terça-feira, 17 de maio de 2011

O HERDEIRO E A VINHA - REFLEXÕES À LUZ DE NOSTRA AETATE 4 [1]

Aíla L. Pinheiro de Andrade,nj*

Publicado em Convergência (CRB), Rio de Janeiro, v. 44, n. 420, p. 215-225, 2009.

No tempo em que Mateus redigia o evangelho estava acontecendo uma forte tensão entre os seguidores de Jesus e a Sinagoga. A destruição do Templo de Jerusalém deu início ao chamado judaísmo formativo, com o fim da pluralidade dos grupos religiosos judaicos e a tentativa de certa uniformidade na interpretação das Escrituras. Conseqüência disso foi o estabelecimento da autoridade dos rabinos (Mestres da Torah) em substituição ao Sinédrio. Isso significava uma supremacia do antigo grupo dos fariseus sobre o povo judeu [2].

Nessa tensão entre o grupo dos seguidores de Jesus e a Sinagoga, a comunidade de Mateus sentia-se como “ovelhas entre lobos” (Mt 10,16), até mesmo os familiares dos cristãos os colocavam em situações desagradáveis (Mt 10,21-24.34-36). Talvez os seguidores do Caminho[3] já tivessem sido expulsos da sinagoga (Mt 10,17) e eram acusados de não seguir as “tradições dos antigos” (Mt 15,2). Tudo isso fazia com que os cristãos se sentissem cansados e tentados a abandonar a fé (Mt 24,9s).

Para mostrar a seus contemporâneos que não deviam inquietar-se com os fariseus, Mateus escreveu as controvérsias entre Jesus e os líderes religiosos de Jerusalém. Dessa forma, exortava a comunidade a não imitar o modo de ser dos adversários, ou seja, a evitar todo rigor exagerado com Lei e também a não ambicionar nenhum privilégio ou poder (Mt 18,1-35)[4]. Os cristãos deveriam assumir o modo de ser de Jesus, refazendo o caminho do Messias e atualizando a missão do Mestre até que ele venha. A maneira de viver de Jesus é, pois, a condição e o critério para ser discípulo, como Mateus fez questão de mostrar (especialmente em 6,19–7,23 e 16,24-28).

As Parábolas em Mateus

Para exemplificar como deve ser um verdadeiro discípulo do Reino, Mateus narra as Parábolas de Jesus. Dessa forma, o seguidor do Messias terá claro o critério sob o qual deve pautar sua vida.

O verbo grego parabállo denota a idéia de “lançar ao longo de” ou “por junto a si”. O substantivo parábola quer traduzir o termo hebraico mashal, que reagrupa grande variedade de formas literárias como a sentença sapiencial, o enigma e outras. Todas elas têm como objetivo exprimir uma verdade através da linguagem figurada, método utilizado, principalmente pelos mestres orientais, para transmitir uma mensagem predispondo o ouvinte para a reflexão.

Desde os tempos da Igreja primitiva, denominou-se “parábolas” aqueles ensinamentos de Jesus, em linguagem figurada, que falavam a respeito de verdades espirituais profundas, a partir de exemplos tirados da natureza ou da vida social, econômica e religiosa de seu tempo. Dessa forma, Jesus provocava seus contemporâneos a descobrirem o dinamismo do Reino de Deus e os orientava a viver de acordo com o projeto salvífico do Pai.

Não podemos, hoje, recriar a situação histórica na qual uma parábola foi contada por Jesus, pois os evangelistas criaram diversos contextos literários para a mesma parábola tendo em vista o projeto teológico específico de cada um [5]. Cada contexto literário, entretanto, respeitou o propósito original de Jesus ao contá-las. Dessa forma, a mensagem das parábolas nos Evangelhos passa a servir de critério de avaliação para a práxis dos leitores em quaisquer tempos e lugares.

A narrativa de Mt afirma que Jesus falou muitas coisas em parábolas (13,3). Considerando Mt 13 em sua totalidade, se percebe o objetivo principal de indicar como o Reino dos Céus vai se consumando no dinamismo da história universal até a sua plenitude. À pergunta dos dis-

– Parábolas para orientar a vida na Comunidade (Mt 18,12-14.23-25): manifestam que na comunidade de Mateus alguns lutavam pelo poder, outros eram ocasiões de escândalos, havia intolerantes e obstinados em não perdoar e, os “pequeninos” eram desprezados ou haviam se extraviado.

– Parábolas para orientar no conflito com a Sinagoga (Mt 11,16-19; 20,1-16; 21,28-32. 33-45; 22,1-14; 24,45-51): mostram como os líderes da Sinagoga estavam falhando em sua missão de guiar o povo já que rejeitaram o Messias.

– Parábolas para orientar sobre a vigilância (Mt 25,1-13.14-30): exortam a comunidade dos seguidores de Jesus, em todos os tempos, a permanecer firme, construindo na história o Reino dos Céus, conservando-se firme e alerta para que na Parusia se manifeste em plenitude o que já é vivido agora.

(continua)
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Notas
[1] NOSTRA AETATE, Declaração sobre as Relações da Igreja com as Religiões não-cristãs, in COMPÊNDIO DO VATICANO II, Petrópolis: Vozes, 1996: “Por isso não pode a Igreja esquecer que por meio daquele povo, com o qual em sua indizível misericórdia Deus se dignou estabelecer a Antiga Aliança, ela recebeu a Revelação do Antigo Testamento e se alimenta pela raiz de boa oliveira, na qual como ramos de zambujeiro foram enxertados os Povos. Pois crê a Igreja que Cristo, nossa Paz, mediante a cruz, reconciliou os Judeus e os Povos e a ambos unificou em Si mesmo... Se bem que os principais dos Judeus, com seus seguidores, insistiram na morte de Cristo, aquilo contudo que se perpetrou na Sua Paixão não pode indistintamente ser imputado a todos os Judeus que então viviam, nem aos de hoje. Os Judeus não devem ser apresentados nem como condenados por Deus, nem como amaldiçoados, como se isso decorresse das Sagradas Escrituras. Haja por isso cuidado, da parte de todos, para que, tanto na catequese como na pregação da Palavra de Deus, não se ensine algo que não se coadune com a verdade evangélica e com o espírito de Cristo. Além disso, a Igreja, que reprova toda a perseguição contra quaisquer homens, lembrada do comum patrimônio com os judeus, não por motivos políticos, mas impelida pelo santo amor evangélico, lamenta os ódios, as perseguições, as manifestações anti-semíticas, em qualquer tempo e por qualquer pessoa dirigidas contra os Judeus. De resto, a Igreja sempre teve e tem por bem ensinar que Cristo por causa dos pecados de todos os homens, sofreu voluntariamete e por imenso amor se sujeitou à morte, para que todos conseguissem a salvação. Cabe pois à Igreja pregadora, anunciar a cruz de Cristo como sinal do amor universal de Deus e fonte de toda a graça.”

[2] OVERMAN J. A. O Evangelho de Mateus e o Judaísmo Formativo: o mundo social da comunidade de Mateus, São Paulo: Loyola, 1997, tradução de Cecília Camargo Bartalotti, Bíblica Loyola no. 20.

[3] Assim se chamavam os primeiros cristãos (At 9,2; 19,9.23; 22,4; 24,14.22). O termo “cristão”será usado neste artigo para evitar ambiguidades e facilitar a compreensão.

[4] O que Mt critica é o legalismo farisaico. Contudo, nem todo fariseu era legalista. Em geral esse grupo era muito respeitado pelo povo por sua sabedoria e piedade. Infelizmente o termo “fariseu” tornou-se sinônimo de “hipócrita”. Esse tipo de generalização denota preconceito e foi, muitas vezes, causa de antisemitismo.

[5] Veja, por exemplo, a parábola dos Odres e o Vinho (Mt 9,17; Mc 2,22 e Lc 5,37), que em Mt vem antes da cura da mulher com fluxo de sangue e em Mc e Lc é anterior ao episódio das espigas colhidas no sábado. Sendo que Lc acrescenta à parábola uma afirmação sobre a preferência pelo vinho velho (Lc 5,8) que não consta em Mt e Mc.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

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