quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

FELIZES OS QUE ANDAM NA LEI DO SENHOR

Aíla L. Pinheiro de Andrade*

Roteiro Homilético para 6º Domingo do Tempo Comum

I. INTRODUÇÃO GERAL

A fidelidade à Lei de Deus, melhor di- zendo, à Torá ou instrução do Senhor, é um dos temas centrais do Antigo Testamento. O amor e a fidelidade à Lei de Deus cons- tituíam toda a justiça e santidade do povo de Israel.
A Lei de Deus é boa e santa (Rm 7,12). Por isso, a Lei não foi abolida por Jesus, mas sim plenificada (Mt 5,17). Plenificar significa que não basta cumprir a materia- lidade do mandamento, mas se perguntar pela intenção de Deus ao instituí-lo. Não é suficiente uma fidelidade externa, mas faz-se necessária uma fidelidade mais pro- funda, que empenhe mente e coração. Não basta somente uma conduta que todos possam ver, mas uma reta intenção, que brote do mais profundo do coração e da mente, vista somente por Deus. Tal atitude é possível quando se é capaz de deixar-se penetrar pela sabedoria do evangelho,
“misteriosa e oculta” (1Cor 2,7), sabedoria da cruz de Cristo. Isso é andar na Lei do Senhor. Os atos meramente externos cons- tituem um legalismo severamente criticado por Jesus.


II. COMENTÁRIO DOS TEXTOS BÍBLICOS

1. Evangelho (Mt 5,17-37): Eu não vim abolir, mas cumprir a Lei

Jesus continua o discurso do monte, afirmando que, se o modo de agir, ou seja, se a justiça dos discípulos não for mais exi- gente que a dos escribas e dos fariseus, eles não participarão da construção do reino de Deus. É isso que mostra o evangelho na liturgia de hoje: o cristianismo é muito mais exigente que o judaísmo.
Com o termo “ouvistes” se quer contrapor o ensinamento de Jesus ao ensinamento dos escribas e fariseus. Isso não significa, como muitos pensam, uma substituição do Antigo pelo Novo Testamento. Não se trata do que foi
“escrito”, mas do que foi “ouvido” como ho- milia feita pelos doutores da Lei, os mestres do judaísmo. Trata-se da interpretação de Jesus contra a interpretação dos escribas e fariseus a respeito da Sagrada Escritura.
A novidade da interpretação que Jesus faz da Escritura está na explicitação da intenção de Deus ao dar os mandamentos. Não basta, por exemplo, não matar. Há que evitar as pala- vras de desamor, de desprezo, de ressentimento contra o próximo. Era essa a intenção de Deus ao dar o mandamento “não matarás”.
“Deixa tua oferta diante do altar” (v. 24). No Dia da Expiação (ou do Perdão, ver Lv
16), os judeus confessam os pecados cometidos contra Deus e pedem perdão durante
24 horas. Mas acreditam que os pecados contra o “próximo” devem ser perdoados por quem sofreu a ofensa, e não por Deus; por isso, primeiramente pedem perdão ao próximo para depois se dirigirem a Deus. Jesus faz uma mudança em relação ao ju- daísmo, afirmando que não somente num dia especial, mas todos os dias, os cristãos devem pedir perdão ao seu próximo para depois dirigir-se a Deus.
A compreensão dos escribas a respeito do adultério era diferente no caso da culpa da mulher e da culpa do homem. Enten- diam que a mulher cometia adultério até mesmo sozinha, no coração, quando era casada e desejava outro homem. Cometia adultério quando observava um homem para vê-lo passar ou quando se exibia para ser notada por ele. Se fosse flagrada numa dessas atitudes, poderia ser apedrejada so- zinha, porque seu adultério não dependia do consentimento de um homem. Jesus põe homem e mulher em pé de igualdade. Seja homem ou mulher, cada um comete adultério no coração. A intenção de Jesus é preservar a família e o matrimônio, e não lançar um fardo pesado demais sobre nossos ombros.
Quanto ao juramento, muitas vezes os judeus juravam sem pensar e se obrigavam a agir mesmo se descobrissem ser a vontade de Deus diferente do que foi prometido por juramento. Mesmo assim, algumas pessoas preferiam fazer algo que desagradava a Deus a descumprir um juramento, pois amaldiço- avam a si mesmas quando juravam (ver 1Rs
19,1-2). Por isso, Jesus exorta a não jurar.

2. I leitura (Eclo 15,16-21): Fidelidade é fazer a vontade de Deus

Esse texto da primeira leitura destaca a liberdade de escolha, o livre-arbítrio do ser humano diante da vontade de Deus. O autor bíblico acentua a responsabilidade humana quando decide se rebelar contra Deus.
Quem obedece à vontade de Deus, ex- pressa principalmente na Escritura, tem qualidade de vida. Se todas as pessoas cum- prissem os mandamentos de não roubar e não matar, entendidos em sentido amplo, incluindo injustiças e ofensas, a sociedade de hoje seria menos violenta.
Por isso, afirma o texto bíblico que a vida e a morte estão diante do ser humano para que ele escolha o que deseja. A vontade de Deus gera vida em plenitude, o pecado gera morte. Tanto a vida quanto a morte, enten- didas nesse sentido, são consequências das escolhas humanas.
O ser humano é livre e, por conseguinte, responsável pelas próprias ações. O mal que faz ao próximo não é culpa de Deus, pois “a ninguém Deus ordenou que fizesse o mal, a ninguém Deus deu licença de pecar” (v. 21). Deus nos deu o livre-arbítrio e a capacidade de fazer as escolhas certas.

3. II leitura (1Cor 2,6-10): Uma sabedoria que não é deste mundo

Paulo ensina os fiéis de Corinto a cultivar a sabedoria “misteriosa e oculta” revelada por Deus, que ultrapassa a sabedoria do mundo e dos poderosos.
A sabedoria de que Paulo fala é a cruz, na qual Cristo revela o Deus despojado. Na fragilidade de sua vida humana e totalmente ofertada ao Pai como dom de amor, Jesus desvenda aquilo que Deus “preparou desde toda a eternidade” para os seres humanos: o amor ao extremo. É, pois, na adesão à vida de Cristo que consiste a sabedoria divina, não reconhecida pelos poderosos, porque foge da lógica deste mundo. Somente aquele que se despoja da própria vida será capaz de reconhecer a sabedoria de Deus, que é Jesus Cristo crucificado.


III. PISTAS PARA REFLEXÃO

Durante muito tempo, se entendeu que fazer a vontade de Deus significava cumprir apenas seus mandamentos de forma rigorosa. No entanto, essa concepção levou muitos a cair num legalismo exacerbado, o que gerou uma moral escravizadora. Ainda hoje muitas pessoas sofrem por causa de certos julgamentos pautados numa visão legalista da Escritura. Mas a proposta de Jesus sempre foi outra. Isso não significa um relaxamento na conduta do ser humano; ao contrário, a proposta de Jesus é exigente, porque mira o interior do ser humano, no qual foi escrita a vontade de Deus. Deus não quer seus filhos escravos, mas livres. E somente no exercício da liberdade o ser humano poderá ser verdadeiramente fiel aos mandamentos divinos.

* Aíla L. Pinheiro de Andrade é membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém. Graduada em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará e em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), onde também cursou mestrado e doutorado em Teologia Bíblica. Leciona na Faculdade Católica de Fortaleza e em diversas outras faculdades de Teologia e centros de formação pastoral.

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