A pergunta de Jesus, no final do texto de Lc 2,41-50, “não sabeis que
devo ocupar-me com o que é de meu Pai?”, foi compreendida ao longo da
história da hermenêutica como sendo o fator determinante para a
compreensão integral dessa passagem bíblica. Nesse sentido, parecia
óbvio que Jesus, desde a infância, quis mostrar aos doutores (rabinos,
disdáskaloi) a origem divina dele, através de uma sabedoria
extraordinária, muito além das potencialidades humanas. “Todos os que o
ouviam extasiavam-se com a perspicácia de suas respostas” (v. 47), uma
situação ímpar, visto que jamais Jesus será novamente acolhido com tanta
simpatia pelos doutores de Jerusalém. Tudo dava a entender que Jesus
tinha ido a Jerusalém para demonstrar a origem divina dele antes que
começassem os conflitos, com os sábios judeus, durante o ministério de
proclamação do Reino de Deus exercido por ele no curto período de vida
pública. Sendo assim, a pergunta que usamos como título dessa postagem
pareceria um absurdo.
Com o advento da exegese histórico-crítica
(século XVII d.C) essas interpretações já não pareciam tão óbvias. A
pergunta inicial dos exegetas era sobre o que Lucas estaria querendo
afirmar com esse relato, já que esse evangelista não era judeu e seus
destinatários imediatos eram cristãos vindo do ambiente gentílico. Uma
nova compreensão do texto estava nascendo e o v. 50, “eles não
compreenderam as palavras que ele lhes dissera”, parecia dar o tom para a
interpretação da narrativa. Quem não compreendeu? Trata-se apenas dos
pais de Jesus ou dos leitores do evangelho de Lucas? Durante algum tempo
a maioria dos estudiosos esteve de acordo que o relato de Lc 2,41-50
pertencia ao gênero literário “relatos da infância de um herói” e tinha
por objetivo preencher uma lacuna na história de Jesus enquanto
sublinhava sua santidade e o exaltava perante os sábios judeus, seus
oponentes posteriormente. A sabedoria da criança, futuro herói da
narrativa, era um dos elementos principais encontrados na maior parte da
literatura oriental (Bultmann).
O estudioso Robert Aron, em
1962, foi o primeiro a intuir que o relato lucano poderia estar se
referindo a um bar-mitswah (literalmente: filho do mandamento), ou seja,
Jesus estaria participando do ritual judaico no qual o adolescente
assume publicamente suas responsabilidades religiosas e demonstra ter o
conhecimento da Torah (Lei de Moisés) suficiente para isto. Após o
ritual é declarada a maioridade do menino perante a religião. Nesse
caso, Jesus estaria se submetendo à Torah, igual a todo bom judeu, e não
provando a divindade dele. A admiração dos doutores a respeito do
diálogo que travaram não seria uma suspeita de que Jesus era divino, mas
a constatação de que ele era uma criança bem instruída, com capacidade
para bem interpretar as Escrituras. Nesse caso, Jesus não fez mais que
sua obrigação de menino judeu ao discutir com os doutores,
demonstrando-lhes sabedoria.
A intuição de Robert Aron provocou
um alvoroço, pois ela parecia muito lógica, mas era necessário
embasar-se em algum texto rabínico para apoiar essa teoria ou ela cairia
no descrédito e não passaria de mera intuição. Aron não demonstrou em
que se apoiava, mas igual ao “aprendiz de feiticeiro” havia mexido numa
alavanca que tirou a exegese dos textos lucanos da órbita na qual estava
até então. Agora os exegetas se dividiam, uns a favor e outros contra o
bar-mitswah de Jesus. Os que estavam a favor destacavam os elementos do
texto como a peregrinação anual a Jerusalém (2,41), a caravana (2,44), o
lugar de ensinamento no Templo (2,46), a possibilidade de discussão
entre uma criança e os doutores (2,46-47). Todos esses elementos estavam
conforme os costumes no tempo de Jesus, por isso era possível tratar-se
de um bar-mitswah. Os que estavam contra a teoria de Robert Aron
enfatizavam que nos textos antigos do judaísmo não há uma descrição
dessa cerimônia e por isso ela deve ser uma prática recente. O Talmud da
Babilônia (compilação da doutrina tradicional do Judaísmo) é o primeiro
a trazer a expressão bar-mitswah, contudo não está se referindo a
nenhuma cerimônia, mas apenas designando o judeu adulto como sendo um
“filho do mandamento”, ou seja, aquele que cumpre a Torah (BM 96a, apud
MANSS). Além disso, os textos judaicos que descrevem a cerimônia
estabelecem a idade de 13 anos para sua realização, argumentam os
oponentes de Robert Aron.
Frédéric Manns, renomado estudioso do
Novo Testamento no contexto das raízes judaicas e catedrático de
literatura rabínica, tomou a si o encargo de esclarecer alguns pontos
dessa polêmica. Primeiramente, considerou no relato lucano os elementos
que estavam em conformidade com os costumes do tempo de Jesus, os quais
foram destacados pelos estudiosos pró bar-mitswah de Jesus. Mas mostrou
que é necessário também procurar ver se a teoria de Robert Aron encontra
sua fundamentação nos textos da literatura judaica. Isso pode ser
possível porque textos rabínicos posteriores ao Novo Testamento
geralmente são testemunhas de tradições mais antigas, isto significa que
há uma possibilidade de existência da cerimônia de bar-mitswah no tempo
de Jesus e que ele pode ter realizado esse rito. Além disso, havia uma
hesitação entre os rabinos sobre a fixação da idade, entre doze ou treze
anos, para a maturidade religiosa. É provável que a idade tenha variado
segundo as regiões geográficas e/ou conforme a maturidade pessoal dos
indivíduos. Na Mishná (compilação rabínica de leis orais fruto de
interpretações da Torah), no tratado Niddah 5,6 está escrito que “a
partir de doze anos e um dia os votos de um jovem são válidos” (apud
Manns). O Talmud da Babilônia afirma: “um pai deve ter paciência na
formação de seu filho até que este atinja a idade de doze anos, após
isto ele deve empregar métodos fortes” (Kethuboth 50a, apud Manns), ou
seja, com doze anos a criança passa da fase de aprendizagem para a de
obrigatoriedade no cumprimento da Torah.
Por fim, Manns assegura
que ambos os grupos de exegetas, os prós e os contra o bar-mitswah de
Jesus, não consideraram um aspecto muito importante o qual ele pretende
pesquisar e se tornará uma grande contribuição desse estudioso para o
debate a respeito desse tema. Os elementos da narrativa lucana como a
menção ao terceiro dia, subir e descer, buscar e encontrar, décimo
segundo ano e tomar a Deus por Pai, são colocados, em diversas
literaturas rabínicas elencadas por Manns, em relação com o dom da Torah
a Moisés e com a obrigatoriedade assumida por cada judeu de cumprir os
seus preceitos. Ocupar-se com o que é do Pai (v. 49) é uma expressão
corriqueira na literatura rabínica e significa fazer a vontade de Deus
cumprindo os mandamentos.
“Se é verdade que o tema do terceiro
dia, ao qual estão vinculados os do descender-ascender e os do
procurar-encontrar, o de doze anos e o de ocupar-se com as coisas do
Pai, têm um vínculo com o dom da Lei, não está excluído que eles
indiquem igualmente que, na cena do Encontro, Jesus veio realizar a Lei
de Moisés que prescrevia a todo judeu, de tomar sobre si a Lei e de vir a
ser um filho da Lei” (Manns, p. 349).
Depois de percorrer vários
textos da literatura rabínica, Manns não é taxativo, ele apenas conclui
que o relato lucano pode ser um testemunho do bar-mitswah de Jesus.
Também admite a existência de muitos outros aspectos na narrativa a
serem considerados dentro do plano teológico-literário do evangelista.
Talvez possamos acrescentar também que Lucas, escrevendo para cristãos
vindo do ambiente gentílico, deseja apresentar um Jesus bem humano,
dentro de uma cultura e tradição religiosa e, com isso, evitar que seus
destinatários pensassem se tratar de mais um mito ou lenda sobre um
semideus à maneira greco-romana. Também a comunidade para a qual Lucas
escreve não estava compreendendo quem era Jesus. E o que dizer dos
cristãos de hoje? Ah, isto é outra história que requer outra postagem…
REFERÊNCIAS:
MANNS, Frédéric. “Luc 2,41-50 temoin de la bar mitswa de Jesus”. Marianum, Roma, v. 40, n. 121-122, p. 344-349, 1978.
ARON, Robert. Lês années obscures de Jésus. Paris: Bernard Grasset,1962.
BULTMANN, Rudolf. The History of the Synoptic Tradition, Oxford: Blackwell, 1963.
