quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Relembrar o ser missionário da Igreja

*Márcia Elói Rodrigues,nj

Na história do cristianismo, infelizmente, testemunhamos vários desvios na trajetória de sua missão no mundo. O esquecimento da dimensão ética de sua missão se faz perceber nos modelos que adquiriu ao logo dos séculos. A preocupação com as massas, com o número de fiéis, ou com a manutenção das nossas igrejas deixou uma lacuna na história da missão da Igreja.

No entanto, graças à dinamicidade do Espírito Santo que conduz a Igreja, houve um despertar de sua realidade missionária no mundo[1]. Esse retorno se deu graças às novas práticas pastorais, que levaram para o âmbito da teologia questões há muito tempo esquecidas. O olhar da Igreja voltou-se para o pobre como destinatário de seu agir missionário a partir do Concílio Vaticano II, que cunhou no seio da Igreja todo um movimento de abertura para os povos e seus contextos. Nesse movimento, a América Latina se beneficiou da novidade trazida pelo Concílio.

"A Igreja do Vaticano II, que se definiu simbolicamente versus populum, ao tirar os altares das paredes para permitir celebrações eucarísticas face a face com o povo; na América Latina, procurou definir-se em seus documentos e em sua prática missionária como Igreja voltada aos pobres, aos mais frágeis e aos outros" [2].

E, a partir de Medellín, a centralidade dos pobres emergiu como opção preferencial e como centro centro da reflexão teológica e da prática missionária [3].

A partir de Medellín, a América Latina lança um questionamento no interior da própria Igreja sobre sua identidade missionária entre os crucificados desse mundo. E, graças a isso, a Igreja da América Latina tem se voltado para essa realidade, embora ainda muito timidamente. Isso porque a evangelização dos pobres terá êxito na medida em que a missão da Igreja partir de dentro da realidade do pobre.

Nesse sentido, Medellín propõe mudanças radicais no interior da Igreja. Estimular as congregações religiosas para formar pequenas comunidades encarnadas realmente nos ambientes pobres favoreceria sua aproximação com o povo[4], foi uma delas.

Entretanto, Medellín não produziu uma transformação estrutural da Igreja. Ainda não era tempo. Ela foi um fermento na massa. Sua proposta permanece até hoje, como tarefa para a Igreja [5].

Com Puebla, a proposta de Medellín foi assumida e aprofundada. “Puebla não só faz uma opção pelos pobres, mas, de certa maneira, já faz uma opção com os pobres ao afirmar que ‘o eixo da evangelização libertadora (...) transforma o homem em sujeito de seu próprio desenvolvimento individual e comunitário’ (Puebla, 485)” [6].

A opção com os pobres é a opção de Jesus. Ao assumir a humanidade, Jesus solidarizou-se com a situação deles, em sua vida pobre e despojada, vivida na solidariedade e na abertura do outro, recebendo-o como dom. Nesse sentido, Puebla afirma:

“Só por este motivo, os pobres merecem uma atenção preferencial, seja qual for a situação moral ou pessoal em que se encontrem. Criados à imagem e semelhança de Deus para serem seus filhos, esta imagem jaz obscurecida e também escarnecida. Por isso Deus toma sua defesa e os ama. Assim é que os pobres são os primeiros destinatários da missão e sua evangelização é o sinal e prova por excelência da missão de Jesus" (Puebla, 1142).

Um caminho à espera de ser trilhado

Mas por que os pobres, os marginalizados, os excluídos ainda não estão no centro da missão da Igreja? Porque ainda existe tanta pobreza, injustiça, exclusão dentro da própria Igreja? O que temos a dizer quando a sociedade nos questiona? Quando olhamos para um país como o Brasil, onde há tanta desigualdade social, injustiça, fome, miséria, podemos realmente afirmar que é um país cristão? Será que a Igreja, Povo de Deus, está realmente cumprindo seu papel no mundo? Ela se lembra do por que de sua existência?

Anunciar a Boa Nova aos pobres não é tarefa fácil. Muitas vezes, antes de anunciar a Palavra, se faz necessário humanizar essas pessoas, torná-las dignas para receber a Boa Nova. E isso significa que antes de proclamar a palavra é preciso matar a fome dos famintos, vestir os nus, visitar os doentes, acolher os esquecidos (cf. Mt 25,35-36). Falar do amor de Deus sem testemunhar esse amor é palavra vazia, sem autoridade. Talvez nossos discursos missionários não sejam escutados porque nossas ações não condizem com nossas palavras.

Falamos da opção pelos pobres, mas será que conhecemos realmente sua realidade? Saímos ao seu encontro ou permanecemos no conforto de nossas moradias? Falamos da marginalidade, da exclusão, quando mal conseguimos suportar a idéia de não ter nosso nome, nosso trabalho reconhecido na Igreja. Como falar de partilha vivendo no consumismo egoístico, no acúmulo de coisas supérfluas e que achamos necessárias para nosso bem-estar. Onde estão a partilha, a solidariedade e o testemunho cristão? Como falar do Deus conosco para o irmão que vive em situação limite sem conhecer a realidade da qual se volta o olhar benevolente de Deus?

“O povo de Deus espera sinais de justiça, gestos de coragem e decisão de inclusão (participação) eclesial, não para fugir do Império, mas para transformá-lo” [7]. À nossa pregação deve seguir-se nosso testemunho, como Jesus. Com isso, pode ser que a palavra que anunciamos seja dita com autoridade e produza frutos. Eis aí um desafio para a missão da Igreja! Eis um caminho a ser trilhado.

Notas
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[1]SUESS, Paulo. Introdução à teologia da missão. Convocar e enviar: servos e testemunhas do Reino, Petrópolis: Vozes, 2007, p. 118.
[2] Ibidem, p. 139.
[3] Ibidem, p. 141.
[4] Ibidem, p. 144.
[5] Ibidem, p. 145.
[6] Ibidem, p. 150.
[7] Ibidem, p. 161.

*Márcia Elói Rodrigues é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, onde também fez mestrado em teologia bíblica

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