domingo, 29 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NA 4 (final)

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

Agora, nos propomos a estudar a maneira como Mateus utilizou as fontes veterotestamentária para inserir a parábola dos Vinhateiros dentro de seu projeto teológico e, mais especificamente, dentro do tema da rejeição/aceitação presente no bloco literário (Mt 21,23–22,14). Para tanto, faremos uma abordagem semântica de alguns termos:

- VINHA [11]
Tanto Is 5,2, quanto Mc 12,1 e Mt 21,33 atestam os cuidados que o Amado (Mc diz que é um homem, Mt afirma que é um homem chefe de casa) teve com a vinha: preparou a terra (Is); protegeu-a contra animais selvagens cercando-a com uma sebe (Mc e Mt); evitou que as uvas se estragassem, cavando um lagar (Is, Mc e Mt); e deu-lhe proteção permanente com vigias, construindo uma torre (Is, Mc e Mt). Esses cuidados fizeram dela uma “vinha preciosa” (Jr 2,21). Contudo a vinha não correspondeu às expectativas de seu proprietário. Para Isaias, a vinha é Israel e Judá (Is 5,7). Que expectativas não foram correspondidas? O exercício da justiça e do direito (Is) e a acolhida dos enviados (Mc, Mt e Lc).

No texto de Is 5,1-7, o profeta afirma que o Amado (v. 1b-2), identificado com o Senhor dos Exércitos (5,7), convoca os moradores de Jerusalém para julgar a sua vinha (5,3) [12]. O proprietário faz duas perguntas: a primeira, sobre suas atividades e a segunda, sobre a produção da vinha (5,4). Ele mesmo deu a sentença, anunciando o que fará, e suas atividades destrutivas (Is 5,5-6) serão o oposto dos cuidados iniciais (5,2). O ápice é o v. 7 no qual o profeta contrasta as expectativas positivas de Deus e as atividades do povo.

Mateus é, entre os sinóticos, quem melhor enfatiza o julgamento dos Vinhateiros, pois na versão mateana, os próprios interlocutores responderam à questão posta por Jesus: eles declararam que os vinhateiros eram vilões e mereciam morrer.

Além disso, com a sentença de Jesus, eles reconheceram, na parábola, a história de seu conflito com o Nazareno. A parábola é chave interpretativa para uma a história de desobediência à vontade de Deus, cujo clímax se mostra agora na rejeição ao Filho.

- FRUTOS [13]
A expressão produzir frutos (Mt 21,43) não aparece ingenuamente nesse versículo, mas é uma descrição do comportamento correto, e faz elo com Is 5,2.4b, quando por três vezes se diz que o Amado esperava a produção de uvas boas, mas a vinha produziu uvas amargas, bravas. Essa orientação ética seria um desenvolvimento do comportamento destacado em Is 5,7: esperava-se o direito e a justiça e em contraposição foi produzido transgressão e clamor. O texto de Mt 21,41 insinua que os frutos não foram entregues ao dono da Vinha. E por fim, Mt 21, 43 afirma que a vinha não produziu frutos quando estava com os arrendatários.

Em Mateus ainda temos duas diferenças em relação a Marcos: (a) a totalidade (Mt 21,34), e não uma parte (Mc 12,2) dos frutos, deve ser dada ao proprietário; (b) o filho foi morto fora (Mt 21,39; cf. Hb 13,12; Jo 19,20b; Lv 21,14-16) e não dentro da vinha (Mc 12,8).

- ETHNOS
A expressão “um éthnos que produza os frutos dele” (Mt 21,43) aparece apenas em Mateus. Conforme os estudos de Saldarini [14], o termo éthnos significa bando, classe, nação, gente, pessoas que vivem juntas, companhia militar, grupo de camaradas, província, associação mercantil e os outros em oposição ao nosso grupo.

A maioria das edições da bíblia em português traduz o grego éthnos pelo termo nação. Partindo desse tipo de tradução, muitos concluem que Israel foi substituído por outra nação, a Igreja gentílica. Contudo, esse tipo de interpretação traz alguns problemas. Em primeiro lugar, os cristãos não podem ser considerados como nação. Também “não há nenhuma menção implícita ou explícita aos gentios”. E quem rejeita o herdeiro não é a vinha (Israel), mas os vinhateiros, os líderes que “repudiam e matam continuamente os profetas e também conspiram para matar o Filho”[15].

A interpretação mais correta é que o grupo rejeitado na parábola seja o dos principais sacerdotes e anciãos do povo. Estes são reprovados porque não agem segundo a vontade de Deus para que a vinha produza frutos. A parábola pressupõe que a vinha é fecunda, mas os vinhateiros se apropriam indevidamente dos frutos em vez de entregar a produção ao proprietário. A vinha (Israel) foi mal administrada e tem que passar para outros administradores [16].

O grupo que produz frutos é a Comunidade dos seguidores de Jesus, principalmente aquela da qual Mateus faz parte e que é composta, em sua maioria, de judeu-cristãos. O grupo que produz frutos é um subgrupo que faz parte da vinha (Israel). “A vinha, Israel, permanece a mesma; subgrupos dentro de Israel são acusados ou louvados... a parábola dos vinhateiros é uma crítica aos líderes de Israel e não a Israel” [17].

- PEDRA
Em Mt 21,42 temos a citação do Sl 118, 22-23. Esse salmo[18] foi composto para ser cantado na solene liturgia de ação de graças que terminava com a entrada no Templo, na festa das Tendas. Essa festa destacava a reconstrução de Jerusalém (Ne 8,13-18; 12,27-43) e comparava Israel a uma pedra que as nações tinham rejeitado e que Deus a utilizava para a construção de seu Reino. Agora que os líderes do povo de Israel rejeitavam o enviado de Deus, Jesus mesmo é a pedra rejeitada e por isso se torna escândalo, palavra grega que significa “pedra que faz tropeçar”. Dessa forma, podemos entender essa afirmação “todo o que cair sobre esta pedra ficará em pedaços” (Mt 21,44a).

Mas também é dito que “aquele sobre quem ela cair ficará reduzido a pó” (Mt 21,44b). Para compreender melhor essa afirmação é necessário recorrer a Dn 2,44-45. Nesse texto de Daniel, o sábio identifica a pedra que desce do monte, no sonho de Nabucodonosor, com um reino suscitado por Deus que jamais será destruído e que esmagará os demais reinos [19]. O Reino dos Céus, inaugurado por Jesus, é a pedra que cai sobre aqueles que rejeitam o enviado de Deus.

- REINO
O texto de Mt 21,43, com a afirmação “vos será tirado o Reino de Deus e será dado a outro grupo (éthnos) que produza frutos”, parece contrário a Dn 2,44: “um reino que jamais passará a outro povo (LXX: éthnos)”. Contudo, essa contradição não passa de um problema de tradução.

O Reino significa a soberania da vontade de Deus sobre o ser humano inserido em estruturas históricas, sociais, políticas, econômicas, culturais, etc. Portanto, isto não depende da pertença a uma etnia. Por isso, o Reino é dado a quem produz frutos de justiça, seja judeu ou gentio. Para a comunidade de Mateus, Jesus é a autobasileia, ou personificação do Reino, pois na vida dele a vontade de Deus foi sempre soberana. Não acolher o dom que é Jesus significa rejeitar a pedra angular do Reino[20].

A autoridade dos interlocutores de Jesus nesse texto de Mateus foi subtraída porque: (1) não acolheram os mensageiros de Deus, (2) não produziram frutos de justiça para Deus e (3) rejeitaram a autobasileia, Jesus. Perderam a autoridade sobre o povo “por causa de seu mau procedimento” e foram substituídos pelos líderes da comunidade de Mateus, “um grupo (éthnos) de líderes que ouve Deus e pode guiar corretamente ‘as ovelhas perdidas da casa de Israel’ (10,6)”[21]. Então, trata-se de uma justificação da autoridade da comunidade de Mateus perante a autoridade dos fariseus e não de uma rejeição de Israel por parte Deus. A comunidade de Mateus necessita justificar para os fariseus a autoridade que está reclamando para si mesma. Isto porque nessa época eram os fariseus as autoridades constituídas sobre o povo.

CONCLUSÃO
A Palavra nos exorta sobre algo que aconteceu com os fariseus da época de Mateus e que pode se repetir, tanto na História da Igreja, quanto na consciência de cada cristão: a rejeição aos enviados de Deus e à sua vontade soberana. A eleição por parte de Deus exige uma resposta pessoal e um engajamento de vida, é importante que a pregação provoque um julgamento da Assembléia sobre si mesma, como aconteceu na parábola.

É necessário também que se destaque um aspecto fundamental, isto é, que uma Igreja acomodada é uma figueira sem frutos (Mt 21,19) de justiça. Novos problemas exigem novas acentuações da fé, como fez a Igreja de Mateus, e a novidade da resposta, a tais problemas, pode trazer confrontos e desconfianças entre estruturas hierárquicas antigas e novas.

Acima de tudo é necessários permanecer fiel e perseverante. Estar consciente que a rejeição a Deus é um processo gradual que culmina sempre na Cruz, ontem e hoje. E que se rejeitamos Deus é porque sua vontade não corresponde aos nossos esquemas sempre forjadores de ídolos silenciadores de nossa consciência pecaminosa.

Enquanto houver acusações mútuas embasadas numa hermenêutica anti-semita dos textos bíblicos não será possível uma verdadeira manifestação de amor como pede a NA 4. Depois de 40 anos dessa Declaração do Concílio Vaticano II poucos passos foram dados para um abraço honesto entre judeus e cristãos. Muitas vezes por falta de uma boa tradução da Escritura. Outras vezes porque a dureza de coração impede de se reconhecer no outro um enviado de Deus.

Oremos para que Deus nos livre de fundamentar na Escritura uma atitude de anulação de nosso semelhante como pressuposto para afirmação de nós mesmo:

Onde está o clamor, onde estão as lágrimas
que eu deveria derramar na presença de Deus?


Eu nunca produzi senão frutos de morte,
porque não me enxertei em vós, Senhor!...
grandeza incomensurável!...


De onde trazes, ó árvore, estes frutos de vida,
sendo por ti mesma estéril e morta?


Da mesma árvore da vida o trazes!


Pois se não estivesses enxertada nela,
nenhum fruto poderias produzir por virtude tua,
porque nada és.

Catarina de Sena [22]

______________
[11] Os principais textos do AT que identificam Israel com a vinha são: Sl 80, 9-17; Is 5,1-7; Os 10,1; Ez 19,10-14.
[12] WEREN, W.J.C. “The Use of Is 5, 1-7 in the Parable of the Tenants (Mark 12,1-12; Matthew 21,33-46)”, Biblica 79 (1998) 1-26.
[13] No AT e no NT o termo “frutos” significa “obras”, “práxis que agrada a Deus”.
[14] SALDARINI, A. J. A Comunidade judaico-cristã de Mateus, São Paulo: Paulinas, 2000, p. 104-112.
[15] Ibidem, p. 105, notas 58 e 59.
[16] Este sentido também é comum ao episódio da figueira (Mt 21,18-19). Jesus esperou encontrar frutos e decepcionou-se. Os líderes do povo, daquela geração, não fizeram as obras que agradam a Deus.
[17] Ibidem, p. 109.
[18] Na opinião de alguns estudiosos, a citação do Salmo 118, 22-23 na parábola dos Vinhateiros é uma acréscimo redacional em Mc 12,10 // Mt 21,42 // Lc 20,17. Mas se for assim, a parábola perde sua chave eclesiológica, ou seja, não se refere em nada à comunidade cristã. Cf. CIPRIANI, S. “Significato Cristologico o anche Eclesiologico nella Citazione del Salmo 118,22-23 al Termine della Parabola dei Vignaiolli Omicidi”, Asprenas 26/3 (1979) 235-249.
[19] Veja a expressão: “aquele sobre quem ela [a pedra] cair será reduzido a pó” (Mt 21,44b//Lc 20,18b). Mc fala apenas da pedra rejeitada (Cristo) pelos construtores.
[20] RODRÍGUES CARMONA, Evangelio de Mateo, Bilbao: Desclée De Brouwer, 2006, p. 190.
[21] SALDARINI, op. cit., p. 112.
[22] Preghiere ed Elevazioni, Roma: Ferrari, 1920, p. 113.


* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

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