quinta-feira, 19 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NOSTRA AETATE 4 (continuação)

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

O contexto literário da parábola dos vinhateiros

Antes de iniciarmos o estudo sobre o conflito de Jesus com a sinagoga, tomando como referência a parábola dos vinhateiros, consideramos o bloco narrativo de Mt 21,23 – 22,14 no qual esta se encontra
inserida.

Em Mt 21,23 encontramos a pergunta dirigida a Jesus pelos principais sacerdotes e anciãos do povo [6] sobre a legitimidade de sua autoridade em relação ao episódio no Templo de Jerusalém (Mt 21,12-17). Mas, em vez de responder-lhes, Jesus endereça-lhes uma contra pergunta sobre a origem do batismo de João (Mt 21,25). A resposta dos principais sacerdotes e anciãos significa uma confissão de recusa em aderir à proposta João Batista e como não atenderam ao apelo do Profeta, não puderam compreender a missão de Jesus. Então, o tema destacado até aqui é que os principais sacerdotes e anciãos do povo – grupo que rejeitou os dois enviados de Deus – perderam a autoridade de cobrar explicações de Jesus sobre sua atitude no Templo de Jerusalém.

O texto imediatamente posterior a essa controvérsia é a parábola dos Dois Filhos (Mt 21,28-31).Através desta o evangelista insiste em mostrar que os principais sacerdotes e anciãos de Jerusalém não cumpriram o chamado do Senhor, não mudaram de atitude nem pelo testemunho de João Batista, nem quando viram os pecadores se converterem (Mt 21,31-32). Esse bloco narrativo aponta, então, para uma transferência no exercício da autoridade: dos líderes do povo que recusaram o enviado de Deus, Jesus, para aqueles que o acolhem.

A rejeição/aceitação de Jesus é a unidade temática de Mt 21,23 – 22,14. Esse tema permanece nas narrativas posteriores à parábola dos Vinhateiros. No texto da fonte Q [7] (Mt 22,2-3. 5.8-10//Lc 14,16-24) há uma parábola com os seguintes elementos comuns: um anfitrião (Lc: um homem, Mt: um rei) convidou seus concidadãos para um festim (Mt: núpcias do filho), os convidados não lhe deram atenção, o anfitrião ofendido os substituiu por outros (Lc: pobres e marginalizados; Mt: maus e bons). O tema dessa parábola é o mesmo dos textos anteriores no capítulo 21, os líderes do povo foram desatenciosos, enquanto os gentios e os míseros, os “maus e bons”, aceitaram o convite.

O texto de Mt 21,33-46

Passando a considerar o texto que nos propomos estudar, notamos que a narrativa sobre os Vinhateiros pertence aos três evangelhos sinóticos. É relatada por Lucas (20,9-19) de forma mais simples que nos outros evangelhos. Refere-se três vezes ao envio de um servo, depois disso é a vez do filho. Marcos (12,1-12) menciona três envios de um servo a cada vez sendo que a violência com que são tratados aumenta progressivamente, depois se fala de muitos outros emissários, dos quais alguns foram golpeados e outros mortos.

Para Carmona[8], o texto sobre os vinhateiros é mais uma alegoria que uma parábola, na qual cada elemento da narrativa tem um significado: o proprietário é Deus, a vinha é Israel (o povo escolhido), os servos são os profetas enviados ao longo da história, o herdeiro é Jesus (cume da Revelação e morto fora dos muros de Jerusalém), os vinhateiros são os líderes do povo que rejeitaram Jesus e merecem que a vinha lhes seja tirada e dada a quem entregue os frutos a seu tempo (Sl 1,3).

No evangelho apócrifo de Tomé[9], log. 65, temos o seguinte texto:
Disse Jesus: Um homem de bem possuía uma vinha. Arrendou-a para alguns trabalhadores para que a cultivassem e, no tempo da vindima, lhe dessem as uvas. Mandou seu servo para que recebesse dos agricultores o fruto da vinha. Estes agarraram o servo e o espancaram: pouco faltou para que o matassem. O servo foi contar ao senhor o que tinha acontecido. Este pensou: eles,talvez, não o tenham reconhecido. E mandou outro servo. Os agricultores voltaram a espancá-lo. Então, o Senhor mandou o próprio filho, dizendo: ao menos, hão de respeitá-lo. Ao saberem que se tratava do herdeiro da vinha, os agricultores agarram-no e o mataram. Quem tem ouvidos, ouça!
Podemos supor que talvez o apócrifo tenha conhecido a forma mais primitiva e original[10] da parábola e que os evangelhos canônicos, em vista do projeto teológico de cada autor, tenham acrescentado alguns pormenores e explicações.


No texto de Mateus fala-se de duas missões em que os servos são espancados, mortos e apedrejados. A terceira missão é a do filho. Isso significa que a pregação de cada evangelista privilegiou alguns aspectos em detrimento de outros.

(continua)
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[6] Conselho de líderes do povo.
[7] Fonte comum a Mt e Lc.
[8] RODRÍGUES CARMONA, A. Evangelio de Mateo, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2006, p. 190.
[9] ROHDEN, H. (trad). O quinto Evangelho: a mensagem de Cristo segundo Tomé, São Paulo: Alvorada (s.d).
[10] SNODGRASS, K. R. “The Parable of the Wicked Husbandmen. Is the Gospel of Thomas Version the Original?”, New Testament Studies 21 (1975), 142-144.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

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