para essas questões significa trilhar o caminho percorrido por muitos estudiosos na tentativa de uma aproximação da teologia desse relato e das motivações que levaram o evangelista Lucas a compor um relato com tal maestria.

Nossa intenção neste artigo é apresentar algumas questões pertinentes que se colocam à leitura do relato enquanto parte integrante da obra lucana. Para tanto, apresentaremos um esboço do processo de maturação da cristologia na Igreja primitiva, como pressuposto para se entender a inserção dos relatos da infância nos evangelhos. Depois veremos em grandes linhas como a pesquisa bíblica mudou de perspectiva na abordagem da Narrativa da Infância segundo Lucas, deslocando seu interesse sobre a natureza desse relato para sua compreensão no interior do Evangelho lucano.

O desenvolvimento da cristologia[iv]

Muitos estudiosos perguntaram-se porque Lucas começa seu evangelho com o relato da infância, uma vez que na pregação primitiva o nascimento de Jesus não era considerado na mesma perspectiva que a morte e a ressurreição (BROWN, 1982, p. 22). O anúncio era centrado no tema da morte e ressurreição de Jesus Cristo[v]. Ao querigma foram acrescentados, posteriormente, os fatos e as palavras recolhidos nas tradições sobre o ministério de Jesus, resultando, assim, nos evangelhos escritos.

O evangelho segundo Marcos, o primeiro a ser escrito, apresenta como “começo do evangelho de Jesus Cristo” (1,1) a narrativa do encontro de Jesus com João Batista no Jordão, e termina com a proclamação da ressurreição na tumba vazia (16,1-8). Os evangelhos segundo Mateus e Lucas trazem uma reflexão mais elaborada da cristologia. Estes acrescentaram ao material que colheram de suas fontes não só os ditos primitivos, mas os relatos da infância de Jesus. E, por último, o evangelho de João aprofunda ainda mais a cristologia ao fazer uma retrospectiva desde a preexistência de Jesus (Ibid., p. 20-21).

Trata-se de uma reflexão mais elaborada que corresponde a uma fase ulterior do processo de compreensão da fé Cristológica. A adição dos relatos da infância de Mateus e de Lucas se explica melhor à luz desse desenvolvimento da cristologia (Ibid., p. 26). A retrospectiva da vida de Jesus desde sua infância, realizada pela comunidade cristã, deve-se a necessidade de clareza quanto à identidade do salvador. Não há um interesse de narrar fatos históricos sobre a infância de Jesus em Nazaré.

Veremos, na próxima postagem, qual o valor dado à Narrativa da Infância na pesquisa bíblica moderna e a importante mudança de perspectiva em relação a sua historicidade.

 

Referências

BROWN, Raymond E. El nacimiento del Mesías: comentario a los relatos de la infancia. Madrid: Cristiandad, 1982.

RODRIGUES, Márcia E. O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52. 2008. 121 p. Dissertação (Mestrado em Teologia) – Faculdade Jesuíta de filosofia e Teologia, Belo Horizonte, 2008.

SPINETOLI, Ortensio. Introduzione ai vangeli dell’infanzia. Brescia: Paidéia, 1967.



[i] O artigo é uma síntese do primeiro capítulo (A infância de Jesus em questão, p. 12-31) da Dissertação de Mestrado “O Cristo pós-pascal na Narrativa da Infância segundo Lc 2,41-52”, defendida junto à Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE / 2008 e orientada pelo prof. Dr. Johan Konings, com o apoio da CAPES – PROEX. A dissertação está disponível em: <https://www.faculdadejesuita.edu.br/dissertacoes-teologia-437/-o-cristo-pos-pascal-na-narrativa-da-infancia-um-estudo-de-lc-2-41-52--04092017-224410>. Foi apresentado em conferência no II Colóquio de Literatura, História e Ciências da Religião, Fortaleza-Ce, outubro de 2013.

[ii] Embora muitos estudiosos usem a expressão “Evangelho da Infância”, fizemos a opção por empregar a denominação “Narrativa da Infância” ou “Relato da Infância” por razão de clareza, com o objetivo de afirmar que esse trecho é parte integrante do Evangelho de Lucas.

[iii] “O que atinge subitamente o leitor de Lc 1–2 é o tom familiar (“Havia no tempo do rei Herodes”), a ausência, ou quase, de contornos histórico-topográficos, o maravilhoso que aparece com frequência insólita no resto do evangelho, a simetria impecável das partes singulares ou cenas, a sincronização dos vários elementos que as compõem (contos, diálogos, hinos), as citações e a abundância de semitismos, as imitações escriturísticas, a diferença com o texto ‘paralelo’ de Mateus 1–2 etc.” [tradução nossa].

[iv] O desenvolvimento da cristologia que apresentamos refere-se somente ao período da formação das Escrituras neotestamentárias. Toda a reflexão cristológica posterior procurou explicitar em novos contextos e categorias o que já fora compreendido e elaborado nos escritos do Novo Testamento.

[v] No livro dos Atos dos Apóstolos aparecem fórmulas do querigma primitivo: At 2,23.32; 3,14-15; 4,10; 10, 39- 40; e também em 1Cor 15,3-4.



Ir. Márcia Eloi Rodrigues é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Possui graduação, mestrado e doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE). Atualmente leciona Sagrada Escritura no Seminário Provincial Sagrado Coração de Jesus, em Diamantina-MG.



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