Quando se narra a aliança de Deus com o povo imediatamente vem à
tona o tema da eleição. São dois temas essenciais e interligados que são
fundamentos dentro da construção do Pentateuco. Por isso é necessária uma
melhor compreensão. A história de Israel desde a criação apresenta o desejo
divino de se relacionar com o ser humano. Desde o primeiro casal, Adão e Eva,
Noé, Abraão, até a eleição de um povo, Israel como parceiro de Deus em meio a
humanidade. Pretende-se elencar quais foram os critérios para essa eleição e o
que ela representa para o povo de Israel. Além de indicar como esse tema se
constitui um dos temas chaves no Pentateuco e como pode ser lido de forma
fundamentalista nos dias atuais.
PALAVRAS-CHAVE: Eleição. Aliança. Povo de Israel. Pentateuco.
Introdução
O Pentateuco constituído pelos
livros: Gênesis, Êxodo, Levítico e Deuteronômio apresenta o surgimento da
humanidade, sua eleição divina e a longa jornada que se inicia entre o povo de
Israel e Deus. A relação dos dois será marcada pelo tema da eleição e
consequentemente da aliança. Para acompanhar esse processo passa-se desde a
criação com o primeiro casal, Adão e Eva, Noé, Abraão e o grupo que se
convencionou chamar povo de Israel e sua trajetória de libertação da escravidão
no Egito. Pretende-se observar os critérios para essa eleição e como ela foi
sendo vivida ao longo da história do povo.
A eleição na criação e a promessa de
Deus
A criação revela o desejo de Deus de
se comunicar com o ser humano, pode-se afirmar que esse primeiro movimento de
Deus ao encontro da humanidade é uma eleição. O primeiro casal Adão e Eva,
representantes da humanidade são agraciados com o desejo divino de se
relacionar com eles, isto se torna claro quando é dito em Gn 3,8 que Deus
passeava no jardim todas as tardes, esse era o momento do encontro com o
primeiro casal.
Adão e Eva poderiam usufruir
livremente de tudo que havia no jardim, mas, havia um limite, uma espécie de
cláusula dessa aliança, estava vedado o acesso a árvore do conhecimento do bem
e do mal. Quando eles quebram esse contrato, a aliança é rompida e eles são
expulsos do jardim.
No episódio do dilúvio quando Deus
decide destruir o mundo por causa do pecado da humanidade, encontra um homem
justo, Noé e resolve poupá-lo juntamente com sua família e representantes das
espécies animais. Em Gn 9,8 Deus estabelece uma aliança com Noé e sua família e
também com todos os seres da criação, o sinal da aliança é o arco na nuvem.
Essa aliança parece não se restringir somente a família de Noé em Gn 9,17, é
dito que essa aliança é eterna, abrange os seres humanos e toda a criação,
todos os seres vivos.
Logo depois entrará em cena outro
personagem importante, é com Abraão que se tem essa noção de eleição
concretizada. Deus chama Abraão e lhe diz que sua vida será modificada. Ele é
eleito para dar início a uma longa jornada com Deus para originar um povo. A
partir de Abraão nascerá um povo que se tornará conhecido como povo eleito (MCKENZIE, 1983, p. 271).
A libertação do Egito início de uma
caminhada
Na narrativa do livro do Êxodo com a
toda a trajetória de sofrimento e exploração sofrida pelos descendentes de
Abraão novamente Deus reaparece e relembra sua escolha desse grupo. Com o
reconhecimento dessa escolha, Deus decidiu através de Moisés libertar esse povo
da escravidão.
É no livro do Êxodo 19 que teremos a
celebração dessa aliança no monte Sinai, esse povo eleito trava com Deus uma
relação que será diferente a partir de então. O povo, chamado povo de Israel, deverá
cumprir as normas e estatutos e viver como povo eleito, segundo o livro do
Deuteronômio. O texto bíblico nos apresenta essa escolha de Israel e nos revela
os critérios dessa eleição. Só será possível compreender esse tema da eleição
se esse olhar se volta-para o momento em que as tradições do povo de Israel se
tornaram livro. Sabe-se que a bíblia nasce como livro no exílio, quando as
diversas tradições orais começaram a ser compiladas.
A teologia da eleição é recente pode
ser datada entre os séc. VIII ou VII a.C. (MACKENZIE, 1983, p. 271). Na crise
de fé vivida nesse período é o momento oportuno para aquele grupo repensar sua
relação com Deus. Certamente a experiência de libertação do Egito era
inspiradora para os exilados que perderam sua terra e estão novamente vivendo
em terra estrangeira. No livro do Dt 7,7-11 o autor afirma que a eleição divina
é gratuita não é por ser o mais numeroso dos povos que Israel foi escolhido, certamente
não foi por ser o mais obediente.
Por que Deus escolheu Israel
A eleição divina não pode ser vista
como privilégio, Israel foi escolhido para manifestar perante os outros povos a
Deus através de uma conduta de vida diferente das nações que vivem ao seu redor,
especialmente os cananeus, eles são o povo consagrado, apartado dos outros
povos (LÓPEZ, 1989, p. 24). Sabe-se, no entanto que a compreensão do sentido da
eleição vai se modificando ao longo do tempo.
O alcance do sentido de eleição vai
sendo construído no exílio e pós-exílio, quando a memória do povo de Israel vai
se tornando texto escrito. Para um determinado grupo a eleição é demonstração
de uma predileção especial, o povo tem algo que o distingue dos outros povos.
Deus veio ao seu encontro, de alguma forma eles são especiais.
Para outro grupo, a eleição é
percebida como uma grande responsabilidade, no texto bíblico todo chamado é
feito em vista de uma missão a ser cumprida, qual seria a missão de Israel ao
ser escolhido por Deus? Essa missão estaria associada a revelação do nome de
seu Deus. Na compreensão do povo daquela época, em que cada povo possuía sua
própria divindade, como mostrar que o Deus de Israel era diferente, era
especial, era mais forte e poderoso. O poder e a força desse Deus foram
revelados na libertação do povo do Egito, uma nação forte em seu tempo (LÓPEZ,
1989, p. 25).
O Deus de Israel era um deus
diferente, era itinerante, nômade, essa é a imagem desse deus na caminhada dos
seus escolhidos. A grande tentação do povo sempre foi se voltar para outras
divindades mais estabelecidas, com rituais a serem cumpridos e sem uma
exigência ética.
A eleição acarretava para o povo uma
grande responsabilidade, trazia em si uma exigência de fidelidade aos preceitos
estabelecidos na aliança celebrada no Sinai. O decálogo, chamado de documento
da aliança, apresenta como o povo deve se comportar perante Deus e perante os
seus semelhantes. Fica explícito que essa eleição não é um ato realizado de uma
única vez, mas, necessita ser vivido cotidianamente pelo povo.
A eleição e os profetas
Tem-se conhecimento da missão
profética na Sagrada Escritura. Os profetas sempre foram vistos como a
consciência viva do povo, estão sempre atentos ao cumprimento das leis, da
fidelidade a aliança feita entre Deus e o povo. Eles são uma espécie de fiscal
da Aliança. Para muitos profetas a eleição sempre foi vista como uma
responsabilidade da parte do povo e dos seus governantes que na interpretação profética
sempre se mostrou infiel, não cumpriu o que era esperado.
A cobrança constante feita pelos
profetas revela que eles não viam o povo de Israel como privilegiado nessa
escolha divina, pelo contrário, eles exerciam junto as autoridades políticas e
religiosas uma fiscalização severa da atitude ética exigida nessa aliança. A
crítica feita ao povo era o desvio realizado quando o povo exercia o culto
desligado da vida, e também a constante tentação de prestar culto as divindades
dos povos vizinhos (MONLOUBOU, 1987, p. 30).
Quando da ameaça de destruição de
Jerusalém pela Babilônia, os profetas não pouparam o povo por suas faltas. A
eleição não blinda o povo das consequências de seus atos. O fato de ser o povo
de Deus não os torna imunes quando cometem erros e devem ser castigados, ou
melhor, responsabilizados por suas ações. O descumprimento da aliança se revela
como infidelidade a Deus e pode acarretar a perda da eleição, a quebra do
contrato (LÓPEZ, 1989, p. 25)
A eleição como tema chave no Pentateuco
A compreensão de Israel como povo se
dá a partir da noção de eleição que está associada ao tema da aliança. Já foi
visto que não há na Escritura um critério para a eleição. Deus age de forma
livre e sua escolha é gratuita, ou seja, Israel não possui nenhum atributo que
o torne especial, é dito em Dt 7,7, que eles eram poucos e frágeis perante as
nações daquela época.
Toda a trajetória do povo de Israel
vai sendo desenrolada no Pentateuco por intermédio dessa noção de eleição e
aliança. Desde a saída do Egito, travessia no deserto, e extrapola os limites
do Pentateuco com a ocupação da terra, conflitos com as nações vizinhas,
período da monarquia, destruição do reino do norte e do sul e finalmente o
exílio. Pode-se afirmar que esses temas perpassam todo o Antigo Testamento.
Quando se narra a relação de Deus com o povo esses temas vêm à tona.
A eleição como responsabilidade
Observa-se que na aliança com Noé,
há uma salvação que é dirigida a todos, inclusive é dito que a aliança é feita
com toda as gerações futuras e com toda a criação, há um recomeço na relação de
Deus com toda a obra criada, homens, mulheres, plantas e animais.
O trecho de Gn 12,1ss afirma que
Abraão seja uma benção e que nele serão benditas todas as nações. Pode-se
perceber nessa afirmação a responsabilidade do patriarca perante as outras
nações. Benção na Bíblia significa comunicação de vida por parte de Deus, com
ela vem a força, o vigor e o êxito. Por meio do povo de Israel a vida viria
para os povos com quem ele se relacionasse. A benção também é vista como
recompensa pelo cumprimento da aliança (MACKENZIE, 1983, p. 114-115).
É possível encontrar o tema da
eleição no Servo de IHWH de Isaías 42,1.6s; 49,7; que para muitos estudiosos
representa todo o Israel. O Servo é eleito para ter o Espírito de Deus, para
estabelecer a justiça sobre a terra, ser aliança para os povos e luz para as
nações, dar luz aos cegos e liberdade aos cativos (MACKENZIE, 1983, p. 271).
Através de Israel o mundo seria
transformado pelo estabelecimento da justiça, a libertação das opressões
sofrida pelos pequenos, um novo tempo se apresentaria. A referência para
realização dessas ações é o Deus libertador de Israel, assim como fez com
Israel por seu intermédio fará a todas as nações.
No exílio e pós-exílio o tema da
eleição é repensado porque pela infidelidade de Israel teria ele sido rejeitado
por Deus e a aliança teria sido revogada. No pensamento profético está excluída
essa possibilidade de rejeição, a eleição divina é irrevogável. Pode-se pensar
quem faria parte desses eleitos e que tipos de privilégios seriam concedidos a
esses membros (LACOSTE, 2014, p. 605).
Cristianismo: comunidade dos eleitos
Os cristãos são designados na
teologia paulina os “eleitos” (Cl 3,12; 2Tm 2,10; Rm 8,33) também nas Cartas
Católicas (1Pd 1,1). A eleição do cristão se dá por pura graça divina, em
Cristo, Deus Pai os escolhe e aguarda deles que se mantenham firmes na fé até o
juízo final. Na teologia joanina, a igreja se apresenta como a eleita (2Jo
1,13). A escolha dos doze representa toda a igreja chamada a assumir o
compromisso de instaurar o Reino de Deus, de concretizar o reino de sacerdotes,
a nação santa, o povo eleito (Ex 19,6, Is 43,20).
É importante pensar a eleição cristã
à luz da eleição de Israel como uma missão, uma grande responsabilidade perante
o mundo. No sermão da montanha, Jesus exorta os cristãos a ser sal da terra e
luz do mundo (Mt 5,13-16). A inserção do cristão no mundo se dá de maneira a
transformá-lo em um lugar melhor, onde reine a justiça e a vontade de Deus
prevaleça. Isso ocorrerá com o engajamento dos cristãos no cuidado pelos mais
vulneráveis, excluídos pela sociedade.
Sabe-se, no entanto que alguns
cristãos não percebem a eleição como responsabilidade, mas, vivem, sentindo-se
agraciados e até mais merecedores das graças e proteção divina por serem parte
da Igreja cristã. É preciso resgatar o sentido da eleição do cristão como
compromisso e responsabilidade diante de um mundo que oprime os pequenos,
frágeis e os exclui da casa comum.
Considerações finais
A vida do povo de Israel sempre foi marcada pela sua relação com Deus, ser o povo eleito, significava viver de maneira diferente em meio as nações estrangeiras. Não foi fácil para Israel permanecer fiel a Aliança firmada com Deus, pois, essa relação era bastante exigente. A infidelidade foi o grande pecado de Israel. Na verdade, observa-se que o povo nunca assumiu totalmente sua vocação e missão, em várias ocasiões se deixou envolver pelas outras nações e se desviou na adoração as outras divindades. Olhando para Israel o cristão, chamado a ser o novo Israel é interpelado a não repetir os mesmos erros de Israel e assumir no mundo atual sua eleição, como sal da terra e luz do mundo se engajando na luta por uma sociedade mais justa e fraterna, onde sejamos todos irmãs e irmãos.
Referências bibliográficas
LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário
crítico de Teologia. São Paulo: Edições Loyola: Paulinas, 2014.
LÓPEZ, Félix Garcia. El
Deuteronomio – una lei predicada. Navarra: Editorial verbo divino, 1989.
MCKENZIE, John L. Dicionário
bíblico. São
Paulo: Paulus, 1983.
MONLOUBOU,Louis. Los profetas del Antigo Testamento. Navarra : Editorial verbo divino, 1987.
Ir. Luciene Lima Gonçalves, membro do Instituto Religioso Nova Jerusalém, é doutoranda em Ciências das Religiões pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP. Mestra em Teologia pela Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP (2020). É especialista em Estudos Bíblicos pela Faculdade Católica de Fortaleza (2015) Graduada em Teologia pelo Instituto de Ciências Religiosas - ICRE (2007). E-mail: lucienelima324@gmail.com
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