domingo, 14 de novembro de 2010

Jesus: o Messias (II)

Rita Gomes, nj*


2. O Cristo,j: aspecto histórico e teológico (Jesus terreno e Cristo da fé)[1]

A primeira consideração a ser feita refere-se a impossibilidade de separar os dois aspectos: histórico e teológico. Isso se verificará a seguir. Antes de iniciarmos a reflexão sobre o Jesus terreno importa fazer menção, mesmo breve, à questão da pesquisa sobre a vida de Jesus. Inúmeras foram as obras que se seguiram à de H. E. Reimarus [2]. De sua reflexão veio o grande impulso na busca pelo Jesus histórico. A história da pesquisa sobre a vida de Jesus é descrita em cinco fases, que aqui, apenas cito.

1ª fase: os “impulsos” críticos para a questão do Jesus histórico por H. S. Reimarus e D. E Strauss;
2 ª fase: o otimismo da pesquisa liberal sobre a vida de Jesus;
3 ª fase: o colapso da pesquisa sobre a vida de Jesus;
4 ª fase: a “nova pergunta” pelo Jesus histórico;
5 ª fase: a “terceira questão” pelo Jesus histórico.

A última fase exige um esclarecimento, pois muda o eixo das pesquisas sobre o Jesus histórico. Fala-se de cinco fases, mas estas se apresentam em três momentos bem distintos. O primeiro não necessita de nenhuma explicação. O segundo começa na terceira fase, com a constatação de que não é possível construir uma “biografia de Jesus”. Esse terceiro momento corresponde à quinta fase. Nele se passa a considerar o contexto social de Jesus e sua pertença ao povo judeu, ou seja, o fato de que na pessoa de Jesus estava profundamente enraizada a grande tradição judaica.

O “Cristo da fé” foi amplamente difundido e o conteúdo desta expressão é a convicção de que o ‘verdadeiro Cristo é o Cristo crido’. Na base deste pensamento estão M. Kähler [3] e Bultman. Este último defende a tese de que à fé não interessa a vida de Jesus e sim o kérigma, ou seja, o Cristo anunciado. Assim o “Cristo da fé” é já a exposição da experiência de fé dos primeiros. Como argumento contra o retorno à ‘história da vida de Jesus’, coloca a falta de fontes históricas que possibilítem esse conhecimento. Ainda segundo Bultman, a fé não está ancorada na ação de Jesus e sim na ação de Deus ao ser pregado o kérigma.’[4] Desta ideia surgiram vários questionamentos e ampla bibliografia. Esse ponto suscitou muitas discussões e não faltou quem quisesse dar sua contribuição.

Segundo Sobrino, Jesus Cristo é uma totalidade, ou seja, traz em si uma dimensão histórica e uma transcendente. “Jesus é mais do que Jesus, é o Cristo.”[5] Para ele, Jesus de Nazaré como ponto de partida para uma reflexão cristológica é importante porque ao refletirmos sua práxis [6] podemos nos aproximar de forma mais segura do como Jesus via, sentia e compreendia a Deus e seu projeto. Dessa compreensão podemos chegar à visão que Jesus tinha de sua própria missão, isto é, de sua adesão total a esse projeto. Pois é sua fidelidade a esse projeto que o leva à cruz. Cremos ser também este, um ponto de partida para a compreensão da cristologia dos títulos de Jesus e, claro, do Cristo,j.

Consideramos necessário resgatar o que há de historicamente concreto no testemunho neotestamentário a respeito do Cristo,j. Primeiro, Paulo utiliza a linguagem e a lógica do pensamento helenista ao apresentar Jesus como Cristo,j. Desse ponto é possível perceber a mudança operada no sentido desse título em relação ao do judaísmo. Contudo, não é correto ver no uso do título por Paulo, uma transcendentalização sem mais. Paulo passou a falar de Jesus enquanto messias, quando percebeu nas comunidades, em especial a de Corinto, uma tendência a negar o lado “dificil” do Evangelho.

Negavam em forma de “esquecimento”, a paixão de Jesus, ou seja, a crueza da morte de cruz. Paulo inicia a partir do uso desse título, um trabalho de resgate do ponto alto do agir de Jesus. Mesmo que não volte à vida terrena de Jesus, uma vez que para ele, não era fundamental esse retorno naquele momento. As questões de fé daquelas comunidades, poderiam ser resolvidas através de uma teologia da cruz. O que não se verificou.

Pelo conteúdo e objetivo geral dos evangelhos, podemos concluir que a intuição paulina falhou. Uma teologia da cruz não deu conta de responder aos questionamentos dos primeiros cristãos. Até porque a utilização do título Cristo,j, como um segundo nome para Jesus, obscureceu o seu significado.

Importa aqui retomar dois pontos relevantes, em Mateus e Lucas, respectivamente. Mateus nos revela Jesus como Messias poderoso em palavras e obras, preanunciado pelos profetas e Lucas o apresenta como o profeta poderoso em palavras e obras. Retomo estes porque aqui encontramos um tema que pode ser a pedra de toque para o desenvolvimento de nossa reflexão.

No Novo Testamento, com exceção dos escritos paulinos, há um ponto de convergência: o Cristo,j não se compreende senão na relação existente entre Jesus e sua práxis. Explicitando ainda mais. O ponto de aproximação mais seguro, para uma apreensão fiel do conteúdo do Cristo,j é sem dúvida sua ação: a pregação do Reino (palavras e obras) e sua compreensão de Reino. Jesus se entende na pregação do Reino e por sua vez o Reino é compreendido na pessoa de Jesus.

Fazendo um crescendo: Paulo inicia [7] o uso do título Cristo,j para dizer que o Ku,rioj, ou seja, o Cristo glorioso é o mesmo Jesus que morreu na cruz. Faz a ligação entre o Cristo da fé e o Jesus terreno, mesmo que seja apenas no ato da consumação de sua vida terrena. Jesus é o Messias. Não é possível pensar no Messias sem ter consciência de que o seu conteúdo tem um pé firme na história. Marcos, em seguida, diz que Jesus é o Cristo e delineia que tipo de messias é e como sua messianidade pode ser verificada. Os outros evangelistas dão também os seus testemunhos sobre a messianidade de Jesus, com suas respectivas diferenças, como visto antes.


Notas:
*É membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em filosofia pelo Instituto Teológico e Pastoral do Ceará – ITEP. Graduada e mestranda em teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia – FAJE.
[1]O estudo desse ponto tem como base duas obras de Jon Sobrino. Este é de origem basca. Nascido em 1938. Entrou na Companhia de Jesus em 1956. Licenciado em Filosofia e Letras, mestrado em Engenharia. Doutor em Teologia pela Universidade de Frankfurt. Conferencista renomado e tem vários livros publicados. Entre eles estão: Jesus na América Latina e A Ressurreição da Verdadeira Igreja (Loyola, 1984 e 1986) e ainda Liberación con Espíritu (Sal Terrae, 1985). Nesse estudo seguimos outras obras do autor: Jesus, o Libertador I— A História de Jesus de Nazaré (Vozes, 1996) e Jesus, o Libertador II - A Fé em Jesus Cristo. Ensaio a partir das vítimas (Vozes, 2000).
[2]Obra publicada postumamente e sem indicação do autor. Esta obra lançou as bases da busca pelo que havia de “verdadeiramente histórico” na vida de Jesus. Mais sobre o assunto ver: THEISSEN, G. - MERZ, A., O Jesus histórico. Um manual. São Paulo: Loyola, 2002, p. 19-33.
[3]“O verdadeiro Cristo é o Cristo anunciado”. Afirmação feita por este autor em uma conferência em 1892. Citado por Sobrino em Jesus, o Libertador I - A História de Jesus de Nazaré.
[4]SOBRINO, J. Jesus, o Libertador I—A História de Jesus de Nazaré. Vozes: Petrópolis, 1996, p. 71.
[5]SOBRINO, J. Op. Cite, p. 63.
[6]Práxis aqui compreende a totalidade da pregação e das obras de Jesus.
[7]Fundamentamos esta afirmação nos escritos canônicos.

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