Roteiro Homilético para o 2o. Domingo do Advento - 08 de dezembro - Imaculada Conceição
Aíla L. Pinheiro de Andrade, nj*
I. INTRODUÇÃO GERAL
O pecado e a encarnação aparecem na bíblia como dois movimentos que
têm por objetivo a eliminação do abismo entre o Criador e a criatura. O
pecado significa que o ser humano quis superar a distância que existe
entre ele e seu Criador, pretendendo fazer-se igual a Deus. A encarnação
é o movimento inverso. Deus, de fato, superou a distância entre nós e
ele, quando o Verbo eterno se fez homem.
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Lc 1,26-38): Faça-se em mim conforme a tua palavra
O evangelho de hoje nos apresenta um modelo de colaboração no
propósito de Deus para a salvação humana. O texto enfatiza dois aspectos
principais: a presença eficaz de Deus que realiza o seu propósito e a
colaboração humana que diz “sim”. Em Maria, vemos esses dois aspectos se
realizarem. A atitude dela se torna, para nós, um paradigma a ser
seguido.
O texto é bem estruturado e nos apresenta a realização das promessas
feitas ao povo de Israel no passado. Todo o discurso está permeado de
alusões às profecias messiânicas do Antigo Testamento (cf. Is 7,14;
49,6; 2Sm 7,12-14). Com isso se quer conectar o cumprimento das
promessas salvíficas a este menino cujo nascimento constitui o início de
sua efetivação.
Alguns termos são de extrema importância e nos ajudam a compreender melhor o sentido profundo desse texto.
A saudação contém duas expressões importantes: “cheia de graça”, uma
alusão à alegria messiânica que ora se inicia, e “o Senhor está
contigo.” Esta última expressão não é dita a pessoas em circunstâncias
normais, ainda que possa haver exceções (cf. Rt 2,4), mas se refere ao
povo de Deus em sua totalidade ou a alguma pessoa que Deus tenha
convocado para realizar um trabalho árduo. A presença eficaz de Deus
dirige a pessoa à finalidade proposta por ele.
A expressão “cobrir com sua sombra” faz alusão à nuvem que cobria o
tabernáculo no deserto, representando a glória de Deus que ali habitava
(cf. Ex 40,34). A mesma expressão é utilizada no texto da transfiguração
(cf. Lc 9,34), porque era símbolo da presença de Deus. O tabernáculo no
deserto era chamado de Tenda do Encontro (cf. Ex 27,21), pois ali Deus
se encontrava com o ser humano através da representação da nuvem. Dessa
forma, quando o texto, ao se referir a Maria, utiliza a expressão
“cobrir com sua sombra” a identifica com a Tenda do Encontro, e
significa que no útero dela Deus e o ser humano se encontram no Menino
que vai nascer.
Ante a vontade de Deus, Maria deu a resposta: aceitou. Ela
proclama-se “serva do Senhor”, frase usual no ambiente oriental quando
um subalterno se dirige ao seu superior com o propósito de aceitar seus
desígnios. Essa disposição para a obediência é uma manifestação de
confiança (fé) na Palavra de Deus.
2. I Leitura (Gn 3,9-15.20): Onde estás?
O texto de Gn 3,10-11 alerta sobre a inviabilidade atual do propósito
divino de habitar com a criação, pois o casal humano, em decorrência do
pecado, se esconde de Deus. E como o ser humano é o responsável pela
criação, então, esta, em sua totalidade, fica afastada de Deus. Por
isso, para a fé de Israel a presença divina na criação somente poderá
ser eficaz quando o ser humano parar de se esconder de Deus, isto é,
quando a humanidade ouvir a voz daquele que a interpela: “Onde estás?”
(Gn 3,9). A escuta da voz de Deus possibilitará ao ser humano o
arrependimento que, no sentido bíblico, significa “retorno” à aliança ou
à “colaboração” (trabalhar junto) com Deus.
O pecado, muito mais que uma revolta contra Deus, é um aviltamento da
natureza do ser humano. O chamado de Deus procura reconduzir a
humanidade — e, com esta, a criação inteira — à sua própria dignidade.
Assim, o arrependimento (ou a colaboração) do ser humano significa a
criação retornando ao seu verdadeiro propósito.
Quando cada ser humano se arrepender, então, manifestar-se-á toda a
beneficência da criação. E, quanto mais se retarda o arrependimento do
ser humano, mais demora a presença divina na criação. Assim sendo, a
plena manifestação da criação em sua beneficência depende da decisão
humana. O mundo vindouro não significa apenas a vinda de Jesus, mas é
também o retorno do ser humano para Deus. É o retorno do Criador (cf. Is
52,8) e da criatura.
3. II Leitura (Ef 1,3-6.11-12): Santos e imaculados diante de Deus
A segunda leitura consiste num hino cristológico (a Cristo) com forte
teor batismal. Seu tema principal é a obra de Deus através de Cristo.
As consequências dessa obra no ser humano são a filiação divina, o
perdão dos pecados, o tornar-se membro do Corpo de Cristo e a ação
santificadora do Espírito Santo. Todos esses temas fazem parte de uma
catequese batismal. Portanto, o hino também esclarece o sentido do
batismo para nós.
A partir desse texto, fica esclarecido que, antes de tudo, a eleição
(vocação à filiação divina) não é algo acidental. A encarnação não
aconteceu para resolver o problema do pecado humano. Quer dizer, a
encarnação não foi determinada pelo ser humano, não é consequência de
suas ações. A eleição que recebemos para nos tornar filhos de Deus faz
parte do propósito divino desde toda a eternidade. A eleição do ser
humano em Cristo é anterior à criação. Deus tomou a iniciativa de nos
tornar filhos no Filho.
Por isso, desde toda a eternidade, cada ser humano é chamado a ser “sem mancha” (imaculado, v. 4). Esse termo (ámomos),
no Antigo Testamento, designava o cordeiro do sacrifício (cf. Lv
1,3.10) e muitas vezes é traduzido em português por “sem defeito” ou
“irrepreensível”, mas literalmente significa “sem mancha” ou
“imaculado”. No Novo Testamento, o mesmo termo se refere à vida daquele
que se une a Cristo.
É fato que o ser humano sempre pecou, apesar de ter recebido um
chamado, desde toda a eternidade, para ser santo e imaculado. E já que
“todos pecaram” (Rm 3,23; 5,12) a graça da encarnação (a vida inteira de
Jesus) se tornou redenção, libertação da tirania do pecado que
escraviza o ser humano.
Como a graça é anterior ao pecado, pois é anterior à criação (v.4), a
eleição significa que somos atingidos pela graça desde o primeiro
momento de nossa existência. Disso decorre que a vivência do batismo é a
adesão consciente e livre à graça da eleição eterna que se opõe ao
pecado e realiza em nós aquilo a que fomos chamados: ser santos e
imaculados diante de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Maria, dotada de “uma santidade inteiramente singular” (LG 56),
representa a humanidade nova redimida por Cristo, ou seja, a Igreja.
A homilia deve mostrar que esta festa mariana harmoniza-se com o
espírito do Advento. Enquanto a Igreja se prepara para a vinda do
Senhor, é adequado celebrar Maria como figura da Igreja, ou seja, da
nova humanidade redimida por Cristo e chamada a ser santa e sem mancha,
conformando-se à vontade do Criador.
Uma exaltação exagerada a Maria pode quebrar o dinamismo litúrgico do
Advento que enfatiza a espera pelo Senhor. Uma ênfase exagerada nos
privilégios de Maria, pode também favorecer uma devoção desraigada de
Cristo. Pode, além disso, ofuscar o papel da graça da eleição à filiação
divina, vocação de todo ser humano, a qual foi decidida desde toda a
eternidade, age desde a criação e vai se consumar na segunda vinda de
Cristo. Maria teve papel singular na história da salvação e não deve
ofuscar a obra redentora de Cristo. A homilia deve remeter-se a Cristo, o
protagonista, e deixar a Maria o papel de coadjuvante, a saber, a de
representante da humanidade renovada pela redenção realizada por Jesus.
Publicado originalmente na Revista Vida Pastoral, ano 54, número 293, novembro-dezembro de 2013.
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* Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje - BH), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns anos. Atualmente, leciona na Faculdade Católica de Fortaleza. É autora do livro Eis que faço novas todas as coisas – teologia apocalíptica (Paulinas).
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