domingo, 14 de novembro de 2010

Jesus: o Messias (III)

Rita Gomes, nj*

3. O Reino de Deus: projeto de vida para todos

Nesse ponto, seguiremos basicamente uma obra de Jon Sobrino.[1] Uma indicação prévia e útil refere-se ao significado de “Reino” nos diversos momentos da história do “povo de Deus”. O primeiro priemiro esclarecimento a respeito da expressão “Reino de Deus” versa sobre seu caráter tardio. Israel não a conhecia até a apocalíptica, contudo, conhecia a relação com Deus através da idéia de realeza divina. Essa noção existia em todo Oriente Antigo. Na Monarquia, Israel conheceu a deturpação dessa realeza divina, igualando-a com a dos reis terrenos.

Com o exílio o povo passou por uma grave crise existencial. Consciente de ser o povo escolhido, este perdeu sua terra e foi exilado na Babilônia. Com a derrota de seu rei, acreditavam que seu Deus havia sido derrotado. Essa era a concepção dos povos, em última instância quem era derrotado era o deus daquele pova. A apocalíptica seguinte escatologizou e universalizou o Reino de Deus.

A partir daí começam as esperanças messiânicas. Estas conhecerão mais de um viéis. Existiam os que esperavam um messias davídico que instauraria o “Reino de Javé”. A corrente sacerdotal esperava um messias de acordo com suas convicções e conseqüentemente um Reino correspondente. O Reino vindouro era assim consequencia das diversas formas de esperança no messias.

Há uma relação constitutiva nas noções de Reino e de Messias. Um implica o outro e da mesma forma, um explica o outro. Partindo da relação existente entre Messias e Reino pode-se compreender os diversos títulos atribuídos a Jesus e que nos revelam, cada um a seu modo, uma “faceta” do Cristo. Os títulos são uma forma de tentar dizer quem é Jesus.

Seja como for todos esperavam a instauração do “Reino de Deus” como um reino de justiça para Israel e no seio do próprio povo de Israel.[2] Israel compreendia a realeza divina como ação de Deus na história e essa ação era em seu favor, frente aos grandes impérios e também aos povos menores, enquanto seus inimigos.

Jesus ao iniciar sua vida pública (Mc 1,14; Mt 4,17; Lc 4,18) o faz anunciando o Reino de Deus. Como judeu, Ele se insere na grande tradição judaica da esperança por um reino de justiça, pois traz as marcas da dominação sofrida por seu povo, império após império.

O Reino de Deus para Jesus é a realidade última, ou seja, Deus agindo na história. E porque é assim, o Reino de Deus só pode ser evangelho, boa notícia. Em Mt e Mc evangelho quase sempre refere-se ao Reino. Mesmo quando fala de Jesus o faz em relação ao que Jesus oferece com sua vida e sua práxis (Mc 1,1; 1,14; 8,35; 10,29; 23,10; 14,9; Mt 4,23; 9,35; 24,14). Lc só cita o evangelho nos Atos dos apóstolos.[3]

Nesse ponto nos afastamos um pouco de Sobrino, pois ele continua sua reflexão pela “via do destinatário.”[4] Embora válida e rica, busco uma reflexão que vá ao encontro de todos aqueles que de uma maneira ou outra não fazem parte de unia elite. Não só de uma elite política, econômica, mas sobretudo de uma elite convencional.[5] No tempo de Jesus eram as prostitutas, os leprosos, os cobradores de impostos, os soldados. Os evangelhos estão cheios de exemplos e dispensa maiores explicitações.

Jesus com seu modo de agir, acolheu e libertou verdadeiramente o povo porque conferiu-lhe dignidade. Fez com que as pessoas se reconhecessem dignos, respeitáveis, por serem pessoas. Isso possibilitou sua libertação. Muito foi feito pela Teologia da Libertação, mas muito foi esquecido e negado por ela. De forma especial, negou o aspecto afetivo da pessoa, parou no social, no universal e esqueceu o singular.

O povo tomou certa consciência da realidade opressora, no caso da América Latina. Mas somente na questão política de governos militares. Hoje vemos um povo tornado escravo de seu próprio ser. A maior dificuldade enfrentada hoje nas pastorais é exatamente essa. Parece que as pessoas desistiram de lutar. Não se sentem capazes nem dignas de tomar certas posições. Acomodou-se com a ideia de que Deus veio para libertá-lo, que está do seu lado, mas espera sempre que alguém faça algo em seu lugar, tome decisões e responsabilize-se. Não tomou consciência da filiação divina que lhe confere uma dignidade única e possibilita uma compreensão de si e do outro. Não é possível libertar um povo se este não se reconhece liberto. Ele precisa primeiro reconhecer que ele é capaz de ser livre. Que é um ser para a liberdade.

Jesus quando se aproximava dos excluídos de seu tempo disse-lhe que a situação em que estavam era injusta e que tinham que fazer isso ou aquilo. Não dava soluções. Aproximava-se e acolhia o dom que era o outro. Diante de Alguém que quebrava as convenções gratuitamente, se rendiam, se sentiam afetados. Os questionamentos que certamente surgiam de tais situações é que levavam as pessoas a repensarem suas vidas e atitudes e tomarem coragem de agir de forma diferente. E não falamos de conversão de uma vida de pecado.

Quem já experimentou, encorajar alguém a tomar uma atitude e viu o resultado, sabe o quanto é importante a consciência de saber-se capaz. O reconhecimento de Deus na pessoa de Jesus vinha dessa liberdade que tocava o mais íntimo do ser humano. Quando propus o título deste ponto como sendo o Reino de Deus, um projeto de vida para todos, não foi por negar ou não reconhecer certa parcialidade existente na Escritura. Foi por crer que Deus ao se revelar propõe-se a todos. E os que o reconhecerem e forem afetados por Ele, não continuarão suas vidas do mesmo modo. Na sua raiz é parcial, mas o seu projeto não é excludente. Quem não o reconhece, não o aceita e coloca-se fora do Reino, fora do projeto de vida plena.


Conclusão

O messianismo de Jesus é mais que nunca atual. O maior problema do homem hodierno é ele mesmo. O homem é cada dia menos homem. Jesus é à maneira paulina o Messias que vem trazer à salvação. Salvação enquanto vida em Deus e seu reino é Reino de Deus porque reconhecimento e aceitação da ação de Deus na história. Ação essa que precisa da colaboração do homem para se instaurar. Não é possível a instauração do Reino de Deus sem uma adesão do homem, sem o seguimento do Cristo. Assinalamos que seguir o Cristo é seguir Jesus no seu Mistério Pascal.

O fato de Jesus já ter vencido a morte não nos autoriza a vivermos alheios à realidade terrena. Toda nossa dignidade reside no fato de Jesus assumir nossa humanidade para chegarmos a realidade divina. Mas, tudo que constitui nossa humanidade deve ser integrado em nossa vida e nossa práxis. Seguir Jesus é procurar a adequação com a realidade própria do ser humano (nascimento, crescimento, sofrimento, alegrias, morte e claro, ressurreição).

O início do reinado de Deus é indiscutivelmente interior. Só quem conseguiu deixar Deus reinar em seu interior e assim transformá-lo é capaz de contribuir com a instauração do Reino de Deus na vida dos outros e das comunidades. Concretamente, exigindo e construindo um reino de justiça para todos. Um reino onde cada ser humano assuma o seu lugar como co-responsável pela atualização da realidade do Cristo, nos “cristos”. Em Cristo somos também “messias” e devemos assumir nosso papel na salvação, vida plena dos outros.


Notas:
*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1]Jesus, o Libertador I -A História de Jesus de Nazaré. Vozes, Pelrópolis, 1996.
[2]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 111.
[3]SOBRINO, J. Op. Cite, p.121-122.
[4]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 123.
[5]Utilizo esse termo para designar tudo o que hoje é tido como normal ou esperado das pessoas em sociedade.


Referências Bibliográficas

BARBAGLIO, G. et alii. Os Evangelhos (1). Loyola: São Paulo, 1990.
THEISSEN, G. — MERZ, A., O Jesus histórico: Um manual São Paulo: Loyola, 2002.
SOBRINO, J., Jesus, o Libertador I: A História de Jesus de Nazaré. Vozes: Petrópolis, 1996.
SOBRINO, J., Jesus, o Libertador II: A Fé em Jesus. Ensaio a partir das vítimas. Vozes, Petrópolis, 2000.
MARQUES, V. , Apostila do Curso de Corpus Paulinum. Primeira Epístola aos Coríntios.
MINETTE DE TELLESSE, G. Le secret messianique dáns I’Évangile de Marc. Paris: Cerf, 1968.
PALÁCIO, C., Jesus Cristo: História e Interpretação. Loyola: São Paulo, 1979 (Coleção Fé e Realidade).
DUQUOC, CH., Cristotogia Ensaio Dogmático II: O Messias. Loyola: São Paulo, 1980.

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