1 A Revelação como problema
O problema em relação à Revelação tem sua origem no século XVI com o início da Modernidade e a Reforma Protestante totalmente imbuída do espírito moderno. A Reforma Protestante foi a configuração religiosa da Modernidade e tinha por fundamento os pressupostos teológicos da Sola Scriptura, Sola fide e Sola gratia[3].
A posição dos reformadores era tipicamente moderna, enquanto o acento estava no sujeito. A fé era entendida como uma atitude do sujeito que crê em Deus sem necessitar da mediação da Igreja. Para os reformadores só a graça é necessária à santificação. Os sacramentos não são mais considerados eficazes à salvação e a Escritura passa a ser o único meio pelo qual Deus manifesta ao fiel seu plano de salvação[4].
Os reformadores colocam-se dessa forma em total oposição à Igreja Católica. Esta pensa a revelação e a fé de forma objetiva. Nesse momento a Igreja Católica rejeita a modernidade por ver-se questionada em suas bases. Toda sua teologia estava fundamentada na objetividade da revelação. Deus revelou sua vontade através de decretos eternos, este seria o conteúdo da revelação. Por isso ela é objetiva. A realidade para ela se faz presente e deve ser aceita pela fé e assimilada pela razão. O nó da questão é que até então o paradigma que regia todas as reflexões, sobretudo a religiosa, tinha em Deus o seu centro. A Modernidade se constrói em um novo paradigma onde o centro é o homem. A principal questão nesse momento era: se o centro de tudo é o homem (sujeito) como e onde fica Deus? Como pensar a revelação?
A Igreja Católica se coloca na defensiva porque a Modernidade questiona, mas não dá ainda nenhuma resposta. O problemático na postura da Igreja é que ao colocar-se em oposição total à Modernidade ela nega também o que há de mais positivo nesta: a autonomia do sujeito. A subjetividade que torna o homem capaz de aderir e relacionar-se com o Deus que se revela. A Igreja insiste em demonstrar que é possível uma justificativa racional para as “verdades reveladas”. Em relação aos pensadores modernos em geral o questionamento era tipicamente teológico, por isso a legitimidade da preocupação da Igreja. Mas frente aos reformadores o centro da questão não era tanto a teologia, mas a posição da Igreja como a “única Igreja verdadeira”[5] e por isso, portadora das verdades divinas.
2 A Revelação nas reflexões posteriores
2.1 Trento e Vaticano I: a problemática das duas fontes
Os reformadores consideravam sua posição um retorno à Fonte do Cristianismo, portanto como fidelidade à Palavra de Deus e esta posição foi compreendida pela Igreja Católica como revolta contra a instituição legítima. As posições se polarizaram.
Tentando responder aos questionamentos dos reformadores a Igreja Católica realiza o Concílio de Trento. Nele os embates se tornam acirrados. A Igreja tem de justificar-se racionalmente, já que é questionada não mais nos conteúdos da fé, mas nos próprios fundamentos. Em contraposição a Sola Scriptura a Igreja romana afirma o “Evangelho” e também a tradição como lugar da revelação divina. Trento afirma ser o “Evangelho a fonte da revelação”[6].
Diz ainda que o Evangelho é “fonte de toda verdade salutar e de toda regra moral” e enquanto tal encontra-se nos “livros escritos e nas tradições não-escritas”. Em meio a essa problemática o Concílio Vaticano I insere as categorias de “natural” e “sobrenatural” em relação à revelação divina, que até então não havia sido discutida. A palavra revelação não era ainda um termo técnico em teologia. Utilizava-se para tanto os termos “Evangelho de Jesus Cristo”, “Economia da salvação” e “Palavra de Deus”.
A Dei Filius é uma tentativa de equilibrar as oposições no confronto com a Modernidade. O capítulo II da DF sobre a revelação é uma expressão clara do exercício contínuo visando impedir posições extremadas. É uma resposta tanto aos racionalistas que acreditavam poder conhecer todas as coisas, inclusive Deus somente pela razão quanto aos fideístas, partidários da afirmação de que a revelação divina era “o meio” de conhecer a Deus. A Dei Filius afirma que Deus pode ser conhecido “à luz natural da razão humana a partir das coisas criadas”, mas também diz que “Deus quis dar-se a conhecer e também seus decretos eternos à espécie humana por outro caminho: o sobrenatural”[7]. Esse é o período em que a Igreja Católica tenta dialogar com os pensadores modernos em geral e também com os reformadores.
A “recepção” que se seguiu a Trento foi a da existência de duas fontes da revelação e não uma como está no texto. O Vaticano I “recebe” o concílio de Trento seguindo esta interpretação distorcida. Justifica-se tal recepção distorcida pela ambiguidade da própria formulação do texto que permite uma interpretação desse tipo. Volta-se então ao esquema pré-tridentino do partim ... partim. O Vaticano I é, portanto, a continuação da recepção distorcida do Concílio de Trento. Embora tentasse dialogar com a Modernidade a lógica do Vaticano I ainda era medieval. Esta interpretação causou na Igreja Católica um fechamento danoso.
2.2 Vaticano II: a reflexão sobre a Revelação
Enquanto o Vaticano I considerava a Modernidade uma ameaça assustadora à Igreja e à humanidade, o Vaticano II a pensa como uma novidade podendo suscitar algo de bom. A Modernidade fazia parte da vida dos fiéis e não dava para negá-la simplesmente, nem considerar tudo o que dela derivasse como erro. O Vaticano II tem um novo espírito, uma nova lógica. Esse novo é constatado em especial na Dei Verbum. Nela veremos a nova compreensão de revelação e a superação do esquema das duas fontes, o denominado partim ... partim.
No proêmio da Dei Verbum já encontramos as categorias que vão perpassar e reger o documento. Vemos assim o que é importante ressaltar e o que será a iluminação para os fiéis seguirem sua caminhada de fé na Igreja. A primeira mudança observada versa sobre o conteúdo da revelação. Não mais se adere a “verdades” (decretos eternos)[8], mas a uma pessoa: Jesus Cristo, em quem se consuma a revelação divina[9]. Deus revela-se em plenitude no seu Filho pelo Espírito. Esta revelação se faz por meio de ações e palavras. Deus se revela na história.
O segundo ponto a ser refletido pelo documento é a transmissão da revelação divina e aqui a transmissão assume um papel essencial. Transmissão passa a ser uma categoria chave na compreensão da nova lógica da fé. A palavra aparece no documento quatorze vezes: uma no proêmio, nove vezes no capítulo II, que trata da transmissão e quatro no capítulo V, em referência a interpretação da revelação no Novo Testamento. Ela é citada de diferentes modos ao longo do documento. Com esta categoria vemos mudar na Dei Verbum o esquema de compreensão em relação ao problema “das fontes”, que havia sido assumido pelo tridentismo e pelo Vaticano I.
No § 7 retoma-se a questão expondo como em Trento o “Evangelho” enquanto Fonte[10] da verdade salutar e esta devia ser transmitida a todas as gerações, por isso, Jesus Cristo ordenou aos apóstolos que pregassem a todos, os dons divinos recebidos. Embora retorne a Trento e cite-o, as primeiras referências são textos bíblicos. Na sequência deste parágrafo a Dei Verbum recorda que os apóstolos deixaram os bispos como seus “sucessores” na tarefa de transmitir o “Evangelho”. Contudo ressalta que Tradição e Sagrada Escritura são o “espelho” no qual a Igreja contempla a Deus. A Igreja reconhece assim o seu lugar no dinamismo da transmissão da revelação, ou seja, o Magistério não está acima nem em igualdade com a Tradição e menos ainda com a Sagrada Escritura.
Já no § 8 somente na primeira parte a palavra “transmissão” aparece três vezes em duas formas. Aqui ela assume um caráter dinâmico explicitando como a Igreja transmite o que “é” e o que “crê” tendo na sua base a pregação apostólica que deveria conservar-se por uma sucessão “contínua”. A ação da Igreja é apresentada como fidelidade à advertência dos apóstolos aos fiéis para que mantivessem as “tradições” recebidas. O documento faz aqui uma referência a 2Ts 2,15, na qual Paulo exorta os fiéis a manterem as tradições de forma oral e/ou escrita. Na sequência deste parágrafo é esclarecido um ponto importante na visão do Vaticano II: a ideia de progressão. Não se pode mais falar de verdades inquestionáveis. “Tanto a percepção das coisas como das palavras progride”. Uma revelação que se faz humanamente na história carrega em si a mudança, a progressão, a caminhada, ou se quisermos arriscar ainda mais, uma atualização que se faz de acordo com o tempo histórico.
No desenrolar do texto encontramos outro ponto importante na compreensão da relação entre Tradição e Sagrada Escritura. A constatação de que foi a Tradição apostólica que definiu o cânon das Escrituras. A Tradição viu nesses livros a configuração de sua fé. Assim a Sagrada Escritura passou a ser a norma para as tradições posteriores.
O § 9 da Dei Verbum aparece no capítulo como uma conclusão de toda a questão da transmissão como categoria que supera a problemática das fontes. Ele volta a afirmar uma fonte de onde derivam tanto a Sagrada Escritura quanto a Sagrada Tradição, colocando-as em estreita relação e comunicação. A Palavra de Deus é a Fonte da revelação que é transmitida pela Escritura e pela Tradição.
3. À guisa de conclusão
Colocar o acento numa palavra que até então não tinha peso, poderia parecer infantil. Mas, analisando o texto vemos como essa mudança não apenas deslocou o foco de algo já conflituoso, mas ainda abriu novas possibilidades de interpretação aos acontecimentos e vivência da fé. Todo o documento é perpassado por essa nova lógica, por esse novo espírito. A Dei Verbum retomou categorias bíblicas que especificam e clarificam elementos da nossa fé. Categorias “viciadas” e carregadas de conceitos abstratos não dão conta de uma fé que é resposta a uma revelação histórica concreta.
Aparentemente o capítulo II da Dei Verbum sobre a transmissão da revelação acabava no nono parágrafo. A própria redação do texto insinua isso, conclui a questão. Contudo, ainda é apresentado mais um parágrafo. É confuso e amplamente ambíguo. Retoma categorias estranhas ao restante do capítulo e ressalta o papel do Magistério como interprete legítimo do “depósito sagrado da palavra de Deus”[11].
Nesse parágrafo percebemos mais claramente a desconfiança e insegurança de alguns padres conciliares diante da mudança de postura. Percebemos a dificuldade de conciliar posições contrárias num mesmo texto. Do mesmo modo que aconteceu com a recepção do Concílio de Trento percebemos a dificuldade de uma legítima recepção do Vaticano II.
Ainda assim é possível dizer que enquanto reflexão sobre a revelação, não há mais o que discutir. A Dei Verbum solucionou a questão profunda do sentido da Revelação. Contudo vemos e experimentamos no nosso dia-a-dia um retorno a uma mentalidade pré-Vaticano II. Necessitamos fazer o que fez este concílio. Ele não jogou com as palavras como pode parecer à primeira vista. Mas valorizou o que é importante para nossa fé. Não devemos compreender o uso da palavra “transmissão” como um mero jogo linguístico para fugir do problema. Ela deve ser entendida como dinamicidade. Transmitir a revelação é deixar que Cristo se revele na historicidade e individualidade do fiel, mediante a relação dinâmica que se dá entre o Cristo que se propõe e o fiel que adere ao projeto de salvação.
Essa categoria não se esgota no texto conciliar, é aberta. Ela está presente na dimensão pastoral. Evangelizar é transmitir a experiência única e sempre atual do projeto divino de salvação e este não é senão libertação. Mas libertação precisa ser compreendida agora na sua raiz. A exemplo do Vaticano II devemos voltar à Bíblia e dela tirar a vida que brota numa “teologia da liberdade”[12].
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
LIBÂNIO, João Batista. Igreja contemporânea: Encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.
A FÉ CATÓLICA: Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro, 2003.
CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a revelação divina. São Paulo: Paulinas, 1966.
COMBLIN, José. Cristãos rumo ao século XXI: Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996.
SESBOUE, Bernad; THEOBALD, Christoph. Histore des Dogmes, t. IV. La parle du salut. Paris: Desclée, 1996 (trad. Portuguesa: História dos Dogmas)[1] CONCÍLIO VATICANO II. Dei Verbum. Constituição Dogmática sobre a Revelação Divina. São Paulo: Paulinas, 1966.
[2] Cf. Lc 1,1s.
[3] LIBÂNIO, J. B. Igreja contemporânea. Encontro com a modernidade. São Paulo: Loyola, 2002, p. 13.
[4] Ibid., p. 14.
[5] [5] Conclusão a que chegou a Demonstratio Catholica, na apologética clássica. In: A apologia nos tempos modernos. Entre dogma e teologia. Apostila do curso de Teologia Fundamental
[6] Sobre o Concílio de Trento confira o capítulo terceiro de SESBOUE, B; THEOBALD, C. Histoire des Dogmes, t. IV. La parle du salut. Paris: Desclée, 1996 (trad. Portuguesa: História dos Dogmas)
[7] Sobre o Vaticano I ver A FÉ CATÓLICA: Documentos do Magistério da Igreja. Das origens aos nossos dias, Rio de Janeiro, 2003
[8] Cf. Dz 3004. In: apostilas do curso de Teologia Fundamental
[9] DV, I, 2
[10] DV, II, 7
[11] DV, II, 10.
[12] Cf. COMBLIN, J. Cristãos rumo ao século XXI: Nova caminhada de libertação. São Paulo: Paulus, 1996. Todo o segundo capítulo desse livro é uma análise que o autor faz da 'teologia da liberdade’ em Paulo. O autor fala de um “evangelho da liberdade”
Ir. Rita Maria Gomes possui graduação, mestrado e
doutorado em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia
(Faje), onde lecionou Sagrada Escritura. Atualmente é professora na
Universidade Católica de Pernambuco (Unicap). É membro do Instituto
Religioso Nova Jerusalém, que tem como carisma o estudo e o ensino da
Sagrada Escritura.