quinta-feira, 23 de abril de 2015

A mulher foi criada da costela do homem?

Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj* 

Em Gn 2,7 se afirma: “Então Deus formou adam da adamah".

Geralmente as bíblias não traduzem o termo adam, apenas o transliteram, e fica parecendo que é sempre o nome de um homem, Adão. Mas traduzem o termo adamah por terra ou barro. Isso causa confusões. De fato, o termo adam não é usado exclusivamente para expressar raça humana, além desse conceito, também é nome próprio do personagem dos dois textos da criação. Mas, no contexto desse versículo, a melhor tradução para adam é “humano” ou “ser humano’, pois quando o texto hebraico quer designar especificamente o masculino usa o termo ish. O ser humano, adam, é aquele que foi tirado do “humus”, da terra, pois adamah significa o solo bom pra trabalhar, a terra que pode produzir bom fruto. Com essa afirmação de Gn 2,7, o autor quer dizer que o primeiro ser é indefinido sexualmente e deve ser escrito com minúsculas (adam).

Em Gn 2,22 encontramos: “E da tsela‘ de adam, Deus fez a fêmea”.

Da mesma forma, as bíblias geralmente traduzem tsela‘ por costela. Contudo, tsela‘ significa metade, banda, cada margem de um rio. Tsela‘ pode ser o conjunto das costelas, do lado esquerdo ou do lado direito. A melhor tradução seria: “de uma das metades de adam (humano), Deus fez a fêmea”. Da outra metade, é óbvio, Deus fez o macho. Não precisa nem falar o óbvio.

Em Gn 2,24, lemos: “Portanto, o macho (ish) deixará seu pai e a sua mãe, e se unirá à fêmea (ishah), e serão uma só existência”. Ou seja, as duas metades se encontram e se tornam adam, o ser humano original. O ser humano completo, a existência plena, não pode ser definida a partir do macho ou da fêmea, mas da beleza e da união de ambos. É bom lembrar que esses mitos, parábolas e lendas, presentes no Livro do Gênesis, fazem parte de outras literaturas do Oriente próximo, muito mais antigas que a bíblia. E até mesmo Platão (Ocidente), que é filósofo, menciona o ser humano original como hermafrodita e posteriormente dividido em duas metades. Ou seja, o ser humano completo não se encontra no gênero masculino, mas na união das duas partes.

Jesus usou Gn 2,24 para falar sobre o divórcio (Mc 10,7-9). Vejamos: a mulher era a única prejudicada pela separação naquela época (apesar de a Lei mosaica lhe dar alguma garantia, coisa que raramente era posta em prática pelo marido). A mulher poucas vezes tinha direito à herança[1], não tinha pensão do marido, não tinha emprego, não tinha nada… Uma vez repudiada pelo marido, duas opções apenas pareciam viáveis: mendigar ou prostituir-se para viver[2]. E não era raro isto acontecer. Às vezes o homem, dava carta de divórcio à mulher e deixava-a desprotegida, sem nenhum amparo[3]. Jesus, sabendo do domínio do macho, protege a mulher: “nada de dar cartas de divórcio às mulheres; a humanidade completa está na igualdade das relações e não no domínio masculino”.

Voltemos ao Gênesis. A parábola da criação do homem e da mulher é muito romântica quando bem traduzida e não há machismo algum no relato que diz que Deus fez a mulher da metade de adam. Há muito menos ainda a pretensão da bíblia de dizer como o homem e a mulher surgiram (origem do ser humano, no sentido científico). O texto quer apenas explicar a atração entre o masculino e o feminino. Esse tipo de literatura quer refletir sobre questões existenciais, por isso os antigos mitos são muito usados hoje pela psicologia e filosofia.

Mas é aí: A mulher foi feita da costela de Adão ou não? Sim e não! Sim, se entendemos que esse Adão (Adam) é o ser humano original e a costela (tsela’) é a metade dele, assim como o homem também foi feito da outra metade. Não, se entendemos que Adão é um homem e se pensamos que a costela é uma vértebra do seu corpo. Obvio até! A anatomia do corpo humano já mostrou isso: não falta uma costela no gênero masculino, como o relato da criação poderia fazer pensar aos desavisados

[1] Dos pais, caso não tivesse irmãos, a mulher ficava com a herança (cf. Nm 27,1-11). Do marido, em caso de morte, a mulher herdava por meio do filho, mesmo que este fosse criança.

[2] Uma terceira opção era casar-se novamente, mas esta não era coisa muito fácil para a repudiada.

[3] Tomemos cuidado ao ler estas linhas para não efetuarmos um juízo muito rigoroso com os orientais, afinal as leis deles são mais antigas e – em alguns aspectos – mais justas que as dos ocidentais, que só recentemente tem leis para defesa da mulher.
* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).

4 comentários:

vandalci disse...

Eu tenho aprendido muito com suas explicações tão claras - muito obrigada! Vou juntando com as aulas do Haroldo e está dando um resultado lindo! Vandalci - Vancouver - Canada

Anônimo disse...

Aíla voce é essencial no nosso aprendizado!!!
Deus continue te inspirando...
Abracos de gratidao. Altino

Adriana Jaeger disse...

Adorei tb a figura dos bonequinhos! Lindos!

Anônimo disse...

Blog muito bom! Valeu!