domingo, 29 de agosto de 2010

Mês da Bíblia - Jonas: conversão e missão (texto base)

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

LEVANTA-TE E VAI À GRANDE CIDADE (Jn 1,2)**

Quem nunca ouviu falar no profeta Jonas que foi engolido por um grande peixe? Mas seria esse episódio o que há de mais importante nesse livro bíblico? Em que esse fato seria relevante para a fé dos judeus e para fé cristã hoje? As respostas a estas perguntas dependem de um estudo atento do texto bíblico dentro de seu contexto histórico, somente assim é possível descobrir traços que indiquem o perfil de quem o escreveu, a época de seu surgimento e, seus destinatários imediatos. Com esses dados, a mensagem de Jonas se mostrará atual para o século XXI.

1. O Autor
Numa leitura superficial do texto bíblico, o leitor contemporâneo pode cometer o equívoco de pensar que o autor desse livro tenha sido um profeta nacionalista de Israel do Norte, chamado Jonas, filho de Amitai, que viveu durante o reinado de Jeroboão II, por volta de 790-750 a.C., mencionado em 2Rs 14,25 e em Jn 1,1. Não é raro encontrar leituras fundamentalistas da Bíblia que tendem a concluir que o autor do livro de Jonas tenha sido aquele profeta do séculoVIII a.C.
Alguns aspectos do livro de Jonas, contudo, nos levam a concluir que a obra não poderia ter sido escrita no tempo de Jeroboão II, como veremos a seguir. Mas, se o livro não é do século VIII a.C. e se o autor não é o profeta Jonas, por que o texto se inicia com a seguinte indicação: “Veio a palavra do SENHOR a Jonas, filho de Amitai...” (Jn 1,1)?

O autor usa um recurso literário chamado de pseudonímia. Ele não está interessado em destacar a autoria do livro, nem em focalizar sua identidade. Isso era muito comum naquela cultura. Os autores dos livros bíblicos geralmente não assinam suas obras porque acreditam que estão apenas representando a fé e a experiência de um povo do qual são membros, ou seja, eles não falam em nome próprio e com seus escritos querem apenas trazer os filhos de Israel de volta para a aliança firmada com Deus.

O autor do livro permanece anônimo e usa como pseudônimo o antigo profeta Jonas, filho de Amitai, porque esse recurso o ajuda a divulgar melhor sua mensagem. Não sabemos quem escreveu o livro de Jonas, mas podemos fazer um perfil de sua personalidade a partir do texto bíblico. É alguém com mente aberta, como diríamos hoje, para ele todas as pessoas são alvos do amor e da misericórdia de Deus. É uma pessoa bem humorada que usa o recurso da ironia para convencer os judeus nacionalistas de sua época da inconsistência da postura exclusivista que considerava apenas o judeu como merecedor do amor de Deus.

2. A época
Para ter uma idéia sobre a época em que esse livro foi escrito, alguns aspectos devem ser considerados. Em primeiro lugar não é possível que seja do século VIII a.C., quando viveu o profeta nacionalista Jonas filho de Amitai, pois o texto hebraico emprega expressões conhecidas só muito tempo depois reinado de Jeroboão II [1]. Afirmar que o livro de Jonas foi escrito no século VIII a.C. seria algo semelhante a dizer que um dos modernos escritores brasileiros teria vivido no tempo de Dom João VI. O hebraico sofreu modificações ao longo da história, como acontece a qualquer idioma.

Outro aspecto a ser levado em conta é que o livro de Jonas contém expressões em aramaico [2], idioma oficial dos judeus durante o domínio persa (538-333 a.C.), mas que não era falado por eles antes do exílio da Babilônia (587-538 a.C.). Portanto, o livro tem que ser posterior ao século VI a.C.

Em Jn 1,9 encontra-se a expressão “Deus dos céus que fez o mar e a terra”. Isso indica um período tardio da teologia de Israel. Em épocas mais antigas era comum falar no Deus libertador, destacando as características de guerreiro, que fez aliança com Israel considerado seu único povo dentre todas as nações.

Esses e outros aspectos levam à conclusão que o livro de Jonas foi escrito após o período de Esdras e Neemias quando a maioria dos judeus, depois de sofrer a dominação de vários impérios estrangeiros, havia desenvolvido forte espírito de exclusivismo e de particularismo e não queria uma aproximação com outros povos e muito menos exercer a vocação missionária de fazer o Deus de Israel ser conhecido e amado pelas demais nações.

Como o livro de Jonas faz parte do bloco dos doze profetas, mencionado em Eclo (Sir) 49,10-12, ele não pode ter sido escrito depois do ano 170 a.C, possível época do surgimento do Eclesiástico. Por isso a maioria dos estudiosos está de acordo que o livro de Jonas data provavelmente do final do século V a.C, ou início do século IV a.C.

3. A obra
O autor do livro de Jonas, unindo o recurso da pseudonímia ao da ironia, escreve um conto edificante que termina com uma lição dada por Deus ao protagonista. O conto edificante é um gênero literário muito conhecido entre os mestres judeus e, nesse caso específico, podemos classificá-lo como um midraxe hagadá, ou seja, uma narrativa que interpreta um texto bíblico à luz de um contexto histórico posterior.

O autor do livro de Jonas, ao ler 2Rs 14,25s quatro séculos depois, se pergunta como o Deus de Israel poderia conceder uma profecia de coisas boas para o Reino do Norte no tempo de Jeroboão II se o povo daquela época era desleal e tinha um rei que persistia em todos os pecados dos seus antecessores. A teologia que estava em voga, no tempo em que 2Rs foi escrito, considerava o relacionamento de Deus com o ser humano regido pela bipolaridade justiça-bênção e injustiça-castigo. Nessa visão mecanicista da vida e das relações se supunha que as ações humanas desencadeariam bemestar geral ou má sorte, conforme agradasse ou desagradasse a Deus. Era pensar comum que o futuro do ser humano dependeria da submissão a essa ordem da qual nem Deus poderia fugir. Esse tipo de pensamento foi nomeado pelos estudiosos como Teologia da Retribuição, o melhor seria designá-la por ideologia da retribuição.

Sendo assim, como é possível que a passagem de 2Rs 14,25s, marcada pelas concepções de retribuição, poderia relatar uma profecia de prosperidade para um reino infiel à aliança com Deus? Se tal era possível ao Reino de Israel não seria possível às demais nações? Então o autor do livro de Jonas pensa em usar aquele profeta nacionalista de quatro séculos atrás para profetizar a misericórdia de Deus aos inimigos que haviam destruído Samaria, capital de Israel, em 722 a.C. Não podemos deixar de perceber a ironia contida aqui: o Jonas histórico (2Rs 14,25) profetiza a prosperidade e a expansão do Reino do Norte e o Jonas personagem do conto edificante tem que profetizar a favor dos habitantes da cidade de Nínive destruidores de Samaria, capital do reino do Norte.

A ironia também está presente no significado do nome do protagonista. Jonas em hebraico é Yonah e significa “pomba”, ave conhecida como símbolo da paz e das boas relações entre Deus e o ser humano, haja vista a pomba com o ramo de oliveira como sinal do fim do dilúvio. O profeta Oséias comparou com uma pomba os deportados de Israel do Norte para a Assíria quando assegurou que Deus os traria de volta apesar da inclinação deles a desviar-se da palavra do Senhor (Os 11,7-11). A palavra Yonah, além disso, deriva da raiz do verbo Yanah que significa chorar, reclamar, lamentar. Então o nosso protagonista Jonas deveria ser sinal de paz, mas se mostra como uma pessoa intransigente que reclama de tudo ao longo da narrativa, com nítida inclinação para a desobediência à palavra de Deus.

Ao ser questionado sobre sua identidade, Jonas afirma que é hebreu e adora o Deus criador do mar e da terra. A fé no Deus criador traz como consequência o reconhecimento de seu amor por todos os povos. Dessa maneira, Jonas afirmou que a autoridade de seu Deus não está limitada a um território determinado, mas tinha domínio universal. Com isso se vê a ironia da situação de Jonas: crer que Deus domina sobre o mar e a terra e, ao mesmo tempo, está fugindo de sua presença.

Os termos Israel, profeta e profecia não aparecem nem uma vez no livro de Jonas. Isso mostra que não se trata de um de um livro profético. E qual contexto histórico estaria sendo interpretado nesse bemhumorado conto? A pista nos é dada no final do livro, na lição que Jonas é forçado a receber: a misericórdia de Deus está sobre todos os povos e sobre toda criatura. Se a maioria das pessoas não sabe disso é porque falta quem lhes anuncie essa boa-notícia. O autor do livro de Jonas viveu em uma época marcada por reformas radicais nacionalistas desde Esdras e Neeemias, basta conferir os capítulos nove e dez do livro de Esdras e a ordem para que os judeus se divorciassem das esposas estrangeiras e expulsassem os filhos nascidos desses casamentos mistos. Veja também Ne 13,23–28.

Ao lado dessa tendência nacionalista exacerbada caminhava uma tendência universalista que considerava o estrangeiro como filho de Deus. Defensores dessa tendência são os textos de Is 40–55 e o livro de Rute, entre outros. O autor do livro de Jonas empresta sua voz à teologia universalista para defender o direito de Deus amar a todos, sem fazer acepção de pessoa. Para criticar a tendência nacionalista o autor faz o personagem Jonas preferir morrer a aceitar o amor de Deus para com os estrangeiros. Na linguagem de hoje diríamos que o livro de Jonas foi escrito para animar os judeus a assumir sua responsabilidade missionária para com as outras nações, nesse sentido, esse escrito é um precursor do mandato missionário do evangelho.

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Notas:

** Publicado originalmente no site da CNBB
[1] WYATT, Roy & WYATT, Joyce. “Jonas” in Daniel CARRO et. al., Comentario Bíblico Mundo Hispano -
Tomo 13: Oseas - Malaquías, El Passo: Editorial Mundo Hispano, 2.000, p. 167.
[2] Ibidem.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

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