sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Paulo em Filipos: o anúncio do Evangelho numa grande cidade

Aíla L. Pinheiro de Andrade*, nj.

Paulo levou o Evangelho aos filipenses, possivelmente, durante a segunda viagem missionária (cf. At 15,36–18,17), por volta do ano 48 dC. A cidade, fundada em 360 aC. pelo general ateniense Calístrato de Afidna, no vale sul do monte Órbelos (atual monte Lekani) na Macedônia oriental, recebeu o nome de Krénides (em grego, “fontes”), por causa das muitas fontes do rio Angites. Posteriormente, ameaçada por tribos vizinhas, em 356 aC a cidade pediu auxílio a Filipe II, rei de Macedônia, pai de Alexandre Magno. Felipe II apoderou-se das minas de ouro ali existentes e refundou a cidade dando-lhe seu próprio nome. Filipos era uma porta de entrada para Europa, pois a cidade estava situada numa posição estratégica atravessada pela Via Egnatia [1], rota principal para o porto de Neápoles. Em 42 AEC, a cidade foi convertida em importante “colônia romana” (cf. At 16,12), uma espécie de Roma em miniatura, cujos cidadãos gozavam de privilégios (ius italicum) semelhantes aos da capital, como por exemplo, estar livres de impostos e com direito de governar-se por magistrados próprios, chamados de pretores. O orgulho de possuir esses privilégios era uma forte característica dos filipenses. Paulo chegou a Filipos, em companhia de Silas, sem conhecer ninguém na região. Os judeus ali residentes deviam ser poucos, pois não havia edifício para assembléia litúrgica (sinagoga), mas reuniam-se à margem de um rio (cf. At 16,12-13), possivelmente tratava-se do Angites ou de uma de suas fontes. Conforme o livro de Atos dos Apóstolos, em Filipos Paulo encontrou Lídia (cf. At 16,14), uma comerciante de púrpura, que era “temente a Deus”. Depois de aceitar o evangelho e fazer-se batizar, Lídia ofereceu sua casa para que servisse de alojamento aos missionários, providenciando dessa forma uma base para a missão (At 16,15.40).

1 Os desafios de uma grande cidade

1.1 Pluralismo religioso
Segundo o relato de At 16,16, em Filipos, Paulo curou uma escrava que estava sob o domínio de um “espírito pitônico” (de Píton, divindade grega muito cultuada na época). Na mitologia grega, Píton era uma serpente ou dragão que vivia na região de mesmo nome, ao pé do Monte Parnaso, e da qual se afirmava que guardava o oráculo de Delfos. Narra o mito que Apolo matou essa grande serpente para adquirir seu espírito de adivinhação. Por isso, era denominada pitonisa toda mulher que tivesse o dom de prever o futuro ou fosse sacerdotisa de Apolo.
A expressão “temente a Deus” para designar Lídia em At 16,14 revela uma categoria religiosa bem específica. Temente a Deus era uma pessoa gentia (não judia) que simpatizava com o judaísmo e participava do culto na sinagoga. Os “tementes a Deus” estavam familiarizados com o Antigo Testamento (na versão grega – LXX) e com as práticas judaicas do amor ao próximo, da observância do Decálogo (dez mandamentos), da doação de esmolas, da santificação do tempo (orações em horários definidos) e praticavam o monoteísmo ao Deus de Israel.
Ao afirmar que não havia edifício para sinagoga, mas que os judeus residentes em Filipos se reuniam aos sábados à margem de um rio (cf. At 16,12-13), o texto bíblico refere-se possivelmente à existência de judeus helenistas. Estes eram diferentes dos judeus de Jerusalém e arredores. Os judeus helenistas tinham por idioma o grego e viviam espalhados nas regiões ao longo do império romano, na Diáspora [2]. Eles tinham uma mentalidade mais aberta porque estavam constantemente em contato com outras culturas. Mesmo fora da Terra Prometida, eles cumpriam as normas fundamentais da fé judaica, apesar de não serem tão estritos nos detalhes.
Após a passagem de Paulo por Filipos, surgiu também nessa cidade o grupo dos seguidores de Jesus. O novo grupo, provavelmente era formado por judeus helenistas, por “tementes a Deus” e por ex-adoradores de divindades do império romano.

1.2 Exploração
Da mesma forma que acontecia com Jesus nos evangelhos, com a proclamação de Paulo e Silas sobre a chegada do Reino de Deus, as trevas cederam lugar à luz (cf. Mc 1,25; 3,12; Lc 4,35; At 16,16-18). A jovem foi libertada do espírito de adivinhação. Antes ela era totalmente alienada, ou seja, não era dona de si, mas possuída pelo espírito pitônico e pelos donos que a exploravam obtendo muitos lucros à custa dos oráculos que ela proferia (At 16,16). Não se menciona o nome dela, mas apenas sua condição de escrava.

1.3 Violência
Indignados por perderem seus lucros, os donos da escrava desencadearam forte perseguição contra Paulo e Silas. Agarraram os dois, os arrastaram e os levaram à praça da cidade (At 16,19). Usaram o preconceito contra os judeus (anti-semitismo) para acusar os missionários de não respeitarem os costumes romanos (At 16,20-21) o que provocou o ódio da multidão. Paulo e Silas foram açoitados e levados à prisão. Também tiveram seus pés presos no tronco que ficava no fundo da prisão (At 16,22-24). E tudo que eles tinham feito era devolver a dignidade de uma pessoa. Mas a sede de lucro não podia suportar isso sem uma reação acompanhada de diversos tipos de violência.

2 Características da Igreja de Filipos
É provável que entre o episódio da conversão de Lídia (At 16,13-15) e os acontecimentos que motivaram a violência contra os missionários (At 16,16-24), tenha se passado algum tempo. A carta aos Filipenses menciona vários colaboradores que ajudaram Paulo na evangelização (cf. Fl 2,25; 4,3). Isto pressupõe uma comunidade florescente que não teria sido possível sem uma estadia prolongada dos apóstolos na cidade. A narrativa de Lucas teria saltado do episódio inicial, conversão de Lídia, ao episódio final, a violência contra Paulo e Silas e o “convite” para que ambos se retirassem da cidade.
Portanto, ao saírem da cidade, Paulo e Silas deixaram uma igreja formada. Entre as pessoas que colaboraram com os missionários estão algumas mulheres. Em Fl 4,2-3, Paulo roga a Evódia e a Síntique que se ponham em harmonia no Senhor (a expressão grega pode ser traduzida por “sentir” ou “pensar” (cf. Fl 2,2). São mulheres evidentemente de destaque na comunidade. Paulo se dirige a ambas recordando o fato de que haviam colaborado com ele tanto quanto Clemente. O verbo que descreve a ação dessas mulheres é synathléo (que significa “esforçar-se ao mesmo tempo junto com alguém”) usado por Paulo apenas em Filipenses, nessa passagem 4,3 e em 1,27 quando se esforçam juntos para manter a fé. O verbo synathléo era usado na linguagem cotidiana para exprimir a luta penosa e até mesmo a morte com que os gladiadores estavam submetidos no circo romano. Isso mostra o valor dessas mulheres e dos filipenses em geral.
Talvez, por causa de tanto empenho, não despercebido por Paulo, o apóstolo manifeste a ternura que não foi tão enfatizada nas outras cartas. Pois logo no início, na ação de graças pela comunidade, afirma: “Deus é testemunha das saudades que tenho de todos vós, com a ternura de Cristo Jesus” (Fl 1,8). Inclusive, Timóteo, o co-autor da epístola, é a pessoa mais indicada para levar a carta, por causa da sinceridade com que ama tanto a Paulo quanto aos filipenses (Fl 2,19-23). Destinatários da carta também demonstraram muita ternura para com o apóstolo ao enviarem Epafrodito com um donativo para o sustento de Paulo enquanto estivesse preso (Fl 4,18).

_____________
[1] A Via Egnatia partia de Bizâncio e, atravessando a Trácia e a Macedônia, chegava no Adriático, terminando na Via Apia que ligava a Roma. Entre as cidades atravessadas pela Via Egnatia estavam: Filipos, Anfípolis, Apolônia e Tessalônica, que foram visitadas por Paulo (cf. At 16,12; 17,1).
[2] O termo grego diáspora geralmente é traduzido por dispersão e significa as regiões, fora de Israel, por onde os judeus estão dispersos. Literalmente o termo significa “semeadura” (do grego sporá, semente). Dessa forma, os judeus destacam que a semente de Abraão (descendência) que carregam consigo e a semente de Deus (palavra) está semeando a fé no Deus vivo e verdadeiro por entre as nações através da proclamação da Torah nas sinagogas.

BIBLIOGRAFIA
BAKIRTZIS, Charalambos & KOESTER, Helmut (ed). Philippi at the time of Paul and after his death, Harrisburg: Trinity Press International, 1998.
O'BRIEN, Peter T. The Epistle to the Philippians: a Commentary on the Greek Text, Grand Rapids: William B. Eerdmans Publishing Company, 1991. New International Greek Testament Commentary.

*Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

Nenhum comentário: