sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Soteriologia: Uma questão atual e uma linguagem insuficiente?

Rita Gomes,nj*


Introdução

“Muitas vezes e de muitos modos, Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas. Nesses dias, que são os últimos, falou-nos por meio do Filho a quem constituiu herdeiro de todas as coisas e pelo qual também criou o universo.” (Hb 1,1-2)

Assim como Deus falou de muitas formas até falar na plenitude dos tempos por meio do Filho, a experiência de salvação trazida por Este foi retraduzida em diferentes linguagens, em tempos, contextos e experiências distintas.

Nosso tempo exige uma linguagem que fale à razão e ao mesmo tempo à sensibilidade do ser humano. Há algo de frágil ou inacessível na linguagem soteriológica tradicional? Ou abriu-se um fosso entre essa forma de dizer a salvação e o modo racional-existencial de ouvir do humano hodierno? Essa mensagem deixou de ser significativa ou é apenas incompreensão e por isso, aparentemente inaceitável? O sujeito de hoje precisa de salvação? Deseja ser salvo? Sabe o que significa isso?

Estamos diante de um novo sujeito social destituído de uma narrativa de vida que contemple o aspecto religioso. A grande maioria foi educada em ambientes totalmente secularizados. Percebe-se uma espécie de ausência da experiência religiosa na formação e quando aparece alguma base religiosa revela-se inconsistente. O sujeito de hoje não se reconhece necessitado de uma salvação, uma vez que perdeu a perspectiva de finalidade. A salvação chega-lhe como algo demasiado extrínseco. Salvos de quê e para quê?


1 A salvação e sua história na teologia
O primeiro ponto a considerar é o conteúdo da salvação. O que dizemos e pensamos quando falamos de salvação? O que significa? Segundo o documento da Comissão Teológica[1] a Salvação ou Redenção diz o que “Deus fez para nós na vida, morte e ressurreição do Cristo, ou seja, leva-nos à comunhão com Deus”[2]. Dá-nos a condição de viver a nossa vocação primeira, participar da vida divina. Sermos Filhos no Filho. Mas, essa realidade como testemunha Hb 1,1-2 conhece uma “história de explicitação” no interior mesmo da Sagrada Escritura.

Ao falar da salvação a Bíblia o faz, em última instância, em narrativas e louvores que cantam e celebram o socorro divino em benefício do humano. Daí a diversidade de categorias utilizadas pela teologia para tematizar essa verdade inalienável do Cristianismo. Deus vem ao encontro do humano para fazê-lo participar de sua vida de comunhão.

Por sua vez a história da teologia, a respeito da soteriologia, nos legou um desenvolvimento tão amplo que é difícil perceber com um olhar. Uma abordagem histórica surge como a melhor maneira de visualizar as mudanças no processo de compreensão dessa verdade de fé.

No primeiro milênio pensava-se, bem próximo ao testemunho bíblico, na iniciativa divina que vinha ao encontro do homem, resgatando-o de uma existência sem sentido. Deus é a plenitude de sentido. O humano é dependente de Deus de quem recebe as graças como graça. No segundo milênio o mundo mudou. O homem enquanto razão passou a ser “a medida de todas as coisas”. No racionalismo moderno o sentido é dado pelo sujeito racional. A “salvação oferecida por Deus” é pensada a partir do homem.

Aqui se abre o espaço para a reflexão de Karl Rahner. Seu pensamento se constrói no diálogo com a Modernidade. Rahner tematiza a salvação partindo da antropologia. Sua linguagem filosófica possibilita uma visão racional, por isso aceitável ao homem moderno, da autocomunicação sobrenatural de Deus.

Contudo, não significa que a salvação seja realizada pelo homem, ou mesmo que parta deste a iniciativa. Por isso, a reflexão de Rahner, com todas as críticas que se possa fazer a ela, permanece atual e de uma riqueza única. O que torna seu pensamento instigante e espetacular é o fato de articular de modo magistral os aspectos “descendente” e “ascendente” da soteriologia. Essa articulação não anula seu lugar na “soteriologia descendente”.

Para ele o ser humano é um ser de transcendência, capaz de ultrapassar sua experiência particular de tempo e espaço. Deus criou o ser humano com a capacidade de escutar a Palavra divina, ou seja, a revelação de Deus. Este jamais cerceia a liberdade humana, de modo que pode acolhê-la ou rejeitá-la.

2 A “autocomunicação de Deus” e o “existencial sobrenatural”
Para chegar ao afirmado acima, Rahner percorre um longo caminho. No Curso Fundamental da Fé expõe primeiro acuradamente sua visão do homem: a antropologia transcendental. É nela que alicerça seu discurso e sem ela não seria uma autocomunicação de Deus.

As primeiras etapas visam explicitar as “condições de possibilidade” para o homem acolher o mistério cristão: Deus que se faz homem para que o homem possa participar da vida divina. Por isso Rahner apresenta detalhadamente o processo humano do conhecimento como “ser de transcendência”. É por ser abertura, capaz de transcender que o humano pode receber a mensagem da fé cristã.

A antropologia é o lugar de encontro da revelação de Deus ao homem como autocomunicação e da resposta humana a Deus. Essa resposta humana é já graça, ou seja, é possibilitada pelo próprio Deus. O que Rahner chama de “existencial sobrenatural” é a acolhida do dom de Deus no homem tornada possível por Deus mesmo.

Desse modo, sua reflexão se inscreve no chamado movimento descendente da soteriologia clássica. Prefiro dizer que sua reflexão faz o papel de “dobradiça” entre os dois movimentos e se torna o terreno propício para o aprofundamento e correção de desvios nas reflexões de algumas categorias soteriológicas.

Esses dois conceitos rahnerianos são os pilares de sua construção teológica. A “autocomunicação de Deus” é tão cara a teologia católica que figura na Dei Verbum como a grande passagem da compreensão de Revelação enquanto “verdades reveladas” para um revelar-se do próprio Deus na História da Salvação. Deus mesmo se autocomunica em seu agir amoroso em favor dos homens na história.

3 Possíveis críticas à reflexão rahneriana
Uma das críticas feitas ao pensamento de Rahner é a pouca fundamentação bíblica de sua reflexão. É verdade que não encontramos em seus textos referências bíblicas explícitas. Ele não utiliza a Escritura como “autoridade”. Não é necessário. Mas, para o simples conhecedor da Sagrada Escritura é impossível não perceber no pensamento de Rahner a exposição de temáticas da Escritura tais como: a mensagem teológica do “poema da criação” ou do “drama do jardim” em que o ser humano é por excelência o ouvinte da Palavra.

A profissão de fé israelita consignada no shemah é a confissão no Deus criador. O Deus que criou um ser dotado de liberdade e capaz de dialogar com Ele. Criou um ser capaz de responder, inclusive negativamente ao seu convite à comunhão de vida. Isso é o que nos diz o relato da criação e da queda no livro do Gênesis. Do relato da criação percebemos que o mais constitutivo do ser humano é ouvir a Palavra que lhe vem ao encontro e responder a ela conforme ensina o shemah, com toda nossa vida, sem reservas.

Uma crítica menos contundente, mas positivamente forte é a complexidade de suas exposições. Poucos são os que se aventuram a estudar a fundo o pensamento deste autor.

À guisa de conclusão
Mesmo que não seja simples uma aproximação dos textos rahnerianos, por causa de sua complexidade, é uma exigência imposta pela necessidade de uma reflexão consistente para o humano de hoje. A riqueza e a atualidade de sua contribuição não devem ficar limitadas aos círculos intelectuais. Sua reflexão chega ao ser humano e ressoa por falar ao humano concreto.

Que linguagem para dizer a salvação hoje? Falar de salvação em qualquer tempo exige um contexto apropriado, assim como um agricultor precisa de uma semente adequada ao terreno de que dispõe. Todo ser humano, por sua condição transcendente, necessita de salvação, embora não nomeie seus anseios e desejos com esse nome. Como lembra Rahner, não é possível ao homem escapar de sua transcendência e liberdade, portanto, da responsabilidade inerente enquanto ser humano, histórico e temporal, sujeito às adversidades próprias de uma existência pessoal.

Se conseguirmos romper a primeira barreira do discurso rahneriano e chegarmos ao anúncio primevo, todo o resto pode ser tratado. O como dessa salvação em Cristo expressa na Trindade, especificamente na história pessoal do Filho encarnado, morto e ressuscitado pode ser experimentado pelo homem racional e autônomo de hoje.

Notas:
*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará - ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia - FAJE.
[1] COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Teologia da Redenção. São Paulo: Loyola, 1997.
[2] Idem, I § 2.
[3] CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. São Paulo: Paulinas, 1966, I § 2.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
RAHNER, Karl. Curso Fundamental da Fé: introdução ao conceito de Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 1989.

SEBOUÉ, Bernard. Karl Rahner: itinerário teológico. São Paulo: Loyola, 2004.

COMISSÃO TEOLÓGICA INTERNACIONAL. Teologia da Redenção. São Paulo: Loyola, 1997.

CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. São Paulo: Paulinas, 1966.

SESBOUÉ, Bernard. Jesucristo el único mediador: ensayo sobre la redención y la salvación. Salamanca: Secretariado trinitário, 1990.

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