Aíla L.
Pinheiro de Andrade, nj *
(Texto
publicado originalmente em Revista Vida Pastoral ano 53 - número 285,
julho-agosto de 2012).
I. INTRODUÇÃO GERAL
Continuando
com o tema do sinal do pão, a liturgia de hoje – e nos domingos seguintes –
centra-se no discurso de Jesus sobre o “pão da vida” ou “pão do céu”. Por meio
do maná (pela manhã) e das codornizes (à tarde), Deus sustentava a vida do povo
no deserto. Apesar da benevolência divina, o povo não mudava de atitude, não
parava de murmurar e de preferir a antiga vida de escravidão à vida nova, com
dignidade, dada por Deus. É bem adequada a exortação da carta aos Efésios para
que os cristãos não tornem a proceder como antigamente, na futilidade de
pensamentos: “foi bem outra coisa o que aprendestes de Cristo” (Ef 4,20).
II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS
1. Evangelho (Jo 6,24-35): Eu sou o pão da
vida
A multidão
está à procura de Jesus, movida não pelo que o sinal do pão aponta, mas pelo
interesse pessoal de saciar a fome. Por isso, Jesus reprova a multidão, que não
o busca por ele mesmo. Ele chama a atenção para que a multidão se empenhe mais
pelo alimento que permanece, e não apenas pelo alimento perecível. Esse empenho
deve ocupar a vida do cristão em sua totalidade. O verdadeiro alimento é Jesus,
que dá a vida eterna àqueles que o buscam. Vida eterna significa uma existência
reconciliada com Deus. Por isso, essa vida inicia-se já aqui na história.
Movida pelo
interesse pessoal, a multidão pede a Jesus que realize a obra de Deus, mas não
sabe a profundidade do pedido que faz. A obra que Deus quer realizar é que o
ser humano busque a Jesus (v. 29), o caminho para Deus. E buscar a Deus
significa abandonar-se incondicionalmente ao seu amor e à sua vontade. Por isso
a multidão não compreende o alcance de seu pedido, já que se nega a fazer a
vontade de Deus, que é crer naquele que ele enviou.
O pedido do
sinal também revela a incapacidade de enxergar, porque viram o sinal, mas, como
não têm fé, não viram a ação de Deus. E os sinais que a multidão pede devem
superar os milagres realizados no antigo Israel, milagres que legitimam suas
pretensões messiânicas. Para isso recordam o prodígio do êxodo, quando Moisés alimentou
o povo no deserto com o maná. A isso Jesus responde, mostrando que o verdadeiro
pão do céu quem dá é o Pai. E o pão do céu é o próprio Jesus, que veio dar a
vida eterna. Esse sinal revela o messianismo de Jesus, a multidão não precisa
então de outro sinal.
Contudo, a
multidão continua sem compreender o sinal, porque pede a Jesus que lhe dê
sempre desse pão. Não entendem o verdadeiro alcance de suas palavras. A
resposta de Jesus é semelhante à que foi dada à samaritana (6,35): quem vai a
Jesus nunca mais terá fome nem sede.
No deserto,
o povo foi alimentado com o maná e teve a sede saciada com a água que saiu da
rocha. Mas o povo morreu; isso mostra que aquelas realidades antigas eram
apenas uma prefiguração de Jesus, o enviado de Deus, que oferece o verdadeiro
alimento e sacia totalmente a sede que a criatura tem de seu Criador.
2. I leitura (Ex 16,2-4.12-15): Farei
chover pão do céu para vós
A leitura
afirma que “toda a comunidade dos israelitas murmurava” (v. 2). Isso significa
que todos estavam de acordo sobre um ponto: era melhor ser escravo no Egito e
ter o que comer do que ser livre e passar fome. A comunidade formava uma
multidão interesseira. O povo rapidamente esqueceu que havia chorado sob os
açoites dos feitores egípcios e que clamou a Deus, pedindo que o libertasse.
Após a libertação, os israelitas lembravam-se do cheiro e do gosto dos temperos
nos cozidos de carne, mas haviam esquecido as chicotadas dos feitores e o
trabalho forçado. A que preço, anteriormente, comeram aquele alimento sem ter
direito à vida e à dignidade, correndo risco de morte a cada instante.
Nas
reclamações dos israelitas há uma acusação contra o Senhor: “Por que nos trouxe
o Senhor a este deserto? Para matar de fome toda esta gente?” (v. 3). Conforme
essas palavras, não há diferença entre Deus e o faraó, pois ambos armam ciladas
para destruir o povo. No entanto, na literatura judaica, o faraó e o Egito
simbolizam a ausência de respeito à vida e à dignidade humana, significam
opressão e escravidão. Ambos são a negação da vida e do reino de Deus.
O faraó é o
contrário de Deus e de seu projeto salvífico. O povo necessita mudar de
mentalidade e de atitude. O Senhor não intenta matar Israel no deserto. Na
dureza da vida no deserto, o povo é cuidado por Deus como os pais cuidam de
seus bebês. Os israelitas foram levados ao deserto para fazer a experiência de
serem amados e cuidados por Deus, já que no Egito tinham experimentado apenas o
rigor da servidão. Os israelitas conheciam apenas o faraó como senhor, agora
necessitavam saber quem era Deus. Eles foram alimentados e cuidados no deserto
para que tivessem uma experiência diferente: “Assim sabereis que eu sou o
Senhor vosso Deus” (v. 12).
3. II leitura (Ef 4,17.20-24): Aquele que
desceu do céu
O apóstolo
faz com que os efésios se recordem do que eram antes de se converterem, ou
seja, da maneira como viviam e de como os gentios ao redor deles ainda
procedem. Na Bíblia, a vida é frequentemente comparada a uma jornada, e por
isso o apóstolo diz que os cristãos não devem caminhar como antigamente o
faziam e como ainda fazem os seus conterrâneos.
Os gentios
se comportam com “vaidade” de mente, afirma o texto. A palavra “vaidade” nas
Escrituras significa “vacuidade” e denota um mal no âmbito da moral. Na Bíblia,
comumente esse termo é aplicado aos que adoram ídolos vãos, em contraposição a
quem conhece o Deus vivo e verdadeiro. Para religiões tão diferentes, os
comportamentos humanos igualmente devem ser muito diferentes; os efésios
precisam saber disso e mudar de atitude.
O homem vão
é aquele que caminha de acordo com os próprios interesses, mas coisa muito
diferente foi ensinada aos cristãos. Cristo ensinou que a religião exige
abandono total no curso da vida.
Com ironia
sutil o texto diz: “se é que ouvistes falar de Cristo e nele fostes instruídos”
(v. 21). Quem escuta atentamente as instruções de Cristo sabe qual é o
verdadeiro propósito da “religião” (relacionamento com Deus). A respeito da
conduta anterior ou dos hábitos de vida, os cristãos devem deixar de lado tudo
o que pertence a uma natureza egoísta.
O Filho de
Deus, que desceu do céu para conviver conosco, instrui-nos sobre o que agrada a
Deus; ele nos deu essa instrução com a sua própria vida. Jesus nos mostrou como
vive um verdadeiro filho de Deus. E isso não é algo que esteja além dos limites
humanos. Mostrou que é possível ao ser humano tirar do foco os próprios
interesses e identificar a própria vontade com a vontade de Deus.
III. PISTAS PARA REFLEXÃO
Já que
estamos iniciando o mês das vocações, é bom ressaltar o seguinte:
– Há pessoas
que fazem da religião uma fonte de lucro ou de privilégios pessoais, usando-a
para o conforto e prosperidade pessoais.
– Os hebreus
eram escravos no Egito e lá recebiam apenas pão para a própria sobrevivência.
Livres no deserto, queriam continuar no mesmo esquema: Deus teria de
alimentá-los. Mas Deus queria ter com eles um relacionamento que não se
baseasse na troca de favores.
– O Deus de
Jesus Cristo é diferente do faraó e dos deuses antigos dos efésios, ele liberta
da escravidão do pecado e do egoísmo. Deus é livre, não se deixa manipular em
favor de interesses egoístas. Deus cuida dos seres humanos porque ele é bom.
– Hoje
cresce o número de pessoas que buscam o sagrado porque querem ter um emprego,
um companheiro, cursar uma universidade etc. Não buscam a Deus, mas milagres e
curas. Os santos, no entanto, buscavam a Deus por ele mesmo, e não por causa do
que lucrariam com a religião. Eles entenderam a instrução de Jesus e
trabalharam pelo pão que não perece e que permanece até a vida eterna (Jo
6,27).
* Aíla L.
Pinheiro de Andrade é graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará
e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde
também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica e lecionou por alguns
anos. Atualmente leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas
outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.
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